domingo, 14 de março de 2010

O Caminho para a Servidão (vi)

Escrito por Frederico Hayek





Lord Acton (1834-1902).




«Todo o poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente».

Lord Acton


É, neste ponto, necessário reverter até ao momento que precedeu a supressão das instituições democráticas e a instauração do regime totalitário. Nesse momento, o que constitui o elemento dominante da situação é a insatisfação com a marcha vagarosa e pesada do processo democrático e a consequente e generalizada exigência de uma acção governativa decidida e rápida. A acção, por si só, afigura-se ser o objectivo primordial. É então que o homem ou o partido que surge forte e decidido «a fazer as coisas», suscita a maior atracção. «Forte» não significa apenas a força de uma maioria numérica, pois o povo está descontente com a ineficácia das maiorias parlamentares. O que as pessoas procuram é alguém que inspire confiança, alguém a quem dar o seu sólido apoio, para que possa realizar o que entender. E é aqui que entra em cena o novo tipo de partido organizado em moldes militares.

Nos países da Europa Central, os partidos socialistas já haviam familiarizado as massas com as organizações políticas de carácter semi-militar que tinham por finalidade absorver quanto pudessem da vida privada dos seus membros. Para obter um poder esmagador, bastava, então, desenvolver essa forma de organização e procurar a força, não nos votos assegurados de muitos eleitores em eleições ocasionais ou periódicas, mas no apoio total e sem reservas de um grupo pequeno mas homogéneo. A imposição de um regime totalitário a todo um povo começa, pois, pela reunião, em volta de um chefe, de um grupo cujos membros se dispõem voluntariamente a aceitar a disciplina ditatorial que depois irão, por sua vez, impor pela força aos outros.

Os partidos socialistas, reunindo embora todas as condições para conseguir o que quisessem caso se dispusessem a usar a força, sempre manifestaram relutância em o fazer. Sem terem consciência disso, haviam iniciado uma obra que só gente bárbara, e decidida a não respeitar as barreiras das convenções morais, poderia completar.

Há muito já que os reformadores sociais aprenderam que o socialismo só pode ser posto em prática por métodos que a maior parte dos socialistas repudia. Os velhos partidos socialistas, além de estarem inibidos pelos seus ideais democráticos, não possuíam a crueldade à realização da tarefa que tinham escolhido. É significativo que, tanto na Alemanha como na Itália, o advento do fascismo tenha sido precedido pela recusa dos partidos socialistas em assumirem a responsabilidade do governo. Não estavam intimamente dispostos a usar os métodos que, afinal, tinham sido eles próprios a preparar. Esperavam ainda o milagre de se constituir uma maioria concordante com determinado plano de organização de toda a sociedade. Outros, porém, tinham aprendido a lição: numa sociedade planificada, a questão não reside em saber o que seja aquilo com que a maioria do povo concorda, mas sim qual é o grupo mais numeroso cujos membros estão de acordo em estabelecer uma direcção única para o maior número de assuntos possíveis ou, caso esse grupo não exista, saber como pode ele ser criado e quem o conseguirá criar.






Há três razões fundamentais para que esse grupo numeroso, forte e com opiniões homogéneas, não venha a ser formado pelos melhores mas sim pelos piores elementos de uma sociedade. Segundo os nossos princípios, os motivos que levariam à selecção desse grupo seriam inteiramente negativos.

Em primeiro lugar, há todas as razões para considerarmos verdadeiro que, quanto mais elevada for a educação e a inteligência de um indivíduo, mais as suas opiniões e seus gostos se singularizam, e, portanto, mais resistência oporá em dar a sua concordância a uma hierarquia de valores que lhe proponham. A prova disso é que, quando queremos encontrar um alto grau de uniformidade e semelhança de pontos de vista, temos de descer às regiões sociais de níveis morais e intelectuais mais baixos e nas quais predominam os instintos e os gostos mais primitivos e grosseiros. Não quer isto dizer que a maioria do povo tenha um nível moral baixo, mas significa apenas que a maior parte das pessoas com valores éticos muito semelhantes são pessoas de níveis baixos. Como se o denominador comum mais baixo fosse o que reúne o maior número de pessoas. Se for necessário constituir um grupo bastante numeroso e forte para impor aos outros as suas concepções éticas da vida, esse grupo nunca será recrutado entre os que possuem gostos altamente singularizados e desenvolvidos. Será antes recrutado entre aqueles que formam as «massas», no sentido pejorativo do termo, entre os menos originais e independentes, entre os que não hesitem em se servir do peso do seu número para adoptarem os seus ideais privados.

Todavia, o ditador potencial que tenha de confiar inteiramente nessas pessoas de instintos tão simples e semelhantes, depressa verifica que a força, que o número delas constituído, não é suficiente para que possa levar até ao fim os seus intuitos. Vê-se então obrigado a alargar o número de membros do grupo, convertendo às suas ideias outras pessoas. E aqui surge o segundo motivo negativo da selecção. É que o ditador poderá conseguir o apoio de todos os dóceis e ingénuos que não têm convicções próprias nem seguras e são portanto susceptíveis de aceitar o sistema de valores já elaborado se lho meterem pelos ouvidos com bastante e repetida veemência. As fileiras do partido totalitário ficam assim reforçadas com pessoas vagas e imperfeitamente formadas, pessoas facilmente influenciáveis e nas quais prontamente se fazem despertar emoções e paixões.






O terceiro, e talvez o mais importante dos três motivos negativos da selecção, está relacionado com o deliberado propósito de todo o demagogo hábil em fazer dos seus partidários um grupo estreitamente coeso e homogéneo. Parece quase uma lei da natureza humana ser mais fácil chegarem as pessoas a acordo quanto a um projecto negativo - o ódio a um inimigo, a inveja dos mais ricos - do que quanto a uma tarefa positiva. A oposição entre «nós» e «eles», a vulgar luta contra os que estão fora do grupo, parece ser um ingrediente especial em qualquer doutrina que queira constituir um grupo solidamente ligado para uma acção comum. É por isso sempre utilizado por todos aqueles que procuram não só o apoio para uma política mas também a fidelidade sem reservas de enormes «massas». Do ponto de vista deles, esse ingrediente tem a grande vantagem de lhes dar uma liberdade de acção que não obtêm de um programa político com carácter positivo. O inimigo, seja ele interno (como o «judeu» ou o «kulak»), seja externo, é um elemento indispensável no arsenal do chefe totalitarista. Tanto, na Alemanha, a escolha dos «judeus», antes de serem substituídos pelas «plutocracias», como na Rússia a dos «kulaks» para serem os inimigos necessários, resultaram do ressentimento anti-capitalista que foi donde partiu todo o movimento. Na Alemanha e na Áustria, os judeus tinham começado a ser olhados como os representantes do capitalismo, e o desprezo que vastas camadas da população dedicavam às actividades comerciais, tornou-as mais facilmente vulneráveis ao incitamento a odiarem um grupo que era praticamente excluído das ocupações socialmente mais consideradas. Era a velha história da raça estranha que só é admitida nas actividades menos respeitadas e vem depois a ser mais odiada por as exercer. O facto de o anti-semitismo e o anti-capitalismo alemães provirem da mesma raiz, é de grande importância para o entendimento do que tem acontecido naquele país mas raramente é atendido pelos observadores estrangeiros.

Considerar que a tendência em se tornar nacionalista, que é hoje a tendência universal da política colectivista, se deve exclusivamente à necessidade de assegurar um apoio imediato, seria omitir um outro factor de não menor importância. Pode, na verdade, perguntar-se se é realisticamente possível conceber um programa colectivista que não esteja ao serviço de um grupo limitado, se o colectivismo poderá existir sob alguma forma que não seja a de um particularismo que tanto poderá ser o nacionalismo como o racismo ou o classismo. A acreditar-se numa comunidade de objectivos e interesses entre os nossos semelhantes, pressupõe ele um grau de afinidade de opiniões e pensamentos maior do que aquele que existe entre homens considerados apenas seres humanos. Se não é possível conhecermos pessoalmente todos os outros membros do grupo, devem todos eles ser, pelo menos, da mesma espécie daqueles que nos rodeiam, falar da mesma maneira, pensar o mesmo sobre os mesmos assuntos, a fim de que nos possamos identificar com eles. O colectivismo à escala mundial parece ser impensável, a não ser que seja posto ao serviço de uma pequena elite governante. Levantaria problemas não apenas técnicos mas sobretudo morais que nenhum dos nossos socialistas está disposto a enfrentar. Se se der aos proletários ingleses o direito a uma parte igual do rendimento que provém agora dos recursos do capital em Inglaterra, e bem assim ao controlo da utilização desses recursos, pois eles são o fruto da exploração, então, obedecendo ao mesmo princípio, também os indianos teriam direito não só ao rendimento como à utilização de uma parte proporcional do capital britânico. Mas quais os socialistas que pensam a sério na divisão equitativa pelos povos do globo dos recursos do capital existente? Todos eles consideram que o capital pertence, não a toda a humanidade, mas a cada nação e até dentro de cada nação poucos são os que ousam defender que as regiões mais ricas sejam despojadas do «seu» equipamento de produção em benefício das regiões mais pobres. Não estão os socialistas preparados para alargar aos estrangeiros o que proclamam ser um dever para com os concidadãos de cada Estado. Dentro dos critérios rigorosamente colectivistas, as reivindicações das nações pobres para uma nova divisão do mundo deviam considerar-se inteiramente justificadas. No entanto, se tal nova divisão fosse posta em prática com todo o rigor, os que agora mais clamorosamente a reivindicam perderiam quase tanto como as nações mais ricas. Têm por isso muito cuidado em não basear essas reivindicações em princípios igualitários mas sim, na superior capacidade que pretenciosamente atribuem a si mesmos para organizar os outros povos.






Uma das contradições inerentes à teoria colectivista é a de que ela, fundamentando-se na moral humanista que o liberalismo desenvolveu, só se torna realizável em grupos relativamente limitados. O facto de, enquanto teórico, o socialismo se apresentar como internacionalista e de, logo que posto na prática, quer na Rússia quer na Alemanha, passar a ser violentamente nacionalista, constitui uma das provas de que o chamado «socialismo liberal» ou democrático não é mais do que uma pura abstracção pois a prática do socialismo é, em toda a parte, totalitária (18). No socialismo, não há lugar para o amplo humanismo dos liberais mas apenas para o estreito sectarismo dos totalitaristas.

Se a «comunidade» (ou o Estado) tem prioridade sobre o indivíduo, se contém em si mesma fins independentes e superiores aos dos indivíduos, então só os que trabalham para esses fins podem ser considerados membros da comunidade. Daí resultará, como consequência inevitável, que uma pessoa só será respeitada por ser membro do grupo que trabalha para fins reconhecidos como comuns e toda a dignidade só lhe é atribuída por esse facto e não pela sua qualidade de ser humano. Deste modo vemos como a noção de humanidade e, portanto, de internacionalismo são produtos de uma concepção individualista do homem e não podem ter lugar dentro de um sistema colectivista (19).


Notas:

(18) Cf. a esclarecedora discussão deste assunto no livro de F. Borkenau, Socialism, National or International?, 1942.

(19) Estão inteiramente dentro do espírito colectivista, as palavras que Nietzsche põe na boca de Zaratustra:

«- Até hoje existiram mil finalidades para mil pessoas existentes. Mas faltam ainda as correntes para esses mil pescoços, falta ainda a finalidade única. A humanidade ainda não tem uma finalidade.

«- Mas diz-me, peço-te, irmão, se falta uma finalidade à humanidade, não é a própria humanidade que falta?»

Continua


Nenhum comentário:

Postar um comentário