quinta-feira, 18 de março de 2010

A selva oscura da economia (i)

Escrito por Orlando Vitorino




Ludwig von Mises


«As impressionantes teorias contemporâneas da ciência económica só são satisfatórias em certos pormenores e no léxico imperfeito que, por vezes lhes desfigura o conteúdo. Mas, na essência, são irrefutáveis. O que ainda lhes falta é a estruturação lógica do pensamento dos seus autores».


«O falso ponto de partida da ciência económica (a teoria do valor como intrínseco às coisas) tornou para ela infecundo o pensamento de Aristóteles e de todos aqueles que, há dois mil anos, têm por definitivas as ideias aristotélicas».

Ludwig von Mises (in «La Accion Humana - Tratado de Economia»).



Este livro [Exaltação da Filosofia Derrotada] é uma aventura intelectual na selva oscura da economia e a sua publicação um convite aos leitores para se aventurarem comigo num teritório desconhecido. Não a economia mas a ciência económica será, mais propriamente, a minha selva oscura e o território desconhecido dos leitores. A economia é-nos familiar a todos, todos nós temos nela envolvidos nossos interesses mais próximos e directos, enquanto a ciência económica nos pode ser tão indiferente como o foi para os nossos antepassados durante milénios, até àquele dia dos finais do Século XVIII em que um austero cidadão inglês abandonou o convívio de amigos e parentes e se fechou em casa sem mulher para escrever, ao longo de dez anos, uma «Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações», cuja publicação deu origem à ciência da economia e lhe valeu a ele ser nomeado para o cargo de director das alfândegas que, na sua investigação, concluía deverem ser abolidas para bem das nações e sua riqueza. Se, pois, durante milénios, a ciência económica pôde ser ignorada com tranquilidade e sem inconvenientes, nada parece impedir que também hoje a ignoremos. E isso fazem, de facto, alguns de nós não lhe reconhecendo qualquer utilidade nem vendo mais do que uma ocupação de arrogantes tecnocratas que, tomada a sério, se torna fonte de aborrecimentos e complicações para toda a gente.

Eu próprio devo confessar que, ao longo de muitos anos, absorvidos meus naturais desejos de conhecer pela filosofia e as artes, me limitei, indiferente, a olhar com ironia os que me falavam da ciência económica. Via neles gente que ignora como os homens nasceram para ser ociosos. E a mesma designação de ciência económica apresentava uma redundância que me parecia significativa da sua inutilidade. Com efeito, economia designa já o conhecimento das normas do governo da casa e assim foi tratado por Aristóteles que - vim mais tarde a saber - foi quem lhe determinou as categorias, sem as quais nenhuma ciência é ciência. No caso: a propriedade, o mercado e o dinheiro. O governo da casa ampliou-se a governo da nação, e a respectiva ciência, já abandonada a singela designação de economia, começou por se chamar economia política. À medida que me ia interessando pelo assunto, também a mais recente evanescência desta última designação me pareceu significativa. E ao tornar-se mais corrente dizer-se ciência económica, observei que alguns, e não dos menos autorizados, preferem dizer teoria económica. Condizia, aliás, com o meu gosto intelectual, esta preferência pela teoria.






Toda a ciência que não é puramente desinteressada tem uma teoria e tem uma prática, correspondendo a primeira ao que nela há de conhecimento e saber. Na ciência económica, a menos desinteressada das ciências, a teoria orienta-se, toda ela, para a prática, assim dando boas razões aos que entendem que uma teoria vale o que valer o respectivo exercício. Mas com isso se explica também, coisa que nunca vi com bons olhos, que a prática económica tenha acabado por alcançar sobre a teoria um predomínio tal que não encontra semelhante noutra ciência. A consequência imediata deste predomínio é que sejam os homens da prática - os banqueiros, os ministros das finanças e os guarda-livros, expressão antiquada que eu ainda gosto de dar aos contabilistas - que sejam eles, e não os teorizadores, a deter, quase exclusivamente, o poder de governar a economia das nações.

De bem certa certeza sabia eu, porém, não haver prática que não derive de uma teoria, e isso me compensava do que não podia, contra natura, deixar de reconhecer e até compreender. Isso me compensava e me vingava também, pois ia observando como os homens da prática ignoram geralmente a sua técnica de regras, cálculos e contas que foi tudo o que lhes ensinaram na escola e aprenderam na experiência. Mas à exultação da vingança logo sucedia a indignação e revolta ao verificar como aquela ignorância tem duas consequências temerosas. É, uma, a de os homens da prática - os tais banqueiros, ministros das finanças e contabilistas - assumirem com reforçada convicção o seu falso papel de depositários de toda a ciência, a que conhecem e a que ignoram. É, outra, a de erguerem, esses mesmos, uma barreira quase intrransponível a toda a teoria que não seja a que o seu contabilismo avaliza. A que mais me revoltava era esta última consequência. Via nela, além de um absurdo, uma ameaça de gravidade incalculável. Pois não condenava a viverem na incomodidade e na pobreza, instauradas a partir de uma teoria errada, os homens de um povo inteiro até quando eles têm à mão a teoria que, posta em prática, lhes traria a prosperidade e o bem-estar? E logo, quando mais tarde a vim a ler, associei a esta minha indignação a paráfrase que F. Hayek fez de um desabafo histórico: «A economia é um assunto demasiado importante para que a deixemos entregue aos economistas e aos políticos». Assim compreendi que muitos prefiram a designação de teoria económica à de ciência económica. Pretendem eles evitar qualquer compromisso com o poder que exercem os economistas práticos. Antes de lhe conhecer as razões, já eu fizera minha, como lhes disse, esta preferência, mas poucas vezes utilizo a respectiva expressão por me parecer ela susceptível de se fazer entender como entregando a ciência da economia aos contabilistas. O que conviria era estabelecer, de acordo com a verdade destas coisas, que a ciência tem os teorizadores que a formam e os contabilistas que a praticam. Os contabilistas, proponho e tenho já vindo a dizer, porque a prática económica é quase só uma contabilidade.

Reverto à paráfrase de Frederico Hayek. Diz ele que não devemos deixar a economia entregue aos economistas nem, acrescenta, aos políticos. É que os contabilistas, uma vez libertos dos teorizadores, passam a receber dos políticos, com os lugares que ocupam, a indicação das finalidades que hão-de orientar a economia. São, naturalmente, finalidades políticas, não económicas. E, aqui, mais uma vez é negada a ciência, porque não pode haver ciência onde não seja ela a determinar as suas próprias finalidades. E também uma violência aqui se exerce sobre a liberdade dos homens, porque só a eles deve caber, únicos agentes económicos que são, indicar as finalidades que lhes convém, coisa que só podem fazer através da livre economia. Como aos teorizadores não é possível deixar de denunciar e condenar tal negação e tal violência, concitam eles sobre si, e sobre a ciência, a hostilidade dos políticos que se vem aliar à indiferença dos contabilistas.






A confusão, que eu via estar desfeita no meu espírito, permanecia, pois, na realidade. E vi como ela se adensa quando observei que no próprio terreno da teoria, ou em nome dela, surgem doutrinadores incitando o Estado a controlar a economia, desde o «judeu português» Isaac Pinto, no Século XVIII, até ao lorde inglês, J. M. Keynes, no nosso tempo. A tais doutrinadores dão os contabilistas bom acolhimento. Eles os libertam, por um lado, das pressões da teoria e lhes confiam, por outro lado, a tradução prática económica dos interesses da política, tradução que, por acréscimo, põe os próprios políticos na sua dependência.

Tal situação, a mais frequente na história, apresenta sempre as suas justificações. Decidi-me, com paciência, a estudá-las. A mais utilizada é a de que a economia corresponde apenas a uma perspectiva entre as muitas possíveis e a um único sector da existência social entre os muitos de que ela é composta, enquanto a política engloba todas as perspectivas e representa todos os sectores. Não pude deixar de reconhecer que assim é. Mas certo vi ser também que, salvaguardados os casos singulares de governantes excepcionais e as situações que interrompem o pacífico decurso da existência, os interesses da política são os interesses dos políticos, dos seus grupos, partidos e seitas, das suas organizações internacionais. E acontece até ser naqueles casos singulares de governantes excepcionais que a política tem o cuidado de deixar a economia entregue a si própria, à sua liberdade, aos seus fins e à sua ciência. É que esses governantes sabem o que Adam Smith de uma vez por todas demonstrou: que na economia, cada indivíduo, ao trabalhar para seu benefício, trabalha para benefício de todos.

Chegadas as minhas indagações a este ponto, reconheci com certa surpresa que a situação mais se agrava nas sociedades contemporâneas, ao adquirir a economia um predomínio tal que a política fica consistindo quase só numa administração económica. Reflectindo, conclui não haver razão para me surpreender. Antes é natural que assim aconteça sempre que a economia fique subordinada à política, pois passa, então, a constituir o instrumento mais eficaz para controlar, dominar e até escravizar as populações. A aliança entre políticos e contabilistas afigurou-se-me, deste modo, uma ameaça à liberdade dos indivíduos e aos interesses dos povos, ameaça tanto mais temerosa quanto menos visível e detectável ela é, traduzida como está em fenómenos económicos que, por sua natureza, se misturam e encobrem nas vicissitudes e contingências a que os tempos nos sujeitam, sem que pareça legítimo atribuir responsabilidades delas a quem quer que seja. Podemos, todavia, interrogarmo-nos, procurar compreender, tentar saber. Foi o que me lançou nesta aventura para que convido os leitores a acompanhar-me.

Há nove anos, estamos agora em 1983, estava eu longe de prever, como lhes disse, que os estudos de economia alguma vez viessem a interessar-me. Creio poder conjecturar - dado que o homem nasceu para ser ocioso - que o mesmo terá acontecido e estará acontecendo aos leitores que me acompanham. Outras razões, as que a vida dá e só cada um conhece, terá cada um de nós. As minhas foram as de andar exclusivamente dedicado, como também já lhes disse, às coisas da filosofia e das artes e, como das coisas menores, também da economia non curat proetor. Seguia nisso o exemplo de Hegel que durante anos li, reli, até traduzi e, em tempos de mais juventude, comentei com entusiasmo. Foi ele contemporâneo dos primeiros teorizadores da ciência económica e, se lhes louvava o esforço de procurarem conhecer os conceitos da prática que exerciam, fazia-o com distante condescendência. Nesse ponto me deixei eu iludir por aquela tendência, tão frequente e tão natural, de fazermos nosso o pensamento, e até as atitudes, dos mestres que admiramos. Devia, antes, ter seguido o exemplo de Aristóteles: o de que não há coisas menores e mau sinal dá de si o pensamento que em tudo não souber comprovar o que vale.



Orlando Vitorino



Ora, naquela data já hoje afastada, se deu uma alteração na política do meu país que, precisamente, os estudos da economia me fizeram ver não ser mais do que a última fase de um processo que vinha de longe. Consistiu ela na transferência para o Estado de toda a orientação da economia. As populações começaram por recebê-la com entusiasmo, acreditando que ela lhes iria trazer uma era de prosperidade e abundância sem cuidados ou em que os cuidados caberiam apenas ao magnânimo Estado. Devo declarar que não levei tão longe a minha natural ingenuidade mas ainda conservei a ilusão de que poderia continuar a viver como um sorridente espectador. Depressa a ilusão se desvaneceu, depressa verifiquei, sofrendo-o até na carne, que o Estado me entrava em casa, ditando os contratos do meu trabalho, o emprego do meu dinheiro, os modos do meu viver, as condições do meu futuro, o que podia e, sobretudo, o que não podia fazer. E não tardei a observar que os instrumentos que o Estado utilizava para tanto mal me trazer, eram instrumentos económicos: a desvalorização do dinheiro, o condicionamento do mercado, a colectivização da propriedade, a sindicalização dos salários, a organização do ensino segundo a utilidade, as taxas selectivas dos impostos indirectos. Esparsos nos pequenos, e também nos grandes, actos quotidianos e privados de que a vida é feita, tais instrumentos, além da sua terrível eficácia, ainda escondiam o tartufo, permitindo-lhe controlar, dirigir e asfixiar a existência de cada um de nós, que é onde reside a liberdade mais vivida e real, e ao mesmo tempo proclamar aos quatro ventos a liberdade universal de todos, ou seja, a liberdade de escrevermos nos jornais onde nunca escrevemos ou publicarmos livros para cuja publicação nunca serão nossos os meios, a de se nos abrirem fronteiras que nunca queremos atravessar, a de termos povos amigos em todos os continentes que nunca visitaremos e gente inimiga em todos os vizinhos cuja «classe» não seja a nossa, a de elegermos os nossos governantes depois de eles se terem eleito a si próprios dando-lhes nós o nosso voto num democrático domingo de quatro em quatro anos (in Exaltação da Filosofia Derrotada, Guimarães Editores, 1983, pp. 21-26).

Continua


Nenhum comentário:

Postar um comentário