terça-feira, 16 de março de 2010

O Caminho para a Servidão (viii)

Escrito por Frederico Hayek






Está inteiramente de acordo com todo o espírito do totalitarismo a condenação de qualquer actividade humana que tenha um carácter gratuito, que não seja determinada por um propósito. A ciência pela ciência, a arte pela arte são tão abomináveis para os nazis como para os nossos intelectuais socialistas ou comunistas. Não há para eles actividade que não tenha de se justificar por uma finalidade social deliberada. Não há para eles actividade espontânea, liberta de orientação prévia. Porque esse género de actividade pode dar resultados que não estão previstos e para os quais o «plano» não tem soluções; pode dar origem a coisas novas e não sonhadas na filosofia do planificador. E a mesma abominação abrange os jogos e os divertimentos. Deixo ao leitor a possibilidade de adivinhar se foi na Alemanha nazi ou na Rússia soviética que oficialmente se exortaram os jogadores de xadrez nos seguintes termos: «Temos de acabar de uma vez para sempre com a neutralidade do xadrez. Temos de condenar de uma vez para sempre a fórmula o xadrez pelo xadrez tal como condenámos a fórmula a arte pela arte.

Por muito incríveis que nos pareçam algumas destas aberrações, é necessário precavermo-nos contra elas e não as desdenharmos como meros subprodutos acidentais que nada têm a ver com o carácter essencial de um sistema planificador ou totalitário. Porque o não são. Porque são resultado directo daquela mesma vontade de que tudo seja dirigido por uma «concepção unitária do todo», daquela necessidade de defender, custe o que custar, as ideias em nome das quais se exigem constantes sacrifícios ao povo, e daquele princípio segundo o qual a sabedoria e as convicções populares apenas são um instrumento a usar para um único fim. Uma vez que a ciência deixa de depender da verdade para estar ao serviço dos interesses de uma classe, de uma comunidade ou de um Estado, só se exprimem e discutem os argumentos destinados a justificar e difundir as ideias que são impostas a toda a existência da comunidade. Neste sentido explicou o ministro da Justiça nazi que toda a inovação científica deve começar por se interrogar: «Sirvo o nacional-socialismo para maior benefício de todos?».



A mesma palavra verdade perde o antigo significado. Já não significa aquilo que é necessário procurar e tem na consciência individual o único árbitro para decidir, em cada caso singular, se a evidência (ou a posição daqueles que a proclamam) garante que nela se acredite. Torna-se, antes, a designação daquilo que a autoridade estabelece, daquilo em que é forçoso acreditar no interesse da unidade da acção organizada e que é susceptível de alteração sempre que as exigências de tal acção organizada a isso obrigaram.

O ambiente intelectual que deste modo se origina, o espírito de total cinismo perante tudo o que se relaciona com a verdade, a perda do sentido e até do significado que a palavra verdade contém, o desaparecimento do espírito da investigação independente e da possibilidade de acreditar no poder das convicções racionais, a maneira como as diferenças de opinião se tornam, em todos os ramos do saber, questões sobre as quais só as autoridades superiores devem decidir, tudo isso são desgraças que só a experiência pessoal pode fazer conhecer pois não há descrição capaz de as exprimir em toda a sua extensão. O mais alarmante será, talvez, o facto de o desprezo pela liberdade intelectual não surgir só quando o sistema totalitário está já esclarecido, mas se encontrar onde quer que os intelectuais tenham feito uma profissão de fé colectivista e sejam aclamados como chefes, trate-se embora de países nos quais ainda perdure o regime liberal. Até a pior das opressões é desculpada caso se exerça em nome do socialismo, e a criação de um sistema totalitário vê-se amplamente defendida por pessoas que pretendem falar em representação dos cientistas dos países liberais; e também a intolerância vemos ser elogiada abertamente. Pois não assistimos recentemente à defesa que um escritor britânico fez da Inquisição dizendo que «ela constituiu um benefício para a ciência porque protegeu uma classe em ascensão» (22). Opiniões como esta em nada se distinguem, efectivamente, das convicções que levaram os nazis a perseguir homens de ciência, a queimar livros científicos e a marginalizar sistematicamente a intelligentzia do povo subjugado.






O desejo de impor a um povo uma doutrina considerada salutar não é facto novo nem característico da nossa época. O que é novo é o argumento com que muitos dos nossos intelectuais pretendem justificar essa imposição. Dizem eles que não há verdadeira liberdade na sociedade em que vivemos porque as opiniões e os gostos da «massas» são modelados pela propaganda, pela publicidade, pelo exemplo das classes superiores e por outros factores circunstanciais que inevitavelmente obrigariam as pessoas a pensar segundo ideias feitas. Daqui concluem que, uma vez que os ideais da maioria sempre assim resultam de circunstâncias que podemos controlar, então deveríamos usar este poder para deliberadamente conduzirmos as pessoas no rumo que consideramos desejável.

É provavelmente verdade que as maiorias raras vezes são capazes de pensar com independência, aceitam em quase todos os casos as ideias que encontram já feitas e ficam igualmente contentes por terem nascido num ambiente mental ou o seu contrário, por serem persuadidas de determinadas ideias ou de outras quaisquer. É provável que, em todas as sociedades, a liberdade de pensamento só tenha autêntico significado para uma minoria. Mas isto não quer dizer que qualquer um tem competência, e deve ter o poder, para seleccionar aqueles a quem a liberdade de pensamento fica reservada. E também não significa que um grupo qualquer de pessoas possa ter a pretensão de se arrogar o direito de determinar aquilo que os outros hão-de pensar e em que têm de acreditar. Dá provas de grande confusão mental quem sugerir que, obedecendo a maioria das pessoas em qualquer sistema à chefia de alguém, nenhuma diferença haverá se todas obedecerem a um único chefe.

Desdenhar o valor da liberdade intelectual, porque ela nunca poderá oferecer a toda a gente a mesma possibilidade de pensar com independência, é omitir todas as razões que conferem valor à liberdade intelectual. Constitui ela o principal motor do progresso mental e é essencial que cumpra a sua missão. A liberdade intelectual não significa que toda a gente seja capaz de pensar e escrever; significa, sim, que todas as causas e todas as ideias podem ser defendidas por alguém. Enquanto os dissidentes não forem suprimidos, haverá sempre alguém que discuta as ideias que governam os seus contemporâneos e que apresente novas ideias para serem discutidas e difundidas.






Esta interacção dos indivíduos que possuem diferentes conhecimentos e diferentes opiniões é o que constitui a vida do pensamento. O alargamento dos domínios da razão resulta de um processo social assente na existência dessas diferenças. Da essência desse processo faz parte não se poderem prever os seus resultados e não se poderem saber quais as ideias que acompanharão o alargamento da razão. Em suma, não pode esse processo ser dirigido por nenhumas ideias que hoje possuímos sem que, com isso, o estejamos a limitar. «Planear» ou «organizar» o alargamento da razão ou, neste caso, o progresso em geral, é uma contradição. A ideia de que o espírito humano deveria controlar «conscientemente» o seu próprio desenvolvimento, constitui uma perturbação da razão individual que é a única a poder «controlar racionalmente» alguma coisa mediante aquele processo de interacção dos indivíduos a que deve o seu alargamento. Ao tentarmos aquele controlo, apenas ergueremos barreiras ao que pretendemos controlar, barreiras que, mais cedo ou mais tarde, fazem estagnar o pensamento e provocam o declínio da razão.

Por conceber erradamente o processo de que depende o alargamento da razão, o pensamento colectivista acaba por destruir a mesma razão depois de ter começado por a exaltar como suprema. Essa é a sua tragédia. E o paradoxo de todas as doutrinas colectivistas pode dizer-se que reside na sua exigência de um «controlo racional» - ou «planificação racional» - que inevitavelmente as conduz à exigência de serem alguns indivíduos a deter o poder supremo, quando só uma perspectiva individualista dos fenómenos sociais nos permite reconhecer as forças super-individuais que comandam o desenvolvimento da razão. O individualismo é assim uma atitude de humildade perante o processo social, uma atitude de humildade perante as outras opiniões, a atitude rigorosamente oposta àquele orgulho intelectual que está na origem da exigência da direcção englobante de todo o processo social... (in ob. cit., pp. 252-257).


(22) J. G. Growther, The Social Relations of Science, 1941, p. 333.



Julgamento de Nuremberga


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