terça-feira, 9 de março de 2010

O Caminho para a Servidão (ii)

Escrito por Frederico Hayek








Em virtude da crescente impaciência perante o vagaroso progresso da política liberal, e também da justa irritação provocada por aqueles que empregavam a fraseologia liberal só para defenderem a privilégios anti-sociais, e ainda da ambição sem limites mas aparentemente justificada pelas conquistas materiais já alcançadas, aconteceu que, nos finais do século, se perdeu a confiança nos princípios essenciais do liberalismo. O que se havia alcançado à custa de saber e esforço, passou a ser considerado como algo de seguro e eterno, de uma vez para sempre obtido. A atenção das pessoas voltou-se e fixou-se nas novas exigências cuja satisfação lhes parecia ser impedida pela adesão aos velhos princípios. Passou a admitir-se, em círculos cada vez mais largos, que já nada se podia esperar do sistema que tinha tornado possível todo o anterior progresso, e tudo agora dependeria de uma remodelação radical da sociedade. Não se tratava já de ampliar ou aperfeiçoar a maquinaria existente, mas de a pôr de lado e de a substituir. Concentradas assim as esperanças da nova geração numa sociedade inteiramente nova, depressa se viu declinar o interesse e a compreensão pelo aperfeiçoamento da que já existia. E com a ausência de compreensão do modo como funcionava o sistema livre, diminuiu também o nosso conhecimento de tudo aquilo que dependia da existência desse sistema.

Não é este o lugar adequado para discutir como esta mudança de perspectiva foi alimentada pela transferência leviana, para os problemas da sociedade, de hábitos de pensamento criados no estudo dos problemas da técnica. Estes hábitos de pensamento, próprios dos naturalistas e dos engenheiros, procuravam desacreditar, ao serem transferidos para o estudo da sociedade, os resultados anteriormente estabelecidos que não estivessem de acordo com os seus preconceitos; procuravam, em consequência, impor modelos de organização a domínios que lhes não eram adequados (4).

De acordo com as opiniões agora dominantes, do que se trata não é de saber como tirar o maior proveito das forças espontâneas que existem numa sociedade livre. Com efeito, resolvemos dispensar todas as forças susceptíveis de provocar resultados que não possam ser previstos e substituir o mecanismo anónimo e impessoal do mercado pela orientação colectivista e «racional» de todas as forças sociais em direcção a objectivos deliberadamente escolhidos. A diferença não encontra melhor ilustração do que na posição extremista adoptada num livro largamente aplaudido e cujo programa para o chamado «planeamento da liberdade» seremos forçados a comentar mais algumas vezes. Diz nesse livro o Dr. Karl Manheim: «Nunca tivemos de organizar e dirigir todo o sistema da natureza como somos hoje obrigados a fazê-lo com a sociedade... A humanidade tende cada vez mais a regulamentar a sua vida social, embora nunca tenha tentado criar uma segunda natureza» (5).



Hegel



É significativo que esta alteração na orientação das doutrinas tenha coincidido com a inversão do sentido em que as ideias atravessavam o espaço. Durante mais de duzentos anos, as ideias inglesas expandiam-se para oriente. A lei da liberdade conquistada em Inglaterra parecia destinada a difundir-se por todo o mundo. Por volta de 1870, o reinado desta doutrina alcançara, provavelmente, a sua máxima expansão para oriente. A partir daí, começou a retroceder e um estilo de doutrinas diferentes, não verdadeiramente novas mas de facto muito antigas, começou a avançar vindo de leste. A Inglaterra perdeu o domínio intelectual no mundo político e social e fez-se importadora de doutrinas. Nos sessenta anos que se seguiram, foi a Alemanha que se tornou o centro donde irradiavam, para oriente e para ocidente, as doutrinas destinadas a governar o mundo no século XX. Quer fosse Hegel ou Marx, List ou Schmoller, Sombart ou Manheim, quer fosse o socialismo na sua forma mais radical ou apenas como «organização» e «planeamento» de tipo menos radical, o que é certo é que as doutrinas germânicas se viram rapidamente seguidas em toda a parte e as instituições alemãs prontamente adoptadas. Embora seja acerto que grande parte das novas doutrinas, e particularmente o socialismo, não tenham tido origem na Alemanha, neste país é que foram sistematizadas e, no último quartel do século XIX e primeiro do século XX, atingiram o seu mais completo desenvolvimento. Muitas vezes se esquece agora a importância que a Alemanha teve durante todo esse período comandando, na teoria e na prática, o desenvolvimento do socialismo; esquece-se que na geração anterior àquela em que o socialismo adquiriu importância na Inglaterra, já a Alemanha tinha um grande partido socialista no Parlamento e que, ainda há bem pouco tempo, o desenvolvimento doutrinário do socialismo se realizava quase exclusivamente na Alemanha e na Áustria, de tal modo que até o actual socialismo russo não é, em grande parte, mais do que a continuação daquilo que os alemães fizeram (6). Muitos socialistas ingleses continuam a não se aperceber de que a maioria dos problemas que começam agora a formular foram já profundamente estudados, e há longos anos, pelos socialistas alemães.

A influência intelectual que os doutrinadores alemães conseguiram exercer sobre todo o mundo durante este período deve-se ao apoio que encontravam no grande progresso material da Alemanha e, sobretudo, à extraordinária reputação que os pensadores e cientistas germânicos conquistaram nos cem anos anteriores, quando a Alemanha se tornou um membro integrante e até triunfante da comum civilização europeia. Os alemães - pelo menos os que divulgaram tais doutrinas - tinham perfeita consciência da situação: o que houvera sido herança comum da civilização europeia tornou-se para eles, muito tempo antes do nazismo, a civilização «ocidental», e a palavra «ocidental» entendiam-na, não no velho sentido de pertencer ao ocidente, mas no de estar «a ocidente do Reno». Neste sentido, «ocidental» é o Liberalismo e a Democracia, o Capitalismo e o Individualismo, o Comércio Livre, e todas as formas de Internacionalismo, o Amor da Paz. E apesar do mal disfarçado desdém, manifestado por um número sempre crescente de alemães, pelas «fúteis» ideias ocidentais, ou talvez por isso mesmo, os povos do ocidente continuaram a importar as doutrinas alemãs e foram até levados a acreditar que as suas anteriores convicções não passavam de racionalizações de interesses egoístas, que o Comércio Livre era uma doutrina inventada só para defender e alargar os interesses britânicos, que os ideais políticos que a Inglaterra tinha dado ao mundo estavam irremediavelmente ultrapassados e eram coisa de que nos devíamos envergonhar (in ob. cit., pp. 47-51).


Notas:

(4) O autor procurou descrever o princípio deste desenvolvimento em duas séries de artigos sobre «cientismo e Estudo da Sociedade» e «A Contra-Revolução da Ciência» que foram publicados em «Economica» 1941-1944.

(5) Man and Society in an Age of Reconstruction, 1940, p. 175.




Leonardo Coimbra




(6) Esta nota não pertence ao autor; é de nossa autoria: «Para além dos escritores franceses que estiveram na origem do socialismo moderno, F. Hayek aponta o leste como o foco de doutrinas (...) que vieram minar, a partir de 1870 e por via da Alemanha, o espírito da civilização europeia (...). O que explica, no contexto do niilismo e do messianismo russos, que o marxismo tenha sido apenas um instrumento do imperialismo revolucionário pan-eslavófilo (cf. Henri Massis, A Nova Rússia, Porto, Livraria Tavares Martins, 1945, pp 5-6 e 10-13), também acentuado por Leonardo Coimbra quando, de uma forma única e singular, descreveu as solicitações da alma russa: "O socialismo russo tem, pois, duas formas completamente diferentes, ambas elas de importação, mas transformadas logo pelo apocaliptismo russo: a forma sentimental, de origem essencialmente francesa, e a forma judeogermânica de aspecto e vestuário cientista, filha do judeu alemão Marx e neta da orgia intelectual de Hegel. Este último representa um fenómeno curioso na história do pensamento humano: um ciclone governado por um cronómetro, dizia Junqueiro da Alemanha guerreira de 1914; pois a paráfrase para Hegel daria - um ciclone de pensamento governado pelo seco e gratuito formalismo do ritmo dialéctico. Hegel influiu directa e indirectamente no pensamento russo bem mais do que é costume dizer-se".

Mas era o "marxismo que naturalmente estava indicado para ocupar o lugar vago deixado na alma russa pela sua não-aceitação cultural, pelo seu radical niilismo e pelo seu sonho idealista, messiânico e apocalíptico da Parúsia.

Foi com efeito o marxismo que deu corpo a todo o revolucionarismo russo, que parafraseando Turgueniev, poderemos dizer que vivia no estado gaseiforme - embora de gases tóxicos e em pressão explosiva.

A história do marxismo na Rússia é, depressa, a história do leninismo e, mais até, a história do próprio Lenine" (A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, Porto, Livraria Tavares Martins, 1962, pp. 349 e 362)».

Continua


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