segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

A situação cultural e política do Teatro ou situação teatral da cultura e da política

Entrevista a Orlando Vitorino






«A direcção desta revista, tendo-me inicialmente solicitado um artigo sobre o teatro a publicar em cada um dos seus números, imprimiu, ao fim dos três primeiros artigos, uma maior ênfase directiva (o que é próprio de toda a direcção digna desse nome) à solicitação que me fizera. Solicita-me agora que os meus artigos, depois de terem tratado daquilo que o teatro não é, passassem a tratar daquilo que o teatro é. Pretende ela, deste modo, que eu abandone o raciocínio bastardo que tenho adoptado e seguido. Raciocínio bastardo é uma classificação lógica de Platão. Entendia ele que há dois grandes modos de pensar e dizer o que as coisas são. Um modo de afirmar os atributos que lhes convém. Por exemplo: Deus é omnisciente. Outro é negar os atributos que não lhes convém. Por exemplo: Deus não é finito ou, como geralmente se diz, Deus é infinito, Deus é não-finito. A este segundo modo de pensar é que Platão chamou raciocínio bastardo.

Por vezes, o raciocínio bastardo é o único possível, até em questões principais, como as do segundo exemplo teológico a que aludimos. Outras vezes, é não só o único possível, como se torna imperativo utilizá-lo. Seja, por exemplo, a democracia que é, com a monarquia e a aristocracia, um dos três únicos regimes políticos possíveis, mas irrealizáveis em sua plenitude. Esta impossibilidade de o realizar, obriga a recorrer ao raciocínio bastardo sempre que um regime se apresenta como democrático. Dir-se-á então: a democracia não é socialismo, a democracia não é regime partidário (entendido este, à maneira do que acontece hoje em Portugal, como o monopólio da representação popular), a democracia não é economia estatizada e planificada, a democracia não é sindicalismo centralizado, a democracia não é eleitoralismo (no sentido constitucionalmente estabelecido entre nós segundo o qual os partidos elegem - quer dizer: escolhem ou nomeiam - os indivíduos que hão-de ser membros dos orgãos de soberania, limitando-se os chamados eleitores, não a elegê-los, mas a votar os já eleitos pelas organizações partidárias).

O teatro não está nestas condições. Pode pensar-se o que o teatro é sem recorrer necessariamente ao raciocínio bastardo. Pode dizer-se o que o teatro não é e pode dizer-se o que o teatro é. A expressão lapidar e definitiva daquilo que o teatro é, devemo-la a Ernesto Palma. Lançou-a ele numa conversa de tertúlia, à mesa de um restaurante do Parque Mayer, entre alguns cómicos, uma vedeta e duas coristas. A definição foi depois publicada e comentada num suplemento cultural de estudantes que, com o título "A Ilha", o "Jornal da Madeira" editava há uns dez anos. A definição de Ernesto Palma é esta:


O teatro é o que faz o actor


Este conceito provocou natural resistência. Começou por não ser correctamente entendido na sua mesma sintaxe. Afigurou-se a alguns que Ernesto Palma afirmava que o actor é que faz o teatro, afirmação que seria, evidentemente, uma estultícia. O teatro é, com efeito, o resultado de numerosos e diversos factores. O actor é um desses factores. Além dele há o autor e o altor (designação que também Ernesto Palma gosta de dar ao encenador, pois é ele quem faz levantar nas figuras, movimento e cenários verticais da cena o que está jacente na horizontalidade da escrita dos textos). Há, depois, a cenografia, as luzes, a música e há, sobretudo, o espectador. Há, por fim, os deuses, anjos e demónios ou o que com esses e outros nomes se designa, poderes inomináveis que estão na origem do mundo. E o teatro é sempre, como disse Calderon com mais profundidade mas menos ofício do que Ernesto Palma, "o grande teatro do mundo".

Estas observações nos bastam, hoje, a mim e ao leitor, para satisfazermos preliminarmente a directiva que recebemos da direcção de Ensaio. Poderemos, no próximo número, atravessar o limiar do templo».

Orlando Vitorino («O teatro é o que o actor faz», in «Ensaio», n.º 4, Set-Novembro de 1981).


«A transição para o teatro, de ordem espectacular, caracteriza a última fase da teoria da literatura na obra de Bergson, mais directamente preocupado com os problemas de moral e da religião. No teatro a acção realiza-se plenamente, com seus conflitos visíveis, ou realiza-se simbolicamente, por meio de dizeres mais ou menos alegóricos, mas é próprio do autor dramático possuir essencialmente os dons de esquematização e de dedução lógica. A própria limitação no espaço e no tempo, a que a técnica não dá solução senão imaginável ou imaginária, obriga todas as personagens a viverem com sentimentos cristalizados perante as leis morais e sociais, em seus conflitos autónomos e heterónomos.



Henrique Bergson




(...) No teatro, dadas as restrições de espaço e de tempo, as acções visíveis são geralmente as que mútua e reciprocamente praticam duas pessoas, em diálogo que pode ir sendo alterado por quem mais estiver ou entrar em cena. No palco, visíveis, significativos e decisivos são os actos representivos do mal, desde o crime bárbaro e violento até à mais refinada e subtil injúria. O espectador assíduo a representações teatrais convencer-se-á de que os actos são sempre três, fáceis de prever, e pouco variáveis, afinal.

A mesma sobriedade de actos tem seu paralelo também nas palavras. Em Matière et Mémoire já Bergson havia dito: "Conforme for a natureza da peça que se representa, os movimentos dos actores serão mais ou menos extensos: quase tudo, se for uma pantomina; quase nada, se for uma delicada comédia". Em La Pensée et le Mouvant esclarece melhor: "No teatro, cada actor diz só o que é preciso dizer, e só faz o que é preciso fazer; as cenas são muito bem recortadas; a peça tem um começo, um meio e um fim; e tudo está disposto do modo mais parcimonioso possível em vista a um desenlace, que será feliz ou trágico".

A tendência romântica para confundir a arte com a vida levou a misturar os processos destes três géneros de literatura. Bastará citar os nomes de três dramaturgos, Shakespeare, Victor-Hugo e Maeterlinck, para exemplificar os casos mais notáveis de interferências do romance e da poesia no drama. Todavia ao crítico subtil será possível distinguir o que a cada obra de arte é essencial e clássico.

Acerta Bergson ao mostrar que o teatro não tem por fim descrever estados de alma, como a poesia, nem progressos de sentimento, como o romance, mas conflitos entre o ser natural do homem e a sua condição social. Assim descreve em Le Rire "O drama dá à natureza a sua vingança sobre a sociedade. Ora irá direito ao fim; então chamará, do fundo para a superfície, as paixões que fazem saltar tudo. Ora obliquará, como faz mais vezes o drama contemporâneo; então nos revelará, com uma habilidade por vezes sofística, as contradições da sociedade consigo própria; exagerará o que pode haver de artificial na lei social; e assim, por um meio desviado, dissolvendo desta vez o envólucro, far-nos-á também atingir o fundo. Mas nos dois casos, quer enfraqueça a sociedade quer reforce a natureza, persegue o mesmo objecto, que é descobrir-nos o elemento trágico da nossa personalidade".

Num passo célebre do mesmo livro, mostra Bergson o carácter das personagens, no declive da tragédia para a comédia, como da individualidade para o tipo, para o género, para a multidão. Isso observa-se até nos títulos. Assim na tragédia mais própria de elementos psicológicos e sentimentais, figura geralmente como título um nome próprio, significativo da individualidade superior do herói ou da heroína, enquanto os nomes comuns ou colectivos servem de título às comédias, mais próximas do entendimento do vulgo, mas já distantes da subtilieza da análise psicológica. Bergson atribui, porém, maior efeito sugestivo à tragédia do que à comédia, porque "a sinceridade é mais comunicativa".

O carácter social do teatro aparece não tanto na condição de ser um espectáculo, e portanto público, como na sua temática ética, moral e política, a qual dá motivo a que os legisladores prevejam e limitem a acção sugestiva dos autores sobre proletários e pequenos burgueses. O teatro tem sido utilizado para simbolizar os conflitos religiosos e os conflitos políticos, por quantos lhe atribuem uma função social. Com efeito, muitos dramaturgos utilizam o palco para defenderem a utopia segundo a qual será um dia instaurado um regime político que ponha fim a todas as injustiças sociais, tanto as silenciadas como as clamantes, em toda a face da Terra.

Há, no entanto, uma lição que o teatro concede a toda a gente, mas de que só tiram proveito os espectadores inteligentes. Essa lição é a de que o verdadeiro progresso da humanidade não é ético, moral ou político. Essa lição é dada pela inevitável presença do mal, - da maldade ou da malícia, no dizer de Bergson, - razão ou causa dos conflitos representados no protagonista ou no antagonista, quer estes se apresentem com nomes próprios e vestes figurativas, quer se apresentem em alegorias que se esfumam na abstracção intelectual».

Álvaro Ribeiro («Escritores Doutrinados»).







«O que primeiro faz é a personagem. Como se se fizesse a si próprio pois sem personagem não há actor.

A matéria de que o actor dispõe para fazer a personagem são a máscara e as palavras. São elas, máscara e palavras, ou assim se tornam no movimento que precede o teatro, absolutamente indissolúvel. O que lhes falta, para que a personagem se faça, é a imagem que reside na presença sensível, isto é, audível e visível. É com o seu corpo, com os seus gestos e com a sua voz que o actor faz a imagem da personagem.

Feita a imagem, a personagem torna-se um ser vivo. Nunca a personagem se poderá confundir com uma figura simbólica ou alegórica ou emblemática que está ali para significar o que ali não está, pois um ser vivo não é símbolo nem alegoria nem emblema e, ao chegar a hora da morte, conclui, como disse Shakespeare, que "nada significa". No teatro didáctico dos jesuítas, extinto há três séculos mas continuando a arrastar pelo mundo seu nauseabundo cheiro e obsceno impudor nas récitas colegiais das criancinhas vestidas de fadas e de anjos, no exibicionismo dos grupos de estudantes universitários e de trabalhadores sindicalizados muito culturalmente subsidiados pelo Ministério da Cultura e no marxismo aos quadradinhos fornecido pela didáctica das variedades teatrais brechtianas, aí é que só há, em vez de personagens, figuras simbólicas, alegóricas e emblemáticas.

No sentido rigorosamente inverso dos seres vivos reais – cuja existência começa na presença do corpo e se completa quando a voz adquire a forma das palavras –, os seres vivos teatrais começam a existir nas palavras ainda sem voz, que é o que faz o autor, e completam-se quando o actor lhes acrescenta a voz e a presença do corpo. Coisas como a mímica, a pantomima e a "expressão corporal" não são mais do que exercícios, e os mais elementares entre muitos outros, de aprendizagem da arte de representar. São coisas que, ao chegar a hora de vir para o palco, o actor tem de deixar fechadas em casa, na gaveta onde se guardam os brinquedos de infância.

Como os seres vivos reais, também os seres vivos teatrais têm maior ou menor profundidade. Mas acontece que no teatro, ao contrário do que acontece no mundo, não dá lugar para os seres vivos de pouca ou nenhuma profundidade, equivalentes daqueles seres vivos reais que, como dizia Leonardo, são apenas "esboços de alma". A arte do actor reside na dimensão da profundidade que há nos seres vivos teatrais e patenteia-se no modo como faz, do corpo e dos gestos, prolongamentos das palavras.

As palavras dos seres vivos teatrais exprimem-se de modos muito diferentes daqueles em que se exprimem as dos seres reais. A regra, donde derivam todas as regras do teatro, é dar o actor ao que diz o estilo de quem cita ou repete uma frase. Em vez do carácter espontâneo, directo e imediato que têm as palavras ditas pelos seres vivos reais, as palavras teatrais exigem uma suspensão, um intervalo, uma mediação, uma pausa que limpa o teatro de tudo o que é sincero, espontâneo, imediato. A naturalidade é da natureza.

O teatro é o outro da natureza. No mesmo sentido e pelas mesmas razões, a presença que o actor dá à personagem também não é imediata e directa. Tão pouco o é que chega a não ser presença mas uma duplicação da presença, uma re-presença, uma representação. É aqui que o actor fica nas mãos do espectador ou passa para ele o sentido da teatralidade, consoante lhe dá, ou não dá, a sensação de que o que faz o está a fazer outra vez. O facto de o espectador saber que o espectáculo está sendo em cada noite (só à noite é que se faz teatro) uma repetição do que foi nas noites anteriores, mas nada assegurando que não deixe de o ser, imediatamente lhe afeiçoa a alma para receber essa sensação.

Aqui se abre o abismo que separa o teatro de todas as artes do espectáculo, desde a naturalidade do circo até à mecanização do cinema: desde o circo que, percorrendo a distância que vai de palhaço caído em terra à trapezista voando no céu, tem por conteúdo sublimar a natureza e por ideal copiar a religião, até ao cinema que, condicionando a expressão pela nadificante mecânica, «socorro do nada», tem por conteúdo a vulgarização e por ideal a vulgaridade.







Só a tauromaquia se ergue em face do teatro, apesar do envilecimento a que a têm querido dobrar o plebeísmo do "toureio a pé" e a grosseria da "pega de forcados". Só, desde a comum origem de ambos, a tauromaquia fica em face do teatro como o dia em face da noite, como o luminoso sol dardejando seus raios, setas ou ferros de anjo montado sobre o animal Funerário que é o cavalo, em face da negridão das trevas subterrâneas onde habitam as Erínias, as Euménides e as Fúrias das tragédias gregas e donde emerge o representativo touro cujo sacrifício é o equivalente tauromáquico do sacrifício teatral do bode mitológico».

Orlando Vitorino («O que o actor faz», in «Ensaio», n.º 5, Primavera de 1982).





A situação cultural e política do Teatro ou situação teatral da cultura e da política 


Foram apenas oito dias. Uma companhia de teatro – a sério – no Funchal. E apenas oito dias. A companhia era a do «Teatro d’Arte de Lisboa». O seu director, nosso visitante já habitual, Orlando Vitorino. Aqui estaremos à frente dele.

- Vamos falar de teatro? 

- Só de teatro?

Outra vez de teatro? 

- Ou do que quiser. Quer uma sugestão?

- Diga.


Onde se começa por falar de cultura e de política 


- A política pode ser útil à cultura, ou mais especificamente, à cultura teatral? 

- A política só pode ser útil à cultura, ou ao teatro, quando os políticos (que no nosso país são toda a gente) se convencerem desta verdade muito simples: a política nada tem com o teatro. E, sempre que os políticos intervenham, a política só pode ser nefanda para a cultura.

- Não vamos tão depressa. Procuremos entender-nos. Diga: não há um teatro político? 

- É evidente que não há. O Teatro não é adjectivável. É só teatro. Dizer teatro político tem tanto sentido como dizer teatro infantil.

- Mas fala-se em teatro infantil... 

- Claro. É o teatro para as crianças. Ora para quem seria, para quais crianças seria, o teatro político!

- Não consigo entender. 

- É que o teatro para crianças não tem nada a ver com o teatro. As crianças não têm a possibilidade de ser espectadores de teatro. Para ser espectador de teatro é imprescindível ter já passado pelo mal, conhecer a existência do mal no mundo.

- Insisto, todavia faz-se um teatro expressamente destinado às crianças...

- É uma infantilidade. Não pode ser teatro.

- Quer então dizer que os políticos são como as crianças? 

- Num sentido, se considerarmos a maioria das pessoas que a injustiça e o ressentimento atiram para as mãos dos políticos, poderemos dizer que os políticos são mais infantis, mais ingénuos e mais desprotegidos do que as crianças. Noutro sentido, se considerarmos os que aliciam as vítimas da injustiça e do ressentimento, diremos que os políticos são o contrário das crianças, isto é, são aqueles que só conhecem do mundo o mal que há nele.

Orlando Vitorino



- Mas a política não condiciona a cultura? 

- A política, se for alguma coisa, é o mais pobre e o mais baixo ramo da cultura. Não pode portanto, a não ser em períodos de subversão cultural, como o que estamos vivendo, condicionar o que está acima dela, seja a literatura, seja a filosofia, seja a religião.

- Você põe em dúvida que a política seja alguma coisa!? 

- Como receio que tal assunto ultrapasse a medida de uma entrevista, permito-me o abuso de dizer que já o tratei em livro. Com efeito, a política é apenas um nome que herdámos dos gregos e que designa aquela realidade que, em rigor, é para nós homens de hoje, o direito.

- Se acaso estamos, como você diz, num período de subversão cultural, então sempre há um condicionalismo da cultura pela política, seja embora negativo! 

- Decerto que há. E havendo, de certo que é negativo.

- Como se manifesta ele? 

- De muitos modos. Uns provêm daqueles que se julgam ou gostam de se apresentar como vítimas de uma política dominante. Outros, provêm efectivamente da política dominante. Outros, enfim, e são os mais graves, do conúbio mais ou menos tácito entre dominantes e dominados.

Ao fim de dois anos de acção de um novo governo em Portugal, já estão à vista os resultados que são mais divertidos que interessantes. Aliás, o actual Chefe do Governo, quando foi ministro da Presidência, já tinha revelado o seu interesse em desfazer as confusões que, sobretudo nos domínios literários, plásticos e jornalísticos, tinham criado ao abrigo da política muitas vazias celebridades.

- A que se refere? 

- Às manifestações que receberam o nome «trinta anos de política do espírito». Consistiram elas numa grande exposição de escritores e artistas premiados pelo S. N. I., em concursos a que eles próprios livremente concorreram, isto é, premiados por terem solicitado, ao S. N. I., que os consagrasse dando-lhes um prémio. Verificou-se então como grande parte dos mais ferozes e íntegros oposicionistas tinham solicitado e recebido essa consagração. Juntamente com essa exposição, o actual Chefe do Governo, então ministro da Presidência, promoveu um festival de teatro que mostrou como muitos dos dramaturgos que se apresentavam como mais integradamente oposicionistas eram beneficiários das disponibilidades que o Estado dá às empresas teatrais da sua maior confiança como seja a do Teatro Nacional.


O que veio a acontecer a certos dramaturgos 


- Isso aconteceu há cerca de 14 anos. É essa ainda hoje a situação! Os escritores e artistas em geral, continuam a beneficiar de uma situação a que dizem opor-se? Faço esta pergunta na medida em que, por um lado, escritores e artistas que dizem ou que se dizem proibidos e até malditos, são, por outro lado, os escritores que precisamente desfrutam de maiores possibilidades e gozam de maior propaganda. 

- Foi isso o que com algumas medidas muito simples e fáceis, o actual Chefe do Governo veio esclarecer. Bastou por exemplo uma certa abertura da censura teatral para imediatamente se verem representados os dramaturgos que mais perseguidos se diziam. As consequências dessa representação foram em dois sentidos: num sentido verificou-se que tais autores não tinham o valor que lhes era atribuído como autores de peças «malditas»; foi o que aconteceu a Luís Stau Monteiro, Bernardo Santareno e Alves Redol. Noutro sentido, pôde verificar-se como esses e outros dramaturgos têm gozado das possibilidades dadas pelo Estado às empresas que o Estado reconhece como mais importantes. Assim, têm sido representados pela poderosa Companhia do Teatro Nacional, nas condições de maior carinho recusadas a dramaturgos mais significativos e mais categorizados, peças de Bernardo Santareno, Luís Francisco Rebelo e outros. A quem essas condições, ou essa representação foram, e continuam a ser recusadas, é a dramaturgos como José Régio ou, para dar um exemplo que a Imprensa não quis transformar em escândalo, como Afonso Botelho.






- Não se importa de novamente analisarmos devagar as suas declarações? 

- Com certeza.

- Em primeiro lugar: Alves Redol, se é a peça a «Forja» que está em causa, nunca tinha sido antes representada. E agora não é no Teatro Nacional que está em cena. 

- Sem dúvida. Alves Redol (aliás uma personalidade de muita simpatia e autor de um ou dois romances com inegáveis qualidades) tinha entregue a sua peça ao «Teatro da Estufa Fria» que a apresentou à censura e obteve a aprovação dela. De posse dessa aprovação o autor preferiu retirar a peça daquele teatro, que é um teatro popular, social, e com entradas gratuitas para espectadores, e entregá-la à empresa de Vasco Morgado que é, por excelência, a empresa do teatro burguês.

- Em segundo lugar: você disse que José Régio não tinha representado no Teatro Nacional. Ora pelo menos a peça «Benilde» foi lá representada. 

- Sem dúvida. Mas só essa. E essa mesma, quando eu a quis representar, há cerca de sete anos, foi proibida pela censura apesar de ela se encontrar já em ensaios gerais. A mesma proibição caíu sobre o «Don Sebastião». E «Jacob e o Anjo» só subiu à cena há dois anos, no «Teatro da Estufa Fria», depois de, em duas tentativas frustradas, a empresa do Nacional a não ter conseguido representar.

- Em terceiro lugar: ignoro qual seja o caso de uma peça de Afonso Botelho a que você se referiu. 

- Além de profundo e sério ensaísta filosófico, Afonso Botelho é autor da novela «O toiro celeste passou» que é a mais original, actualizada e inspirada obra de ficção da literatura portuguesa posterior à guerra. Mas Afonso Botelho, não sendo um político, dá sempre a sua adesão intelectual às modernas gerações monarquistas. É portanto um escritor segregado. Também escreveu uma peça de teatro, considerada notável, não só por mim mas por autoridades como José Marinho, Álvaro Ribeiro e José Régio. Não sendo um político, Afonso Botelho utilizou o direito para fazer representar a sua peça e apresentou-a ao concurso, instituído mas raras vezes efectivado, pelo Teatro Nacional. Aconteceu-lhe ter sido a sua peça, «O hábito de morrer», aprovada neste concurso e a companhia concessionária não teve outro caminho senão representá-la. As condições em que tal representação foi feita obrigaram o autor a recorrer ao Ministério que chegou a multar aquela companhia. Como o tempo era de chuva até os bengaleiros foram fechados ao público.

- Considera então que as medidas do actual Governo são favoráveis à cultura? E até onde pode ir esse favor? 

- Continuamos em plena subversão cultural. As medidas do Governo foram, até agora, as mais fáceis, singelas e imediatas. Continua tudo por fazer e o mais importante é, desde já, despoliticizar a cultura. Não apenas nas instituições oficiais mas também nas opiniões dominantes (que se apresentam quase todas com a máscara oposicionista; agora até nos salões plutocratas está na moda mostrar-se da oposição e bradar em defesa das vítimas da plutocracia), e sobretudo nas mentalidades. É bom, todavia, que se faça o mais singelo e imediato: limpar as instituições, não só as do Estado mas também as particulares (por exemplo, essa temerosa Sociedade de Autores Teatrais) e aprovar uma lei do teatro e do cinema que está a ser elaborada há longos anos e que o actual Governo prometeu que começaria a ser executada no mês de Setembro.


Uma reforma de mentalidade 


- Para cá dessas medidas singelas e imediatas, há um problema de mentalidade, de informação e de cultura, não é verdade? Nós estranhamos, muitas vezes, uma perseverante preocupação em rotular os escritores e em julgá-los, depois, por esses rótulos. 

- Tenho por vezes a impressão de que as nossos homens de letras, todos muito empenhados em afirmarem um certo progressismo outrora exclusivo das esquerdas anticlericais, carecem de figuras que se possam apresentar como o oposto deles. Qualquer coisa de análogo ao que os homens da direita fazem para manter as figuras dos políticos de oposição, segundo um processo que se tornou mais patente depois das últimas eleições, quando vemos serem tomados e reconhecidos como forças políticas homens que apenas obtiveram um ridículo número de votos. Adoptando um processo análogo, para reforçarem as suas veleidades progressistas, os homens de letras vão escolher ou denunciar adversários onde eles não existem e, até em personalidades e em livros onde se encontram verdadeiramente as doutrinas, as imagens e as ideias que contribuem para a evolução e o progresso da humanidade. Claro está que estas personalidades, dotadas de um amor de verdade que a generalidade dos homens de letras infelizmente não possui, e tranquilos pela sua obra onde livremente disseram aquilo que pensam, não se preocupam em refutar, com documentos iniludíveis, as estultas acusações que lhes são feitas, de um modo mais cauteloso, irresponsável e anónimo na imprensa e nas tertúlias de Lisboa, de um modo mais claro e ostensivo nos jornais de que dispõem nas cidades de província. Acontece assim podermos ver atribuir a homens com a nobreza, rectidão de atitudes e actos e clareza de afirmações designações estultas como o estafado e antiquado rótulo de reaccionários ou extremistas de direita. Tal designação já vimos serem atribuídas, com uma espantosa ignorância e infantil atrevimento, a personalidades como Domingos Monteiro, Álvaro Ribeiro, Natália Correia ou José Régio.

Natália Correia com Dominique de Roux. Ver aqui


 Da crise do romance à crise da civilização 


- Referiu-se V. a Afonso Botelho como um original e singular novelista e falou de Alves Redol como um novelista de alguma qualidade mas sem relevo. A opinião dominante no entanto ignora as novelas de Afonso Botelho e celebra as de Alves Redol. Como se explica tal contradição? 

- Em primeiro lugar, as coisas são o que são e o que se diz delas é o que se diz delas. Por motivos políticos, Afonso Botelho (como alguns outros) é um escritor segregado e Alves Redol um escritor celebrado. O que é certo é que o talento, a imaginação e a arte de Afonso Botelho situam-se para aquém da reconhecida crise e falência do romance como género literário que teve a sua época, a época do predomínio triunfante da burguesia novecentista. Alves Redol como todos os celebrados romancistas portugueses seus epígonos têm ainda do romance a concepção anterior ao reconhecimento da sua falência, isto é, têm uma concepção burguesa do romance e de toda a literatura. É isto que explica em grande parte a contradição a que você se refere e é também o que explica uma contradição mais diversa que reside nisto de a cultura socialista ou socializante estar a recorrer aos bons serviços da literatura burguesa.

- Esta sua observação está de acordo com o que você escreve no seu último livro, «A Idade do Corpo», quanto à identidade entre o socialismo e o capitalismo, não é verdade? 

- É verdade. Esta observação é apenas a verificação de uma pequena consequência local dessa identidade que constitui a grande hipocrisia política do nosso tempo. Contra ela, a denunciá-la, talvez só a denunciá-la, apenas se erguem as vozes da contestação estudantil. Os estudantes, aqueles estudantes que se não têm deixado iludir pelas aliciações dos políticos, revelam uma originalidade de pensamento virtual que, infelizmente, nenhum pensador do nosso tempo, e muito menos nenhum literato do nosso país, conseguiu assumir. Repare que a contestação estudantil pôs de lado todas as formas de arregimentação política - «aí vêm os crápulas dos comunistas» gritaram os estudantes franceses em revolta para os chefes do P. C. F. – como atirou para trás pensadores de actualidade até então inegável: Sartre ou Luckacs. De hoje em diante deixou de ter sentido a simplista distinção das ideologias políticas e das estruturas sociais. A juventude estudantil mostra, com um vigor que ninguém consegue vencer, que do que se trata agora é de transformar a nossa civilização.

- Que se deve entender por essa transformação? 

- Fundamentalmente, de atribuir ao mundo do espírito aquela realidade que imediatamente se atribui ao mundo sensível. Ficamos assim muito distantes dos mesquinhos problemas «artesanais e domésticos» dos políticos e dos literatos que desfrutam a efémera glória do mando ou das calúnias dos jornais. As portas do mundo do espírito têm sido, nesta nossa multissecular civilização, guardadas pelas instituições universitárias. Aí portanto teria de se travar a disputa a que se deu o nome da contestação.

- Você dê-me licença. Vamos fazer um intervalo. Os assuntos de que acabámos por falar são demasiado graves para continuarmos a conduzi-los à maneira de uma conversa de café. Se não se importa continuaremos depois esta entrevista. Orlando Vitorino concordou e o mais que nos disse será o que publicaremos oportunamente.

Continuamos hoje a conversa com Orlando Vitorino. A parte que publicámos na edição do último domingo foi conversada horas antes da estreia do «Teatro d’Arte de Lisboa» no Funchal. Entretanto, os espectáculos realizaram-se e provocaram as mais diversas e perturbantes reacções. Vimos por exemplo na estreia de «Amantes e Triunfantes» alguns espectadores ofendidos com as referências que uma das personagens fazia à personalidade educativa das freiras, mas pudemos assistir, numa repetição da mesma peça, à simpatia e até concordância que algumas freiras, assistindo ao espectáculo, manifestaram por essas referências. Este exemplo é um entre muitos dos que aconteceram durante a espectação das peças do «Teatro d’Arte». 

Ao mesmo tempo, é conveniente assinalar que estas peças não tiveram o condão de despertar o interesse do numeroso público que costuma assistir a outro género de espectáculos como os de uma companhia de comédia que há alguns meses nos visitou e teve sempre as salas cheias e os bilhetes disputados até no mercado negro pelo«exigente» público do Funchal. Todavia, esses espectáculos morrem e são esquecidos por toda a gente logo que cai o pano, ao passo que os do «Teatro d’Arte» ainda não deixaram de ser motivo de discussão e sobretudo de esclarecimento cultural e artístico.






Deve notar-se ainda que Orlando Vitorino soube acompanhá-los, espectáculos de arte que eram, de uma espécie de campanha cultural: ofereceu sessões a estudantes, realizou colóquios e deu até aulas em colégios. Alguns de nós – de certo modo é o que estamos a fazer neste momento – não tivemos a ousadia de lhe negar a colaboração. 

De tudo isto resulta que esta brevíssima temporada foi um acontecimento cultural na nossa ilha. Ao mesmo tempo uma prospecção do estado de receptividade cultural em que nos encontramos. 


Fala-se do público de «A Ilha» e da ilha 


- Decepcionado, Orlando Vitorino, com as reacções do nosso público? 

- De modo nenhum. De há cinco anos para cá, todos os anos tenho vindo à Madeira sempre por motivos culturais e artísticos: três vezes com teatro, uma vez a acompanhar o «Grupo Gulbenkian de Bailado». De cada vez fico sempre mais interessado em voltar.

- Mas não reconhece que há uma certa resistência, seja embora de alguns sectores, a estas suas iniciativas? 

- Com certeza. Mas tal resistência estava por um lado prevista e, por outro lado, é o sinal daquilo que deu o título a uma peça de teatro: «Hopláhá! Estamos Vivos!» Além disso há as características de uma população que vive há cinco séculos na mais vegetal de todas as ilhas.

- Que tem isso a ver...? (nós estamos sempre em guarda com o nosso entrevistado que, até nos assuntos mais versados, tem uma maneira irónica de falar). 

- A natureza vegetal é a mais parada, quieta e tranquila de todas as naturezas. É também a mais edénica. E sobretudo a que mais solicita, alicia e seduz o corpo, a que mais nos impele a darmos ao corpo o predomínio da nossa existência. Dois dos nossos actores entretinham-se a brincar com os outros dizendo-lhes que estavam a criar raízes à flor da pele. Ora o corpo é quase sempre adversário do espírito e o teatro é um dos templos do espírito. Os madeirenses resistem até à vida social: são fechados e importantes. Como é que não hão-de oferecer ao teatro uma resistência tanto mais forte quanto ela é a salvaguarda da sua natureza de ilhéus a viverem numa ilha vegetal e paradisíaca?

- Mas não observou essa resistência da parte dos jovens que aderiram imediatamente aos espectáculos? 

- Pois não.

- E, então?!

- É que os jovens ainda é no corpo que têm o seu lugar natural. Sabem portanto que não devem resistir à presença do espírito.

- Que está a ser: confuso ou demasiado filosófico? 

- Talvez as duas coisas.

- Continuamos? 

- Estou às suas ordens.

- Posso então assumir uma atitude crítica? 

- Com certeza. Já me viu alguma vez recusar ou fugir às críticas que me podem ser feitas? Já me viu alguma vez zangado, magoado ou ofendido por alguma crítica, até a mais infundada?

- É talvez porque é o primeiro a criticar-se a si próprio.

- Talvez.






 Um pouco de autocrítica 


- Quer fazer alguma autocrítica? 

- Uma autocrítica ou uma confissão?

- O que lhe queira chamar. 

- Primeira confissão: sou um preguiçoso e antes dos espectáculos havia defeitos resultantes dessa preguiça.

- Por exemplo? 

- As «pernas» das bambolinas foram colocadas demasiado dentro do palco. Eu tive preguiça de emendar essa colocação.

- Quer-me parecer também que o tratamento da luz de cena era demasiado rudimentar e empobrecido por isso o espectáculo. O motivo foi o mesmo? 

- Não. A luz da cena deve fazer-se com muitos projectores e um aparelho a que se chama «orgão das luzes». Trata-se de instrumentos que devem existir em todos os palcos. O seu custo é da ordem das centenas de contos e o transporte, por incómodo. Não pode ser feito numa digressão como a nossa. O vosso teatro Municipal, que é duma bela e funcional arquitectura, não tem qualquer apetrechamento luminotécnico. As obras realizadas há três anos só atenderam à comodidade dos espectadores e não tocaram numa tábua do palco. Inexplicavelmente aconteceu isso no vosso teatro como acontece na maior parte dos teatros onde as Câmaras Municipais mandam fazer obras. Tudo indica que é o contrário o que se deve fazer: primeiro, apetrechar o palco e depois tratar dos assentos dos espectadores que afinal se vão assentar neles para verem o que se passa no palco. Sem projectores, e só com as lâmpadas da ribalta e das gambiarras (quase como há cem anos) nada se pode fazer. Lembro-lhe que a Fundação Gulbenkian está a atender todos os pedidos de sociedades recreativas e grupos de amadores para serem apetrechados com uma instalação luminotécnica. Em breve, todos os grupos de amadores poderão dispor de recursos de iluminação que os profissionais não possuem. É uma situação paradoxal, mas é isso que acontece.

- Outra pergunta crítica: A peça «A Curva» tinha um cenário que se me afigurou... como hei-de dizer... descuidado. Como se justifica? 

- Em primeiro lugar, devo reconhecer que V. tem razão. Depois deste reconhecimento, posso justificar-me dizendo que a peça inicialmente designada para esse espectáculo não era «A Curva» mas sim o «Verão de Romain Weingarten». Esta peça só se pode representar com cenário complexo. Ensaiamo-la durante dois meses mas os apuros que exigia não nos permitiram tê-la pronta ao iniciarmos esta digressão. Por isso a substituímos por «A Curva» de que só havíamos feito os ensaios da representação destinados a espectáculos que se realizariam depois de regressarmos a Lisboa. Esta substituição obrigou-nos a um cenário de recurso, que foi o que você viu e agora critica com razão. Do ponto de vista puramente teatral, e dado o carácter puramente teatral do espectáculo onde «A Curva» foi incluída, os cenários, embora assim descuidados, não prejudicavam o que o espectador poderia ver na peça.

- Agora uma observação regionalista: é convicção entre o nosso público que as companhias em digressão apresentam as peças de modo diferente daquele em que as apresentam em Lisboa. É isso o que vai acontecer convosco? 

- De modo nenhum. Como sabe, esta digressão tem a singularidade de ser realizada antes dos espectáculos serem estreados em Lisboa. Você que assistiu à última reunião da Companhia verificou como tudo está previsto para a apresentação em Lisboa. E posso assegurar-lhe que os lisboetas verão os espectáculos tal como foram vistos no Funchal.

- Não haverá alterações nos cenários? 

- Em princípio, nenhuma alteração estava prevista. Verificámos, no entanto, que se podia melhorar, mas num sentido ainda mais simples o cenário de «O Carrasco...». A simplicidade que tanto parece ter chocado certos espectadores do Funchal (com excepção do meu amigo Aragão que entre outras coisas é também pintor e que me observou como o cenário da peça «Amantes e Triunfantes» teria em demasia a única árvore que a constitui) será ainda mais acentuada nos espectáculos em Lisboa. Como creio que V. sabe, eu entendo que a cenografia deve ser tão simples que o espectador não dê sequer pela sua existência. Tão simples que possamos até aboli-la definitivamente. O Teatro Grego não tinha cenários. O teatro de Shakespeare limitava-se a uma legenda para determinar o lugar da cena. O grande teatro espanhol do «siglo de oro» também não tinha cenários. A cenografia é uma invasão do teatro pela arte burguesa dos renascentistas e sobretudo dos novecentistas, isto é, uma imposição das épocas que menos teatro tiveram.






 Fala-se outra vez do público 


- Ponho-lhe agora uma questão em que, o que ela tem de crítico é a seu favor. A peça «O Carrasco...» foi alvo dos comentários mais «desconcertantes» por parte do público. As pessoas, parece-me, que não a compreenderam a julgar pela forma como se escandalizaram. O que já me parece estranho é que estas mesmas pessoas vêem efectivamente no cinema isso que, escandalizadas, quiseram ver naquela peça e nada se impressionaram. Como explica o fenómeno? 

- Em boa justiça, deve dizer-se que foi só o público da estreia e não o do segundo espectáculo que assim se escandalizou. Era o público mais formal, quer dizer, aquele conjunto de espectadores constituído numa parte, pelos que gostam de conservar os costumes e, noutra parte, pelos que dizem querer transformar os costumes. O que os escandalizou não foi o motivo superficial de a peça abrir com a entrada de uma prostituta na cela de um condenado à morte para passar com ele as últimas horas. O motivo do escândalo foi sim, representar-se nessa introdução o requinte da crueldade mortífera dos homens (de todos os homens?). Como sabe, o assassínio não é exclusivo dos criminosos juridicamente determinados. O requinte da crueldade dos homens, em geral, era representado nessa cena inicial da cena. Há um livro inglês famoso, embora hoje muito esquecido, que se intitula «O assassínio como obra de arte» e se ocupa da arte cada vez mais generalizada de assassinar homens sem o risco das sanções legais. Ora os espectadores da estreia, de todas as nossas estreias, sentaram-se na sala demasiado solenes e hirtos para poderem sair de dentro de si.

- E como explica a atitude contrária perante os filmes? 

- Em primeiro lugar, porque o espectador de cinema é um espectador puramente receptivo, passivo e adormecido. Observa as imagens do filme como se estivesse mergulhado num sonho sem pesadelo. Em segundo lugar, porque o teatro tem uma força de choque e de impressividade que inquieta e perturba o público mais solene e mais cheio de si mesmo. Veja como a censura oficial, ou as censuras particulares, não raramente autorizam e até festejam publicado em livro ou projectado em cinema aquilo que proíbem quando representado em teatro. Apesar de o teatro ter uma audiência muito mais reduzida do que aquela que o livro pode ter e que o cinema tem efectivamente.

- A Secretaria de Estado vai enviar-nos dois espectáculos da Casa da Comédia. Teremos de novo teatro no Funchal com a representação das peças: «A Dança da Morte» de Strindberg e «Os Dias Felizes» de Samuel Beckett. A primeira que vi em Lisboa e considerei depois nas colunas deste jornal como o melhor espectáculo teatral do Outono, é uma obra consagrada desde os fins do século passado. Quanto à segunda, que pensa dessa peça? 

- Os nossos mesmos espectadores terão a oportunidade de ver uma peça que, estando na mesma linha dos nossos espectáculos, trás, no entanto, a autoria do último escritor laureado com o prémio Nobel, um prémio destinado a impor-se não só aos suecos e seus serventuários, mas também às pessoas solenes e hirtas que se escandalizaram com a modesta peça de Jack Richardson. Isto não significa que Beckett seja menos do que é. E o que é constitui algo do que de mais importante e original produziu a literatura dos nossos dias. A sua contribuição ao teatro moderno consiste, sobretudo senão exclusivamente, na obra-prima «À espera de Godot», obra admirável que um público politiqueiro de direitas pateou no espectáculo de estreia em Lisboa e que os articulistas arregimentados na esquerda patearam o ano passado em todos os jornais «bem pensantes» portugueses.


A opinião «bem-pensante» 


- Desconcertante é, sem dúvida, o que se lê por vezes e se ouve dizer acerca do teatro em Portugal. Críticos e ensaístas que são tidos por competentes e considerados, dizem, não poucas vezes, não haver teatro no nosso País, visto o que se faz ser mau. Todavia, é também frequente assistir-se ao «encantamento» dessas mesmas pessoas por esta ou aquela realização teatral. Em que se fica, afinal? 

- A sua observação imediatamente nos situa perante uma consequência da mentalidade «bem-pensante» a que nos estávamos a referir. Para ela, pensar é sempre «pensar bem», e pensar bem é sempre pensar de acordo com o que toda a gente pensa. Forma-se assim uma opinião original e singular. Dizer o que toda a gente diz é assegurar imediatamente os aplausos, os êxitos e até as benesses e os lucros. Como vimos no início desta entrevista, até nos salões plutocratas é de bom tom defender as vítimas das hierarquias triunfantes. A nossa imprensa, os nossos articulistas, os nossos críticos e escritores, até os sacerdotes no púlpito, estão sempre prontos a rectificar, a corrigir os juízos que anteriormente fizeram. Há carreiras literárias e políticas que começam na Mocidade Portuguesa e acabam no neo-realismo, sempre com a bandeja estendida a receber benesses e aplausos. Fatalmente, esta mentalidade cria as suas vítimas, geralmente escolhidas precisamente entre aqueles que alguma vez se distinguiram por lhe serem mais servis. Acontece assim a todos os encenadores que, sem talento próprio, até sem gosto e sem opiniões próprias, ganharam certa celebridade reproduzindo nos palcos de Lisboa o último êxito dos palcos de Paris ou de Londres. E o mesmo se dirá dos dramaturgos que reproduzem os processos efémeros das peças de literatura mais fácil. Os críticos que na ocasião, obedecendo à ditadura dos «bem-pensantes», elogiaram essas obras e essas realizações efémeras, vêem-se dentro em pouco tempo a ensacá-las numa totalidade, que será o teatro português em geral, para assim as poderem condenar em nome das novas formas de opinião «bem-pensante». Tudo isto é o resultado da ausência de amor pela verdade e da incapacidade, em que a maior parte dos nossos contemporâneos se encontram, de pensarem por si próprios. Sartre disse um dia que os homens estavam condenados à liberdade. É certo que hoje, mais do que nunca, os homens se recusam à liberdade porque, mais do que nunca, se recusam a pensar por si próprios.






- No decorrer desta nossa conversa, V. falou no Teatro da Estufa Fria. Ora o que acontece é que o ambiente que rodeia a acção desta companhia, nos jornais e nas tertúlias artísticas, não é dos mais favoráveis. Em seu entender a que se deve isto? 

- O Teatro da Estufa Fria é uma realização destinada a oferecer teatro gratuitamente, às classes populares de Lisboa. Oferecer assim teatro ao povo, é uma das reivindicações, um «nariz de cera» da mentalidade chamada progressista. Ora assistindo essa realização promovida e mantida por uma instituição oficial como é a Câmara Municipal de Lisboa, aquele «nariz de cera» deixa de ser utilizável. Há tempos, uma senhora brasileira de política confessadamente comunista falou comigo da exigência e da vantagem de se oferecer teatro gratuito ao povo e ficou deveras surpreendida, até pasmada, ao saber que existia em Lisboa um teatro permanente com essa finalidade. O seu pasmo foi tão grande que, dir-se-ia, tal facto modificou a opinião feita sobre o carácter da política cultural portuguesa. Claro que são discutíveis os modos e processos como funciona o Teatro da Estufa Fria. É, desde logo, inadequado o processo de uma companhia se ver obrigada a ensaiar e apresentar um espectáculo por mês, o que só tem sido material e fisiologicamente possível graças ao empenho e ao «ofício» do director dessa companhia que é o grande actor Augusto de Figueiredo. Também é discutível – ponto mais sensível e subtil – o repertório que é seleccionado directamente pelos serviços camarários. Com efeito, esse repertório tem uma maioria esmagadora de peças do velho e gasto teatro burguês de finais do século passado e princípios deste século. Paradoxalmente entremeiam-se em tal repertório obras modernas que, acusadas de um difícil entendimento para o público burguês dos outros teatros, as respectivas empresas se não atrevem, por falta de coragem ou de talento, a levar à cena; é o caso de peças como «Jacob e o Anjo» de José Régio, «O Indiferente» de Agustina Bessa-Luís e «O Irmão» de David Mourão Ferreira. Também é paradoxal que certos autores progressistas e populistas tenham recusado ao Teatro da Estufa Fria a estreia de peças originais ao mesmo tempo que autorizam reposições de peças já estreadas nos teatros para burgueses!

- Então porque é que o mesmo ambiente não tem rodeado o Teatro Nacional? 

- Em primeiro lugar porque o Teatro Nacional goza do prestígio das grandes instituições oficiais a que são especialmente sensíveis os dramaturgos e articulistas que se querem dar por mais ostensivamente revolucionários. A maior parte deste género de escritores procura, por todos os meios até aos mais humildes obter a representação das suas peças no prestigioso teatro do Estado Novo. É o caso de Ramada Curto e Carlos Selvagem, na geração mais velha, ou de Luís-Francisco Rebello, Bernardo Santareno e Romeu Correia nas gerações mais medianas. Em segundo lugar, é preciso ter em conta a extrema habilidade com que Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro sempre souberam tratar este aspecto das fraquezas humanas. Foi um dia publicada uma crítica a um espectáculo do Nacional que começava por mostrar que, nessa temporada, a empresa tinha encomendado a tradução das peças a um jornalista de cada redacção de todos os jornais de Lisboa. Finalmente, é preciso ter em conta o enorme prestígio, entre as gerações mais velhas do público, portanto as gerações dominantes hoje na vida política e na vida burguesa, da actriz Amélia Rey Colaço. Para essas gerações ela representa a lembrança da juventude perdida. Por todos estes motivos, a opinião «bem-pensante» só nos últimos anos ousou diminuir a «dignidade» do Teatro Nacional.

- Do Funchal V. vai para Lisboa. Vai apresentar os espectáculos que nós vimos aqui. É-lhe possível a reacção do público? 

- Completamente impossível.

- E a reacção da crítica? 

- Essa é tão previsível como prever a noite a seguir ao dia. No entanto eu não quero tirar a ninguém a oportunidade de se exprimir livremente, de mostrar que é capaz de pensar por si próprio. Por isso, meu caro António Jorge, não lhe passo para as mãos os textos, que lhe poderia escrever, dos diversos artigos que, porventura, virão a ser publicados.

- Vamos terminar?

- Vamos terminar!

- Posso ainda fazer-lhe umas perguntas, talvez inconvenientes? 

- Mas decerto que pode!

- V. é socialista

- Não.






- V. é capitalista? 

- Não. Nem sequer, à maneira de muitos socialistas, por ter rendimentos próprios.

- V. é fascista? 

- Nada disso. Nem socialista, seja à maneira russa ou à maneira sueca, nem capitalista, seja por convicção própria ou por conveniência de ocultos interesses, nem fascista, seja pelo passado seja pelo presente.

- Não lhe posso pôr então nenhum rótulo?

- «Eu sou – diz uma personagem de Shakespeare – um verdadeiro trabalhador: ganho o pão de cada dia com o trabalho de cada dia» – e um personagem de Pirandello acrescenta: «Fora da lei e de certas minúcias de que a vida é feita, não há felicidade possível».


(in Jornal da Madeira, ano XXXIX, números 12069 e 12072, II série, Funchal, 7 e 10 de Junho de 1970, pp. 1 e 9, e 1 e 4. Entrevista de António Jorge Andrade).


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