terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Lágrimas de Heraclito defendidas em Roma pelo Padre António Vieira contra o riso de Demócrito

Diálogo realizado pelo Padre António Vieira










«Que significa o riso? O que há no fundo do risível? O que haverá de comum entre uma careta de palhaço, um jogo de palavras, um quiprocó de vaudeville, uma cena de fina comédia? Que destilação nos dará a essência, sempre a mesma, da qual tantos produtos diversos tiram o seu indiscreto aroma ou o seu delicado perfume? Os maiores pensadores, desde Aristóteles, se têm preocupado com este pequeno problema que sempre se subtrai ao esforço, escorrega, se escapa e torna a reviver, como impertinente desafio à especulação filosófica».

Henrique Bergson («O Riso. Ensaio sobre o significado do cómico»).


«(...) A biblioteca é testemunho da verdade e do erro - disse então uma voz atrás de nós.

Era Jorge. Uma vez mais me espantei (mas muito havia ainda de me espantar nos dias seguintes) pelo modo inopinado como aquele velho aparecia de improviso, como se nós não o víssemos e ele nos visse a nós. Perguntei-me ainda que coisa andaria a fazer um cego no scriptorium, mas dei-me conta em seguida que Jorge era omnipresente em todos os lugares da abadia. E frequentemente estava no scriptorium, sentado num escano junto à lareira, e parecia que seguia tudo aquilo que acontecia na sala. Uma vez ouvi-o do seu lugar perguntar em voz alta: "Quem sobe?", e dirigia-se a Malaquias, que, em passos abafados pela palha, se encaminhava para a biblioteca. Todos os monges o tinham em grande estima e dirigiam-se frequentemente a ele lendo-lhe textos de difícil compreensão, consultando-o para um escólio ou pedindo-lhe luzes sobre o modo de representar um animal ou um santo. E ele olhava para o vácuo com os seus olhos extintos, como se fixasse páginas que tinha vívidas na memória, e respondia que os falsos profetas estão vestidos como bispos e que da sua boca saem rãs, ou quais eram as pedras que deviam adornar os muros da Jerusalém celeste, ou que os arimaspos devem ser representados nos mapas junto da terra do Preste João - recomendando que não exagerassem ao torná-los sedutores na sua monstruosidade, que bastava que fossem representados de modo emblemático, reconhecíveis mas não concupiscíveis ou repelentes até ao riso.

Uma vez ouvi-o aconselhar um escoliasta sobre o modo de interpretar a recapitulatio nos textos de Ticónio segundo o espírito de Santo Agostinho, para que se evitasse a heresia donatista. Doutra vez ouvi-o dar conselhos sobre o modo de, comentando, distinguir os hereges dos cismáticos. Ou ainda dizer a um estudioso perplexo que livro deveria procurar no catálogo da biblioteca, e quase em que folha encontraria a referência, assegurando-lhe que o bibliotecário decerto lho entregaria, porque se tratava de obra inspirada por Deus. Enfim, uma outra vez ouvi-o dizer que um certo livro não era procurado, porque existia, é verdade, no catálogo, mas tinha sido arruinado pelos ratos cinquenta anos antes e pulverizava-se sob os dedos de quem agora lhe tocasse. Ele era, em suma, a própria memória da biblioteca e a alma do scriptorium. Às vezes repreendia os monges que ouvia conversar entre si: "Apressai-vos em deixar testemunho da verdade, que o tempo está próximo!", e aludia à vinda do Anticristo.

- A biblioteca é testemunho da verdade e do erro - disse portanto Jorge.

- Decerto, Apuleio e Luciano eram culpados de muitos erros - disse Guilherme. - Mas esta fábula contém sob o véu das suas próprias ficções também uma boa moral, porque ensina como se paga caro os próprios erros, e além disso creio que a história do homem transformado em burro alude à metamorfose da alma que cai no pecado.

- Pode ser - disse Jorge.

- Porém, agora compreendo porque é que Venâncio, durante aquela conversa de que me falou ontem, estava tão interessado nos problemas da comédia; de facto também as fábulas deste tipo podem ser comparadas às comédias dos antigos. Nenhuma delas narra a história de homens que tenham existido verdadeiramente, como as tragédias, mas, diz Isidoro, são ficções: "Fabulae poetae a fando nominaverunt quia non sunt res factae sed tantum loquendo fictae..."

À primeira não compreendi porque é que Guilherme se tinha entranhado naquela douta discussão, e precisamente com um homem que parecia não amar semelhantes assuntos, mas a resposta de Jorge disse-me como o meu mestre tinha sido subtil.

- Naquele dia não se discutia de comédias, mas apenas da legitimidade do riso - disse Jorge, sombrio.




Arimaspo







E eu recordava-me muito bem que quando Venâncio se tinha referido àquela discussão, precisamente no dia anterior, Jorge tinha afirmado que não se recordava.

- Ah - disse Guilherme com negligência -, julgava que tivésseis falado das mentiras dos poetas e dos enigmas argutos...

- Falava-se do riso - disse secamente Jorge. - As comédias eram escritas pelos pagãos para mover os espectadores ao riso, e faziam mal. Jesus Nosso Senhor nunca contou comédias nem fábulas, mas apenas límpidas parábolas que alegoricamente nos instruem sobre o modo de ganhar o paraíso, e assim seja.

- Pergunto-me - disse Guilherme - porque sois tão contrário à ideia de que Jesus tenha proventura rido. Eu creio que o riso é um bom remédio, como os banhos, para curar os humores e as outras afecções do corpo, em particular a melancolia.

- Os banhos são uma coisa boa - disse Jorge -, e o próprio Aquinate os aconselha para remover a tristeza, que pode ser paixão nociva quando não se dirige a um mal que possa ser removido através da audácia. Os banhos restituem o equilíbrio dos humores. O riso sacode o corpo, deforma as linhas do rosto, torna o homem semelhante ao macaco.

- Os macacos não riem, o riso é próprio do homem, é sinal da sua racionalidade - disse Guilherme.

- Também a palavra é sinal da racionalidade humana e com a palavra pode-se blasfemar contra Deus. Nem tudo o que é próprio do homem é necessariamente bom. O riso é sinal de estultícia. Quem ri não crê naquilo de que se ri, mas também não o odeia. E portanto rir do mal significa não se dipor a combatê-lo, e rir do bem significa desconhecer a força pela qual o bem se difunde por si. Por isto a regra diz: "Decimus humilitatis gradus est si non sit facilis ac promptus in risu, quia scriptum est: stultus in risu exaltat vocem suam."

- Quintiliano - interrompeu o meu mestre - diz que o riso é de reprimir no panegírico, por dignidade, mas é de encorajar em muitos outros casos. Tácito louva a ironia de Calpúrnio Pisão, Plínio o jovem escreveu: "Aliquando praeterea rideo, jocor, ludo, homo sum."

- Eram pagãos - replicou Jorge. - A regra diz: "Scurrilitates vero vel verba otiosa et risum moventia aeterna clausura in omnibus locis damnamus, et ad talia eloquia discipulum aperire os non permittitur."

- Porém, quando o verbo de Cristo já tinha triunfado sobre a terra, Sinésio de Cirene diz que a divindade soube combinar harmoniosamente o cómico e o trágico, e Élio Spaziano diz do imperador Adriano, homem de elevados costumes e de ânimo naturaliter cristão, que ele soube misturar momentos de alegria e momentos de gravidade. E, enfim, Ausónio recomenda que se deve dosear com moderação o sério e o jocoso.

- Mas Paulino de Nola e Clemente de Alexandria puseram-nos em guarda contra estas estultícias, e Sulpício Severo diz que São Martinho nunca foi visto por ninguém nem presa da ira nem presa da hilaridade.

- Porém recorda o santo algumas respostas spiritualiter salsa - disse Guilherme.

- Eram prontas e sapientes, não ridículas. São Efraim escreveu uma parénese contra o riso dos monges, e no De habitu et conversatione monachorum recomenda-se que se evitem obscenidades e facécias como se fossem o veneno das áspides!


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- Mas Ildeberto disse: "Admittendo tibi joca sunt post seria quaedam, sed tamen et dignis et ipsa gerenda modis". E João de Salisbury autorizou uma modesta hilaridade. E, enfim, o Eclesiastes, de onde citastes o passo a que se refere a vossa regra, onde se diz que o riso é próprio do estulto, admite pelo menos um riso silencioso, o do ânimo sereno.

- O ânimo é sereno apenas quando contempla a verdade e quando se deleita com o bem cumprido, e da verdade e do bem não se ri. Eis porque Cristo não ria. O riso é fonte de dúvida.

- Mas às vezes é justo duvidar.

- Não vejo a razão. Quando se duvida é preciso dirigir-se a uma autoridade, às palavras de um padre ou de um doutor, e cessa qualquer razão de dúvida. Pareceis-me embebido de doutrinas discutíveis, como as dos lógicos de Paris. Mas São Bernardo soube intervir bem contra o castrado Abelardo, que queria submeter todos os problemas ao exame frio e sem vida de uma razão não iluminada pelas escrituras, pronunciando o seu é assim e não é assim. Decerto que aquele que aceitar estas ideias perigosíssimas pode também apreciar o jogo do insipiente que ri daquilo de que só se deve saber a única verdade, que já foi dita uma vez por todas. Assim, rindo, o insipiente diz implicitamente: "Deus non est."

- Venerável Jorge, pareceis-me injusto quando tratais Abelardo de castrado, porque sabeis que incorreu em tão triste condição pela nequícia de outrem...

- Pelos seus pecados. Pela altivez da sua confiança na razão do homem. Assim, a fé dos simples foi escarnecida, os mistérios de Deus foram desentranhados (ou tentou-se, estultos aqueles que o tentaram), questões que se relacionavam com as coisas altíssimas foram tratadas temerariamente, escarneceu-se dos padres porque tinham considerado que tais questões estavam mais sopitas do que expostas.

- Não estou de acordo, venerável Jorge. Deus quer de nós que exercitemos a nossa razão sobre muitas coisas obscuras sobre os quais a escritura nos deixou livres de decidir. E, quando alguém vos propõe acreditar numa proposição, vós deveis primeiro examinar se ela é aceitável, porque a nossa razão foi criada por Deus, e aquilo que agrada à nossa razão não pode deixar de agradar à razão divina, sobre a qual, por outro lado, sabemos só aquilo que, por analogia e frequentemente por negação, inferimos dos procedimentos da nossa razão. E então vedes que, por vezes, para minar a falsa autoridade de uma proposição absurda que repugna à razão, também o riso pode ser um instrumento justo. Frequentemente, o riso serve também para confundir os malvados e para fazer refulgir a sua estultícia. Conta-se de São Mauro que os pagãos o puseram em água a ferver e ele se lamentou que o banho estava demasiado frio; o governador pagão meteu estupidamente a mão na água, para verificar, e queimou-se. Bela acção daquele santo mártir que ridicularizou os inimigos da fé.

Jorge escarneceu:

- Mesmo nos episódios que contam os pregadores se encontram muitas petas. Um santo imerso em água a ferver sofre por Cristo e retém os seus gritos, não prega partidas de crianças aos pagãos!

- Vedes? - disse Guilherme -, esta história parece-vos que repugna à razão, e acusai-la de ser ridícula! Seja embora tacitamente e controlando os vossos lábios, vós estais rindo de alguma coisa e quereis que eu também não a tome a sério. Rides do riso, mas rides.

Jorge teve um gesto de enfado:

- Jogando com o riso arrastais-me para discursos vãos. Mas vós sabeis que Cristo não ria.







- Não tenho a certeza disso. Quando convida os fariseus a atirar a primeira pedra, quando pergunta de quem é a efígie da moeda a pagar em tributo, quando joga com as palavras e diz: "Tu es petrus", eu creio que Ele dizia coisas argutas, para confundir os pecadores, para sustentar o ânimo dos seus. Também fala com argúcia quando diz a Caifás: "Tu o disseste." E Jerónimo quando comenta Jeremias, onde Deus diz a Jerusalém: "Nudavi femora contra faciem tuam", explica: "Sive nudabo et relevabo femora et posteriora tua." Até Deus se exprime por argúcias para confundir aqueles que quer punir. E sabeis muito bem que no momento mais aceso da luta entre clunicenses e cistercienses os primeiros acusaram os segundos, para os tornar ridículos, de não usarem bragas. E no Speculum Stultorum conta-se do burro Brunello que se pergunta o que aconteceria se de noite o vento levantasse os cobertores e o monge visse as suas pudenda...

Os monges em volta riram, e Jorge enfureceu-se:

- Estais-me arrastando estes irmãos para uma festa de doidos. Sei que é uso entre os franciscanos cativar as simpatias do povo com estultícias deste género, mas destes jogos vos direi aquilo que diz um verso que ouvi a um dos vossos pregadores: "Tum podex carmen extulit horridulum."

A reprimenda era um pouco forte de mais; Guilherme tinha sido impertinente, mas agora Jorge acusava-o de emitir peidos pela boca. Perguntei-me se esta resposta severa não devia significar um convite, por parte do monge ancião, a sair do scriptorium. Mas vi Guilherme, tão combativo pouco antes, tornar-se manso como um cordeiro.

- Peço-vos perdão, venerável Jorge - disse. - A minha boca traiu os meus pensamentos, não queria faltar-vos ao respeito. Talvez aquilo que dizeis seja justo, e eu me enganasse.

Jorge, diante deste acto de delicada humildade, emitiu um grunhido que tanto podia exprimir satisfação como perdão, e não pôde fazer outra coisa senão voltar ao seu lugar, enquanto os monges, que durante a discussão se tinham aproximado pouco a pouco, refluíam às suas mesas de trabalho. Guilherme ajoelhou-se de novo diante da mesa de Venâncio e recomeçou a buscar entre os papéis. Com a sua resposta humilíssima, Guilherme tinha ganho alguns segundos de tranquilidade. E aquilo que viu naqueles poucos segundos inspirou as suas investigações da noite que estava para vir».

Humberto Eco («O Nome da Rosa»).


«O próprio divide-se em quatro acepções. A primeira é quando se predica por acidente de uma única espécie: quanto a homem, por exemplo, exercer a medicina, ou fazer geometria. A segunda é quando se predica por acidente a toda a espécie, mesmo que não se prejudique só dela, como ao dizermos o homem é um bípede. A terceira é, ainda, quando se predica a uma só espécie, a toda esta espécie e somente num determinado momento, por exemplo; embranquecer na velhice é próprio de todo o homem. A quarta é quando se verifica o concurso simultâneo de todas as referidas condições - predicar-se de uma só espécie, a toda a espécie, e sempre, como relativamente a homem se predica a faculdade do riso. De facto, mesmo que ele não se ria sempre, o homem é, no mínimo, capaz de rir, não por estar sempre a rir, mas porque naturalmente é capaz de rir; é um predicado que faz sempre parte da sua natureza, tanto como do cavalo faz parte a capacidade de relinchar. Estas últimas qualidades também se denominam, por direito, próprios, porque delas são recíprocas com o sujeito: se há cavalo, há faculdade de relinchar, e havendo faculdade de relinchar, há cavalo».

Porfírio («Isagoge. Introdução às Categorias de Aristóteles»).


«Heraclito de Éfeso, filho de Blóson (ou, no dizer de alguns, de Héracon). Atingiu a sua plenitude na 69.ª Olimpíada. Foi excepcionalmente altivo e arrogante, como claramente se vê também pelo seu livro, onde diz: "O muito aprender não ensina a ter inteligência; se assim fosse, teria ensinado Hesíodo e Pitágoras, e ainda Xenófanes e Hecateu"... Acabou por se converter num misantropo, retirou-se do mundo e foi viver para as montanhas, e aí se alimentava de ervas e plantas. Contudo, tendo por este modo adoecido de hidropisia, desceu à cidade e perguntou aos médicos, por forma enigmática, se eram capazes de converter em estiagem o tempo chuvoso. Como eles não entendessem, enterrou-se num estábulo de bois, na esperança de que a hidropisia se evaporasse com o calor do estrume; mas nem assim ele conseguiu alguma coisa, e findou os seus dias com a idade de sessenta anos».

Diógenes Laércio (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).



Heraclito de Éfeso



«Segundo Heraclito, tornamo-nos inteligentes por inalação desta razão divina [logos] através da respiração, e esquecidos, quando a dormir, mas recuperamos os sentidos, ao acordar de novo. É que, durante o sono, quando os canais da percepção estão fechados, o nosso espírito separa-se do seu parentesco com o circundante, e a respiração é o único ponto de ligação que se conserva, como uma espécie de raiz; ao ser separado, o nosso espírito abandona a sua anterior capacidade de memória. Mas, no estado de vigília, assoma de novo através dos canais de percepção, como através de uma espécie de janela, e, ao deparar-se com o circundante, reveste-se do seu poder de raciocínio...».

Sexto (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Demócrito, filho de Hegesístrato (ou, segundo outras versões, de Atenócrito ou Damasipo) era natural de Abdera ou, como dizem alguns, de Mileto... Mais tarde, encontrou-se com Leucipo e, segundo alguns, também com Anaxágoras, em relação ao qual era mais novo uns quarenta anos... Conforme ele próprio diz no Pequeno Sistema do Mundo, era um jovem na velhice de Anaxágoras, pois era quarenta anos mais novo. Diz ele que o Pequeno Sistema do Mundo foi composto 730 anos após a tomada de Tróia. Demócrito teria nascido, segundo declara Apolodoro nas Crónicas, na octogésima Olimpíada; segundo Trasilo, no seu livro intitulado Introdução à leitura das obras de Demócrito, no terceiro ano da septuagésima, sendo (conforme as suas próprias palavras) um ano mais velho do que Sócrates».

Diógenes Laércio (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Por vezes, Demócrito nega aquilo que parece aos sentidos, e diz que nada disso parece concordar com a verdade, mas apenas concordar com a opinião: a verdade nas coisas reais é que há átomos e vazio. "Por convenção doce", diz ele, "por convenção amargo, por convenção quente, por convenção frio, por convenção cor: mas na realidade, átomos e vácuo"».

Demócrito fr. 9, Sexto adv. math. VII, 136 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Trasilo ordenou os livros de Demócrito em tetralogias, precisamente como havia feito com os livros de Platão. As obras de ética compreendiam as seguintes... Os livros de física eram: o Grande Sistema do Mundo (que os seguidores de Teofrasto atribuem a Leucipo), o Pequeno Sistema do Mundo, a Cosmografia e Sobre os Planetas...».

Diógenes Laércio (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«E afirma ele uma vez mais (fr. 10): "Ora ficou de muitas maneiras claro que, na realidade, não compreendemos o que é ou não é cada coisa". E, em Sobre as Formas (fr. 6): "Uma pessoa deve conhecer, segundo esta regra, que está afastada da realidade". E uma vez mais (fr. 7): "Este argumento mostra também, que, na realidade, nada sabemos acerca do que quer que seja; mas para cada um de nós há um rearranjo - uma opinião". E ainda (fr. 8): "Contudo, evidente será que conhecer na verdade a natureza das coisas é tarefa desconcertante"».

Demócrito fr. 10 e 6-8, Sexto adv. math. VII, 136 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Leucipo e seu companheiro Demócrito sustentam que os elementos são o cheio e o vazio, aos quais dão o nome de o que é e o que não é, respectivamente. O que é é cheio e sólido, o que não é é vazio e subtil. Visto o vazio existir em não menor grau que o corpo, segue-se que o que não é não existe menos do que o que é. Os dois juntos constituem as causas materiais das coisas existentes. E tal como aqueles que fazem uma só da substância fundamental, geram as outras coisas por intermédio das suas modificações e postulam a rarefacção e a condensação como origem dessas modificações, assim também estes homens dizem que as diferenças [sc. entre os seus elementos] são as causas das outras coisas. Segundo eles, estas diferenças são três - forma, ordem e posição; o ser, dizem eles, difere apenas no "ritmo, contacto, e revolução"; o "ritmo" é a forma, o "contacto", a ordem, e a "revolução", a posição; é que A difere de N na forma, AN de NA na disposição, e Z de N na posição».

Aristóteles Met. A 4, 985 b 4 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).









«Diziam eles [sc. Leucipo, Demócrito, Epicuro] que os primeiros princípios eram infinitos em número e pensavam que tais princípios eram átomos indivisíveis e impassíveis devido à sua natureza compacta e sem qualquer vazio no seu interior; é que a divisibilidade, segundo eles, surge em virtude do vazio existente nos corpos compostos...».

Simplício, de caelo, 242, 18 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Demócrito... designa o espaço pelos seguintes nomes: "o vazio", "o nada" e "o infinito", ao passo que a cada substância individual ele chama "coisa" [i.e. "nenhuma coisa" sem o adjectivo "nenhuma"], "compacto" e "ser". Pensa ele que as substâncias são tão pequenas, que escapam aos nossos sentidos, se bem que possuam toda a espécie de formas, de feitios e diferenças de tamanho. Deste modo, consegue ele, a partir delas, como a partir dos elementos, criar, por agregação, massas perceptíveis à vista e aos demais sentidos».

Aristóteles Sobre Demócrito ap. Simplicium de caelo 295, 1 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Leucipo, Demócrito e Epicuro dizem que a percepção e o pensamento surgem, quando entram imagens do exterior; pois nenhum deles ocorre a quem quer que seja sem a colisão de uma imagem».

Écio (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Demócrito explica a vista pela imagem visual, que ele descreve de uma maneira particular; a imagem visual não surge directamente na pupila, mas é o ar existente entre o olho e o objecto da visão que, ao ser contraído, é marcado pelo objecto visto e pelo observador; pois todas as coisas estão sempre a emitir uma espécie de eflúvios. Por isso, este ar, que é sólido e de cores variegadas, aparece nos olhos que são húmidos (?); os olhos não admitem a parte densa, mas a húmida passa através deles...»

Teofrasto de sensu 50 (DK 68 A 135) (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Demócrito e a maioria dos filósofos da natureza, que se ocupam da percepção, são culpados de um grande absurdo; pois reduzem ao tacto toda a percepção».

Aristóteles de sensu 4, 442 a 29 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).


«Eles atribuíram vista a certas imagens do mesmo formato que o objecto, que estavam continuamente a fluir dos objectos da visão e a colidir com os olhos. Esta era a opinião da escola de Leucipo e Demócrito...».

Alexandre de sensu 56, 12 (in G. S. Kirk, J. E. Raven, M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).






LÁGRIMAS DE HERALITO DEFENDIDAS EM ROMA PELO PADRE ANTÓNIO VIEIRA CONTRA O RISO DE DEMÓCRITO


Diálogo realizado em Roma, no palácio da Rainha Cristina Alexandra, em 1674. Presentes Cardeais e Monsenhores. Problema proposto: se o mundo era mais digno de riso ou de lágrimas, e qual dos dois «gentios» fora mais prudente: se Demócrito, que ria sempre, ou Heraclito, que sempre chorava. Jerónimo Cataneo defendeu o riso de Demócrito; António Vieira as lágrimas de Heraclito. Ambos eram jesuítas. Texto em italiano, traduzido a espanhol e depois a português. Parte deste texto, em italiano, encontra-se registado no filme de Manoel de Oliveira Palavra e Utopia (2001).


Em seu lugar apareceu o pranto, porque segue e vem depois do riso. Se fosse o riso como Jano, Qui sua terga videt, (1) choraria o mesmo riso. Não desconfia o pranto, não, da sua causa, inveja só ao riso a sua fortuna. Se o pranto e o riso aparecessem neste grande teatro no traje da verdade (sempre nua), sem dúvida seria a vitória do pranto. Mas vestido, ornado e armado de uma tão superior eloquência, que o riso se ria do pranto, não é merecimento, foi sorte. De tudo quanto ri saiu vestido, ornado e armado o riso: riem-se os prados, e saiu vestido de flores: ri-se a aurora, e saiu ornado de luzes; e se aos relâmpagos e raios chamou a Antiguidade Risus Vestae, et Vulcani, (2) entre tantos relâmpagos, trovões e raios de eloquência, quem não julgará ao miserável pranto cego, atónito e fulminado? Tal é a fortuna, ou a natureza destes dous contrários.








Virgens Vestais, por Jean Raoux (1727).




Por isso nasce o riso na boca, como eloquente, e o pranto nos olhos, como mudo. Mas se Interdum lacrimae pondera vocis habent; (3) assim mudo, e com lágrimas, assim triste, e vestido de luto (como costumavam os réus no senado da antiga Roma) se apresenta hoje o pranto diante da majestade do sólio real, e tribunal rectíssimo dos seus eminentíssimos juízes; não presumindo que há-de alcançar vitória ou aplauso, mas esperando a piedade e comiseração, que nunca negaram, ao miseráveis e aflitos, os espíritos generosos e magnânimos.

Entrando pois na questão, se o mundo é mais digno de riso ou de pranto; e se à vista do mesmo mundo tem mais razão quem ri, como ria Demócrito, ou quem chora, como chorava Heraclito: eu, para defender, como sou obrigado, a parte do pranto, confessarei uma cousa e direi outra. Confesso, que a primeira propriedade do racional é o risível: e digo, que a maior impropriedade da razão é o riso. O riso é o final do racional, o pranto é o uso da razão. Para confirmação desta, que julgo evidência, não quero mais prova que o mesmo mundo, nem menor prova que o mundo todo. Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há-de chorar; e quem ri, ou não chora, não o conhece.

Que é este mundo, senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes? E à vista de um teatro imenso, tão trágico, tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa continuamente mudam a cena, aonde cada Sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada hora e cada instante mil infortúnios; que homem haverá (se acaso é homem) que não chore? Se não chora, mostra que não é racional; e se ri, mostra que também são risíveis as feras.

Mas se Demócrito era um homem tão grande entre os homens e um filósofo tão sábio e se não só via este mundo, mas tantos mundos, como ria? Poderá dizer-se que ele ria, não deste nosso mundo, mas daqueles seus mundos.

E com razão; porque a matéria de que eram compostos os seus mundos imaginados, toda era de riso. É certo, porém, que ele ria neste mundo e que se ria deste mundo. Como pois se ria ou podia rir-se Demócrito do mesmo mundo e das mesmas cousas, que via e chorava Heraclito? A mim, Senhores, me parece, que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heraclito ambos choravam, cada um ao seu modo.

Que Demócrito não risse, eu o provo. Demócrito ria sempre: logo nunca ria. A consequência parece difícil e é evidente. O riso, como dizem todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração e cessando a novidade ou a admiração, cessa também o riso; como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, e o que é ordinário e se vê sempre não pode causar admiração nem novidade; segue-se que nunca ria, rindo sempre, pois não havia matéria que motivasse o riso.

Nem se pode dizer que Demócrito se incitava a rir de alguma cousa que visse ou encontrasse de novo; porque sempre e em todo o lugar ria, e quando saía de casa já saía rindo; logo ria do que já sabia, logo ria sem novidade nem admiração; logo o que nele parecia riso não era riso.

Confirma-se mais esta verdade com o motivo e a intenção de Demócrito; porque não pode haver riso que se não origine de causa que agrade: tudo o que de Demócrito se ria, não só lhe desagradava muito, mas queria mostrar que lhe desagradava; logo não se ria; e se não ria, que era o que fazia, a que todos chamavam o riso? Já disse que era pranto e que Demócrito chorava, mas por outro modo. Ora vede.

Há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e chorar com riso: chorar com lágrimas é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com riso é sinal de dor suma e excessiva. Para prova da primeira e segunda diferença de chorar com lágrimas, ou sem elas, é notável o exemplo, que refere Heródoto de Psamnito, rei do Egipto.


























Perdendo Psamnito o reino, viu em primeiro lugar suas filhas vestidas como escravas e não chorou, viu depois seu filho primogénito descalço e carregado de ferros com as mãos atadas e um freio na boca e não chorou; e vendo este mesmo Psamnito e com o mesmo coração, que um seu antigo criado pedia esmola, derramou infinitas lágrimas. Oh grande rei e intérprete da natureza! Chora com lágrimas a miséria do criado e sem lágrimas a desgraça dos filhos; assim respondeu ele à pergunta de Cambises: Domestica mala graviora sunt, quam ut lacrimas recipiant (4). Com o mesmo pensamento, não menos régio, nem menos varonil, Hécuba, com a coroa perdida e a pátria abrasada, proibiu as lágrimas às damas de Tróia, dizendo-lhes assim:


Quid effuso genas fletu rigatis?
Levita perpessae sumus, si flenda patimur. (5)


A dor moderada solta as lágrimas, a grande as enxuga, as congela e as seca. Dor que pode sair pelos olhos, não é grande dor; por isso não chorava Demócrito; e como era pequena demonstração da sua dor não só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para declarar-se com o sinal maior, sempre se ria.

Nada digo que seja contrário aos princípios da verdadeira filosofia e da experiência. A mesma causa, quando é moderada e quando é excessiva, produz efeitos contrários: a luz moderada faz ver, a excessiva faz cegar; a dor, que não é escessiva, rompe em vozes, a excessiva emudece. Desta sorte a tristeza, se é moderada faz chorar; se é excessiva, pode fazer rir; no seu contrário temos o exemplo: a alegria excessiva faz chorar e não só destila as lágrimas dos corações delicados e brandos, mas ainda dos fortes e duros. Quando Minúcio, livre do cativeiro, apareceu ao seu exxército, que era o romano: In laetitiam tota castra effusa sunt, ut praegaudio militibus omnibus lacrimae manarent, (6) diz Plutarco. Pois se a excessiva alegria é causa do pranto, a excessiva tristeza porque não será causa do riso? A ironia tem contrária significação do que soa; o riso de Demócrito era ironia do pranto; ria, mas ironicamente, porque o seu riso era nascido de tristeza, e também a significava; eram lágrimas transformadas em riso por metamorfoses da dor; era riso, mas com lágrimas, como aquele de quem disse Estácio:


Lacrimosos impia risus audiit. (7)


Na guerra morrem muitos soldados rindo; e a razão é, diz Aristóteles, porque são feridos no diafragma. Não ria Demócrito como contente, ria como ferido: recebia dentro do peito todos os golpes do mundo e tão malferido ria.

Os olhos com injustiça se poderão queixar desta minha filosofia: o pranto chamava-se assim, porque se batiam as mãos uma com a outra, quando se chorava; porque para chorar não são precisos os olhos, e não seria próvida a natureza se, havendo sido a origem de tantos pesares, lhes desse um só desafogo; e se choram as mãos, a boca porque não há-de chorar? Heraclito chorava com os olhos, Demócrito chorava com a boca; o pranto dos olhos é mais fino, o da boca é mais mordaz; e este era o pranto de Demócrito. De sorte, que na minha consideração, não só Heraclito, mas Demócrito chorava, só com a diferença, de que o pranto de Heraclito era mais natural, o pranto de Demócrito mais esquisito; tudo merece este mundo, digno de novos e esquisitos prantos, para ser bastantemente chorado. Mas porque esta minha suposição me separa do problema e pode parecer que, como muitas vezes sucede, me aparte da opinião comum para fugir da dificuldade: seja embora o riso de Demócrito verdadeiro e próprio riso, apareçam em juízo um e outro filósofo, para que ouvidos ambos, se veja claramente a razão de cada um, e confio do merecimento da causa que será tão justa a sentença, que Demócrito saia chorando, e Heraclito rindo.

Séneca, no livro De Tranquillitate, (8) falando destes dous filósofos, dá a razão por que sempre ria um e chorava outro, com estas judiciosas palavras: Hic, quoties in publicam processerat, flebat, ille ridebat: huic omnia, quae agimus, miseriae, illi ineptiae videbantur. (9). Demócrito ria porque todas as cousas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo maior razão tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria.

As misérias e os trabalhos que padecem os mortais, ou por obrigação da natureza, ou por remédio da fortuna, ou por sustento da vida, ou por conservação do estado particular e público, são misérias, mas não são ignorâncias, porque as governa a prudência, por necessidade, por conveniência, por honras e por decoro.

Pelo contrário, todas as ignorâncias que se cometem no mundo, as que se fazem, as que se dizem, as que se cuidam, todas são misérias, porque todas se cometem, ou por erro do entendimento, ou por desordem da vontade; e este erro e esta desordem, não só é miséria, mas a maior miséria, porque direitamente se opõem à luz e ao império da razão, na qual consiste toda a nobreza e felicidade do homem. Aquelas misérias causam ao homem dores e trabalhos, estas o fazem verdadeiramente miserável e infelice; e suposto que umas e outras sejam dignas de lágrimas, e as lágrimas das ignorâncias são lágrimas de pior cor; estas fazem corar o rosto, aquelas não. Foi esta distinção achada com alta filosofia pelo engenho de Ovídio nas lágrimas de Penteu.


Essemus miseri sine crimine, sorsque querenda,
Non celanda foret: lacrimaeque pudore carerent. (10)





E como nem todas as misérias são ignorâncias, e todas as ignorâncias são misérias, e as maiores misérias, muito maior matéria e muito maior razão tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir; antes digo, que só Heraclito tinha toda a razão e Demócrito nenhuma. Todas as misérias humanas eram o assunto de Heraclito, e o de Demócrito só uma parte delas; e como toda a miséria é causa de dor, e nenhuma dor pode ser causa do riso, o riso de Demócrito não tinha causa nem motivo algum que o justificasse.

Pode ser que me responda algum metafísico que Demócrito distinguia nas ignorâncias, aquilo que é ignorância, daquilo que é miséria; e que se ria das misérias, não como misérias, mas como ignorâncias. Porém esta distinção, demais de ser indigna de um filósofo moral, é falsa e impossível, por ser contra a natureza e essência do riso. O ridículo, ou o objecto do riso, como define Aristóteles: Est turpe sine dolore, (11) é uma deformidade, que exclui todo o motivo de dor; e como a ignorância precisamente está sempre unida com o motivo da dor, que é a miséria, por isso nem é, nem pode ser matéria do riso.

Esta é a verdadeira e sólida razão, por que no juízo de todos os filósofos se inventou a comédia. Viram os sábios das repúblicas, que para desafogo, divertimento e alegria dos povos, era necessária alguma matéria de riso; e porque o riso não podia nascer da deformidade, ou vício verdadeiro, pela união natural que tem com a dor; que fizeram? Inventaram sabiamente as ficções da comédia, para que o ridículo da imitação, como suposto e não verdadeiro, ficasse separado da dor. Um aleijado com um pé de pau, uma velha decrépita e trémula, um pobre remendado e enfermo, um cego e um frenético, um insensato, no teatro fazem rir; e porquê? Porque aqueles defeitos são supostos e não verdadeiros; que fossem verdadeiros, seria motivo de comiseração e não de riso; e como os defeitos e vícios de que ria Demócrito, eram verdadeiros defeitos e verdadeiros vícios, não tinha o seu riso algum motivo; mas se não tinha motivo, como ria? Ria-se por abuso intolerável do motivo oposto, colocando o riso sobre o motivo do pranto; ria-se das verdadeiras misérias e do verdadeiro motivo da dor; filosofia inumana e contrária a toda a razão e praticada unicamente na escola da inveja, da qual diz o poeta:


Risus abest, nisi quem visi movere dolores. (12)


E se o fim destes dous filósofos (como verdadeiramente era) foi manifestar ao mundo o desconcerto do seu estado e persuadir aos homens o erro dos seus juízos, a desordem dos seus desejos e a vaidade das suas fadigas, também para este fim tinha muito maior razão Heraclito de chorar, que Demócrito de rir.

A primeira introdução e disposição de quem quer persuadir, ensinada e usada de todos os oradores, é conciliar a benevolência do teatro: esta conciliava Heraclito e não Demócrito; porque quem chora, lastima; e quem ri, despreza; e a compaixão concilia amor, o desprezo ódio e aborrecimento; quem ri, exaspera; quem chora, enternece; e quem quer imprimir os seus afectos e a sua doutrina nos corações, não deve endurecê-los, deve abrandá-los. O agricultor, para colher os frutos, rega as plantas: o impressor, para imprimir as letras, molha o papel; e assim o deve fazer com as lágrimas, quem quer imprimir os seus afectos e colher o fruto das suas persuasões.

Ulisses, naquela sua famosa oração contra Aiace na contenda das armas de Ulisses, podendo fiar-se tanto da sua copiosa eloquência, adornou o seu exórdio com lágrimas; e porque não as tinha verdadeiras, chorava-as fingidas.


Manuque simul veluti lacrimantia tersit
Lumina. (13)


Não de outra sorte devia fazer Demócrito, ainda que fosse contra o jocoso do seu génio. Devia aproveitar-se da boca, não para rir, mas para humedecer os olhos e fingir as lágrimas; assim o ensina com a sua natural agudeza aquele mestre que professou em Roma a arte de conciliar o amor e de abrandar os corações:


Si lacrimae (neque enim veniunt in tempore semper)
Deficiant, uncta lumina tinge manu. (14)



Vaticano (Roma)


Quanto à força e eficácia de persuadir, muito mais fortemente apertava e persuadia Heraclito chorando, que Demócrito rindo; porque quem ri, atenua e alivia os males; quem chora, os acrescenta e faz mais sensíveis e pesados; quem ri, mostra que são dignos de zombaria; quem chora, prova que são dignos de lástima; quem ri por exemplo e por simpatia, move a rir; quem chora por exemplo e com razão, ensina a chorar; porque se os meus males são tais, que movem a contínuas lágrimas nos outros, quanto mais os devo eu chorar, pois os padeço?

Finalmente Demócrito ria sempre; e Heraclito sempre chorava; e este sempre também era por parte de Heraclito e contra Demócrito: por parte de Heraclito, porque ser o seu pranto contínuo o fazia mais eficaz: contra Demócrito, porque ser o seu riso contínuo o fazia ridículo. Não é minha a censura, nem é nova, mas apotegma antiquíssimo do filósofo Plutarco: O riso, dizia ele, se é pouco passa; se é muito, ofende. Cícero, como se vê nas suas Orações, respondia muitas vezes rindo aos argumentos da parte contrária; que é solução muito fácil, quando os argumentos são difíceis; mas que louvores deram a Cícero deste seu riso? Disse-o Plutarco. Sendo Cícero cônsul e defendendo Murena, ria muito, como costumava, da doutrina dos Estóicos e não podendo sofrê-lo Catão, lhe disse publicamente: Dii boni, quam ridiculum habemus consulem! (15) Com muita mais causa Demócrito, porque ria sempre, se fazia ridículo, e zombando do juízo dos outros, expunha o seu à zombaria.

Os meninos riem-se muito facilmente e os doudos sempre se riem: e diz Aristóteles, que os meninos se riem porque têm pouco siso, e os loucos, porque de todo o não têm; e eu creio verdadeiramente que não faço grande ofensa a Demócrito, porque um homem, que de um mundo via muitos mundos, era sinal que tinha perturbadas as espécies e enferma a fantasia; e quem se havia de mover a um tal riso?

Não assim o pranto de Heraclito, que por ser contínuo, se fazia mais forte e eficaz: Lacrima cito siccatur, praesertim in alienis malis, (16), diz Túlio. E sendo o pranto de Heraclito pelos males alheios, sem que nunca se secassem as suas lágrimas; que coração haveria tão duro e obstinado, que se não abrandasse e rendesse a um tal pranto? Eram as lágrimas de Heraclito, como a água, que caindo pouco a pouco, vai limando suavemente os mármores e enfim os rompe. Não digo eu somente os mármores:


Lacrimis adamanta movebis, (17)


diz atrevida, mas verdadeiramente, Ovídio. As lágrimas, como lhe chamou o melhor filósofo da Grécia, são sangue da alma; e este (não o outro fabuloso) é o que lavra os diamantes. O coração mais diamantino, como tantas vezes se queixava Agamémnon, foi o de Aquiles; e contudo confiava e presumia Briscidi, que sem dizer uma só palavra (como fazia Heraclito) com as suas lágrimas somente o despedaçaria e os desfaria em pó; assim o diz ela na discreta carta escrita ao mesmo Aquiles:


Sis licet, immitis, marisque ferocior undis,
Ut taceam lacrimis, comminuere meis. (18)


Tal era a eficácia invencível do pranto de Heraclito e tal a debilidade ridícula do riso de Demócrito.

Não quero contudo que seja minha a sentença entre estes dous filósofos, seja de outro filósofo que os iguale em autoridade e ciência. O grande filósofo Díon, como refere Estobeu, falando do pranto e do riso, conclui assim: Mihi sane facies magis videtur ornari lacrimis, quam risu: lacrimis enim ut plurimum bona aliqua doctrina conjungitur; risui vero lascivia, et flendo quidem nemo sibi conciliavit auctorem contumeliae, ridendo autem spem dedecoris auxit. (19). Esta é a sentença.

Mas deixando já o riso de Demócrito afogado no pranto de Heraclito, para acabar o meu primeiro argumento, busco outra vez a prova universal do mundo. Que esperança, que lugar pode ter neste mundo o riso, se todo o mundo chora e ensina a chorar? Choram os homens como racionais e sensitivos, e ainda as cousas sem razão e sem sentido choram; estas são as lágrimas que o príncipe dos poetas chamou profundamente lágrimas de todas as cousas:


Sunt lacrimae rerum, et mentem mortalia tangunt. (20)






Não residem as lágrimas só nos olhos, que vêem os objectos, mas nos mesmos objectos, que são vistos; ali está a fonte, aqui está o rio; ali nascem as lágrimas, aqui correm; e se as mesmas cousas que não vêem, choram, quanto mais razão tem o homem que vê e se vê! Não quero o testemunho dos miseráveis, não, só quero o dos mais ditosos.

Quem há neste mundo tão favorecido, ou tão divinizado pela sua fortuna, que possa presumir de não ter que chorar? Aqueles mesmos, que mais se riem por fora, mais choram por dentro. Aqui tínhamos antigamente em Roma um cortesão chamado Heros, o qual chorava sempre, não tanto os males próprios, quanto os bens alheios; e diz assim Marcial:


Quam multi faciunt, quod Heros, sed lumine sicco!
Pars maior lacrimas videt, et intus habet. (21)


Oh se este intus se visse! São as lágrimas como as águas do rio Alfeu; este rio, umas vezes caminha descoberto, outras se oculta por debaixo da terra, mas sempre corre: as lágrimas plebeias deixam-se ver; as lágrimas equestres, senatoriais e consulares, são invisíveis, mas lágrimas. Das lágrimas que se derramaram nas exéquias de Germânico, dizia Tácito: Periisse Germanicum nulli jactantius moerent, quam qui maxime laetantur. (22) O contrário é mais comum e mais verdadeiro: Qui jactantius laetantur, maxime moerent. (23) Mas quando ninguém chorasse, nem por fora, nem por dentro; quando este mundo e todos os homens rissem, então todo o mundo e todos os homens seriam mais dignos de comiseração e de lágrimas: Quid enim miserius misero, non miserent seipsum? (24).

E se tudo isto não basta, senhores, para que a causa do pranto tenha merecido a seu favor os vossos votos, em nome do mesmo pranto apelarei eu da sentença para aquele justíssimo tribunal, para quem apelou Apeles. Vencido Apeles em um concurso de pintores: Appello (disse) ad tribunal naturae. (25).

E porque os animais vivos se enganavam com os que ele havia pintado e as aves com os frutos, a natureza fez a Apeles a justiça que lhe tinham negado os homens; assim o faço eu, senão venceu o pranto. Appello ad tribunal naturae. Seja meu intérprete o historiador da mesma natureza. Flens animal caeteris imperaturum a suppliciis vitam auspicatur, unam ob culpam, quia natus est. (26) Nasce o homem, diz Plínio, já chorando, e sem outra culpa mais que haver nascido, fica condenado a perpétuo pranto, começa a vida e o pranto juntamente; para que saiba, que se vem a este mundo vem para chorar. O mais aprenderá depois, porque é arte; para o pranto nasce já ensinado, porque é natureza: Non aliud naturae sponte, quam flere. (27). Esta é a sentença irrefragável da natureza, e esta a natureza dos mortais: é o homem risível, mas nascido para chorar; porque se a primeira propriedade do racional é o risível, o exercício próprio do mesmo racional e o uso da razão é o pranto.

E se alguém me replicar, que se o homem não risse, ficaria ociosa a potência do rir contra o fim da mesma natureza; a uma instância tão forte não posso responder só como filósofo natural (como observei em todo este discurso), mas responderei como filósofo cristão. Respondo, e pergunto: Se o homem, pela transgressão, não tivesse perdido a felicidade em que foi criado, choraria, ou não? É certo, que nunca chorariam os homens, se fossem conservados naquele estado, e as lágrimas, que agora há, não as haveria então: logo, se na felicidade daquele tempo estaria ociosa a potência do chorar, na miséria deste tempo esteja ociosa a potência do rir, etc." (28)


(in Sermões de Roma e Outros Textos, MEL Editores, 2009, pp. 501-513).



Notas:

(1) Que consegue ver as próprias costas.

(2) O riso de Vesta e de Vulcano.

(3) Às vezes, as lágrimas são tão eloquentes como as palavras.

(4) As desgraças domésticas são suficientemente graves para merecerem lágrimas.

(5) Senec. in Troad. (Porque regais as faces com as lágrimas derramadas? / Se consentimos as lágrimas [se choramos] é porque o sofrimento foi ligeiro.)

(6) Plutarch. in Fab. (Todo o acampamento entrou em tal alegria, a ponto de todos os soldados se banharem em lágrimas de satisfação.)

(7) E ela, a cruel, pôde ouvir risos chorosos.







(8) Sobre a Tranquilidade.

(9) Sempre que apareciam em público, um chorava e o outro ria: ao que chorava, todas as coisas humanas lhe pareciam misérias, e ao que se ria tudo parecia ignorância.

(10) Ovid. Metamorf., Livr. 3.º. (Seríamos infelizes sem culpa; haveríamos de lamentar, não de esconder a nossa sorte, e as lágrimas não nos envergonhariam.)

(11) [O ridículo] é o desonesto sem dor.

(12) Ovid. Metamorf. (Ausente está o riso, salvo para quem vê a dor atingir alguém.)

(13) Ibid., L. xv. (E com as mãos enxugou os olhos que fingiam chorar.)

(14) Se faltarem as lágrimas - e as lágrimas não chegam sempre a tempo -, esfrega os olhos com a mão molhada.

(15) Cícer. de Partit. 31. (Pelos bons deuses, quão ridículo que é o cônsul que temos.)

(16) Secam depressa as lágrimas perante a desgraça alheia.

(17) As lágrimas até os diamantes conseguem despedaçar.

(18) Ovid. Ep. Briscil. ad Achil. (Sê cruel, sê mais feroz que as ondas do mar, a ver se consegues calar-me: / Serás vencido pelas minhas lágrimas.)

(19) Stob. Ser. 72. (A mim parece mais acertado que a face se enfeite de lágrimas do que se desfaça em risadas: as lágrimas sugerem a presença de alguma doutrina boa, o riso denuncia alguma inconveniência. E a chorar, ninguém provoca novo insulto; a rir-se, aumenta a probabilidade de afronta renovada.)

(20) Eneida, I. (Há lágrimas para todo o infortúnio e o destino dos mortais comove os corações.)

(21) Quantos não fazem o mesmo que Heros, mas sempre com os olhos enxutos! / A maioria não vê as lágrimas, mas o que vai por dentro...

(22) Annal. Lib. (Ninguém chorou mais a morte de Germânico do que aqueles que se alegraram ostensivamente.)

(23) Quem se alegra com mais exuberância é quase sempre quem se entristece mais profundamente.

(24) Para um miserável, a maior miséria é ninguém ter compaixão de si.

(25) Apelo para o tribunal da Natureza.

(26) Plin. in Praes. Libr. 7.º. (O animal destinado a dominar os outros enfrenta uma vida de sofrimento somente por uma culpa: a culpa de ter nascido.)

(27) Nada há mais conforme à natureza do que o chorar.

(28) Vê-se que não se concluiu o discurso, ou a tradução do mesmo.






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