domingo, 27 de outubro de 2013

Um depoimento de Henrique Veiga de Macedo (i)




Henrique Veiga de Macedo (o 2.º a contar da direita).



Henrique Veiga de Macedo nasceu em Santa Maria de Lamas, a 27 de Abril de 1914. Foi Subsecretário de Estado da Educação Nacional entre 23 de Junho de 1949 e 8 de Julho de 1955, bem como Ministro das Corporações e Previdência Nacional de 8 de Julho de 1955 a 4 de Maio de 1961. Em Outubro de 1974, na sequência da revolução comunista que destruiu de vez o Ultramar Português, Veiga de Macedo emigrou para o Brasil onde permaneceria cerca de 10 anos como assessor e auditor nas várias empresas em que trabalhou. Foi também professor na Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Garulhos, São Paulo, a cujo quadro directivo pertenceu e onde regeu cursos e fez conferências e palestras sobre Filosofia do Direito, Doutrinas Políticas e Económicas, Segurança e Previdência Social, Literatura e História. Veiga de Macedo foi ainda distinguido, condecorado e louvado na qualidade de Grande Oficial da Ordem da Instrução Pública e da Ordem de Cristo, e Grã-Cruz desta última Ordem, além de ter possuído a Medalha Naval do Centenário da Morte do Infante D. Henrique.

Muito mais se poderia dizer do lídimo Português que foi Henrique Veiga de Macedo e do seu inestimável contributo para o engrandecimento histórico e espiritual de Portugal. E a par da sua evocação, acusemos ainda a recente perda do último General Português cujo patriotismo e coragem física foram inquestionáveis no seguimento do 25 de Abril de 1974: Silvino Silvério Marques. De resto, não seria por acaso que, no 11 de Março de 1975, o PCP já tivesse funcionários, quadros e militantes infiltrados em Angola na sequência de uma situação francamente favorável às forças portuguesas no período anterior à revolução comunista de 74. Por outras palavras, a entrega do Ultramar Português foi um crime de lesa-Pátria perpetrado por forças revolucionárias que compeliram à deserção dos militares nas três frentes de combate: Guiné, Angola e Moçambique.

Relativamente a esta deserção aprontada por Melo Antunes, Rosa Coutinho, Mário Soares, Almeida Santos e todos os responsáveis afins que concorreram para as dezenas de milhar de mortos no Ultramar Português, existem alguns elementos relevantes no livro da jornalista Alexandra Marques, intitulado Segredos da Descolonização de Angola (Publicações D. Quixote, 2013). Aqui, pois, ressaltam mais particularmente os incidentes terroristas no norte e leste de Angola cometidos contra a vida e os bens dos portugueses, tais como: tiros, catanadas, espancamentos, assaltos a fazendas, vandalização e destruição das fontes de riqueza, dispersão e depredação de instalações, saques, emboscadas, assassinatos, barragens nas estradas e entradas furtivas em residências habitadas, roubos de viaturas, sanzalas saqueadas e destruídas, apedrejamentos, mulheres brancas violadas, pessoas alvejadas, rebentamentos fortuitos de granadas e explosões de morteiro, banditismo e toda a espécie inimaginável de actos de barbárie baseados no terror e na intimidação – transportes maltratados, acessos aos centros urbanos cortados, rezes esquartejadas, circuitos de comercialização destruídos, assaltos a operários nas fábricas, disparos sobre condutas de águas, ataques a hospitais, fuga de técnicos e saneamento de elementos válidos da administração pública com vista à destruição total da economia de Angola.

Silvino Silvério Marques


Neste contexto, Rosa Coutinho chegou mesmo a declarar que dera dez milhões de escudos mensais aos movimentos armados de Angola. «Em 1997, o Almirante justificou a mensalidade concedida nos seguintes termos: “Atribuí a cada um dos três movimentos um subsídio mensal de dez mil contos, equivalente a 200 000 contos actuais. Quem mais beneficiou com isso foi o MPLA, pois não tinha nada”» (cf. Alexandra Marques, op. cit., p. 160). Entretanto, Agostinho Neto recebia apoio financeiro da União Soviética, da Argélia, das nações árabes, da Escandinávia e contava com «alguns apoios prestados pela Europa do leste e da OUA [Organização de Unidade Africana]» (ibidem, pp. 146).

Mais: «O MPLA beneficiava do “apoio de vários países comunistas: União Soviética, Jugoslávia e Checoslováquia através da Zâmbia, Tanzânia e do Congo”, concedido em armamento e em frequentes cursos de especialização: “A necessidade de aumentar a curto prazo a sua capacidade militar, a fim de fazer face à posição de força da FNLA, parece ter determinado uma nova aproximação do MPLA à URSS”, o que era comprovado pelo “recebimento de vários carregamentos de material de guerra provenientes não só da União Soviética como de outros países comunistas”, como a Jugoslávia e a Checoslováquia. A ligação excessiva a Moscovo poderia, no entanto, acorrentá-lo a “um enfeudamento demasiado pesado” e restringir a sua “independência política”, além de poder inibir o auxílio “de outros países que embora progressistas não querem ser aliados da URSS neste tipo de apoio”, referia a CCPA [Comissão Coordenadora do Programa (do MFA) para Angola]. Brazzaville (que pouco apoio lhe dera durante a guerra) “procurou a partir do 25 de Abril que [o MPLA] transferisse os seus efectivos para o interior de Cabinda”. O Congo continuava “a permitir o desembarque de material de guerra no porto de Ponta Negra” e que tivesse um “importante centro de treino em Dolisie”. A Tanzânia facilitava a passagem “de armamento e equipamento destinado ao Leste de Angola” e a Argélia era “uma espécie de mentor revolucionário do MPLA, proporcionando-lhe apoio político e diplomático”» (ibidem, pp. 292-293).

Por outro lado, a entrega de Moçambique dera-se com base numa proposta redigida «pelos dirigentes da Frelimo (Joaquim Chissano e Óscar Monteiro) e por Almeida Costa, na última noite, no seu quarto de hotel com uma garrafa de conhaque». Aliás, Melo Antunes foi quem, efectivamente, delegou em Almeida Costa a tarefa de pôr por escrito a transferência de poderes para a Frelimo prevista e realizada de 7 de Setembro de 1974 a 25 de Junho de 1975 (ibidem, pp. 51-52). Demais, nos últimos meses de 1974, Portugal chegara a investir no Ultramar seis milhões de contos «em ajudas não reembolsáveis» (ibidem, p. 149).




Por outro lado, o ímpeto destrutivo e satânico que acompanhou todo este processo é também passível de ser encontrado em Richard Wurmbrand: 

«Segundo sabemos, Marx é o único autor de renome que qualificou os seus próprios escritos como "merda" ou como "livros imundos". Ele, consciente e deliberadamente, oferece lixo aos seus leitores. Daí que não seja de admirar que os seus discípulos comunistas na Roménia e em Moçambique tenham forçado os prisioneiros a comer os seus próprios excrementos e a beber a sua própria urina.

(...) Em Moçambique, o cristão Salu Daka Ndebele foi interrogado pela polícia secreta de Maputo. O agente disse-lhe: "Nós queremos matar o teu Deus". Ele sacou da sua pistola em direcção à cabeça do prisioneiro e disse-lhe: "Isto é o meu Deus. Com isto eu tenho o poder sobre a vida e a morte. Se o teu Deus aqui vier, sou eu próprio que o mato".

Em Chiasso, Angola, os comunistas trucidaram animais numa igreja e puseram as suas cabeças no púlpito e sobre um altar. Um cartaz dizia: "Estes são os deuses que vós adorais". O pastor Aurélio Chicanha Saunge e cento e cinquenta paroquianos foram assassinados» (in «Marx and Satan»).

Não é, pois, de admirar que a onda avassaladora de crimes contra a humanidade ditados pelo processo revolucionário se reflectisse nos milhares de mortos do 27 de Maio de 1977, decorrentes da «depuração» feita no seio do Movimento para a Libertação de Angola (MPLA). Por outras palavras, foram arbitrariamente mortos, por fuzilamento ou execuções sumárias, membros do Comité Central, ministros, comissários ou governadores das províncias, pessoal do Departamento de Informação e Segurança de Angola (DISA), bem como das Forças Armadas de Libertação de Angola (FAPLA). Enfim, um sem-número inacreditável de mortos num cenário apocalíptico caracterizado por decapitações, pessoas famintas que desenterravam os mortos para comer, pessoas sepultadas vivas em valas comuns, e outras que, depois de fuziladas, eram lançadas de avião ou de helicóptero para o mar ou para a mata. Demais, uma tal purga atingiu igualmente amigos, simpatizantes e familiares das dezenas de milhar de mortos presos, interrogados, torturados e, por fim, executados sem julgamento (cf. Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus, Purga em Angola, Edições Asa, 2007).






Na imprensa portuguesa da época, o Terror em Angola passara praticamente despercebido, salvo para a poetisa Natália Correia que o designara por Gullag Angolano (in «Jornal Novo»). Passados mais de 30 anos após os crimes e atrocidades cometidas em Angola no 27 de Maio de 1977, os Portugueses pouco ou quase nada sabem desses acontecimentos tenebrosos. De resto, os co-autores de Purga em Angola têm um percurso revolucionário de marcada feição socialista, a começar por Álvaro Mateus que, aquando do terrorismo em Angola em 1961, promoveu e coordenou «um jornal clandestino consagrado à denúncia do colonialismo e da guerra», assim como apoiou as alegadas lutas de libertação nacional nas Províncias Ultramarinas Portuguesas. Aliás, os co-autores, já depois de reduzido a cinzas o Ultramar português, leccionaram «na Escola Central do Partido da FRELIMO, colaborando na formação de professores». E mais confessam, pela pena de Dalila Cabrita Mateus: «Continuamos a manter-nos fiéis aos princípios e sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade, que sempre acalentámos». Em suma, continuam fiéis ao socialismo que tudo destruiu e hoje prega a felicidade e a prosperidade numa suposta sociedade livre e democrática, nomeadamente em Angola. De resto, é assim que o comunismo vai sendo minorado, relativizado e até mitificado à conta de mais de 100 milhões de mortos no século XX, e a que não são estranhos intelectuais e revisionistas apostados em ocultar um movimento internacional que programou, com a conivência de grandes potências ocidentais, o anticolonialismo empenhado na destruição das estruturas civilizacionais em África, na Ásia e na Oceania. Demais, o movimento comunista, não obstante o seu aparente colapso em 1991, saiu ainda mais reforçado do que nunca no plano da América Latina, da Europa Oriental e até no da União Socialista Europeia de Angela Merkel.

Miguel Bruno Duarte


«Limpeza militar: Esta é uma das páginas mais sangrentas da história de Angola: refiro-me às acções de "limpeza" militar coordenadas a partir do Ministério da Defesa no seguimento do golpe de 27 de Maio que eliminaram muitos angolanos na força da vida, negros sobretudo, já que os mestiços foram frequentemente poupados. Os militares entravam pelas traseiras do Ministério e ficavam amontoados no antigo Liceu Paulo Dias de Novais. Despojados das suas fardas, aí permaneciam conhecendo a fome - por dia, tinham apenas direito a uma lata de carne do tipo corn beef - e a humilhação. Como me informaram Moisés, Mingas e Dédé, viam-se obrigados a urinar e a obrar para latas e a deitar pela janela, depois, o seu conteúdo. Numa das janelas estava uma metralhadora apontada para dentro. Não havia espaço para todos se sentarem, revezavam-se na ocupação do chão para repouso. Quando, à noite, os oficiais entravam nas salas seleccionavam imediatamente aqueles que levantavam a cabeça: "É este já! Levantou a cabeça, chegou hoje!"

À medida que o edifício do Ministério ia ficando livre novos grupos eram para lá deslocados, em fila indiana, mãos atrás das costas e sob vigilância. Aqui, tiveram oportunidade para experimentar uma tortura conhecida no Leste de Angola mas adoptada pelos cubanos: uma corda atava atrás das costas as mãos e os pés passando pelo pescoço, fazia dos seus corpos verdadeiros arcos. A esta forma de tortura chamavam chincualho. Levantavam o preso até cerca de um metro e deixavam-no cair em seguida, isto até obterem uma confissão. Este meio de tortura levou muitos à loucura e à morte por deficiente irrigação do cérebro. Não são poucos os casos daqueles que foram queimados com pontas de cigarros. E muitos outros chegaram a ser agredidos, à coronhada, com cinturões e pontapés, num mesmo momento, por cinco torturadores. Eu próprio vi, em São Paulo, os corpos mutilados de muitos destes militares. Enquanto isto, outros eram ali inquiridos para que os gritos de uns aterrorizassem os outros. Frequentemente se acusaram uns aos outros de tal maneira que quase toda a 9.ª Brigada de Luanda acabou por ser condenada, ou porque haviam participado no golpe, ou porque eram amigos destes ou, ainda, porque alguém importante desejava as suas mulheres [Em S. Paulo esteve também encerrado, mais de três anos, um tenente de nome Preto - era ele que me dava água quando fiquei incomunicável - que depois de libertado foi imediatamente aconselhado a não regressar à sua terra, no Kunene, pois a sua mulher já tinha um filho de um alto dignitário do MPLA]. Das salas de torturas, os presos iam, na maioria dos casos, para o fuzilamento, sem assinar qualquer auto. O principal campo de extermínio (...) situava-se bem perto de Luanda.




Agostinho Neto ao centro, rodeado de cubanos e soviéticos









Renegando a tradição penal portuguesa que havia séculos tinha abolido a pena de morte, o MPLA institucionalizou-a com a lei 1/78. No preâmbulo fala-se da necessidade e das vantagens dessa medida:

A República Popular de Angola tem não só o direito, como o dever de defender a revolução firme e decididamente dos seus inimigos, tanto internos como externos, salvaguardando as conquistas já implantadas em benefício do Povo e as que futuramente venham a ser alcançadas. Assim, os elementos que participam em actividades contra-revolucionárias e criminosas que atentem contra os interesses fundamentais da revolução devem ser exemplarmente punidos com a maior severidade, sempre que os factos que cometeram e as circunstâncias das mesmas lesem gravemente a segurança e a tranquilidade do Povo angolano e o normal desenvolvimento da actividade das instituições do Partido e do Estado. A introdução no sistema penal comum da pena de morte por fuzilamento não deixa de vir na sequência e de representar afinal um aperfeiçoamento jurídico de um instrumento que o povo angolano, o MPLA-PT e o seu braço armado das FAPLA, já algumas vezes tiveram de aplicar à luz da legalidade revolucionária, na luta de libertação nacional e, posteriormente, na implantação e consolidação da RPA.


Afirmam os artigos desta lei: "Artigo 1.º - o n.º 1 do artigo 55.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção: as penas maiores são a pena de prisão maior de 20 a 24 anos, ou a pena de morte por fuzilamento: artigo 7.º - a pena de morte será executada por um pelotão de fuzilamento nas vinte e quatro horas após a notificação ao réu da não comutação da pena".


Não chega recordar a brutalidade da pena de morte executada por fuzilamento. É necessário recordar que esses condenados não beneficiaram sequer de um julgamento que possa ser digno desse nome. A leitura da letra fria destes regulamentos não pode deixar de me emocionar quando penso em tantos que foram condenados à morte sem que alguma vez os mecanismos de defesa fossem postos em andamento.


(...) Tibério - uma das testemunhas privilegiadas do sucedido no Ministério da Defesa - falava-nos, frequentemente, das tragédias que, no pós-27 de Maio, se viveram naquele edifício. A pressa era o único método - julgamentos e condenações à velocidade de um minuto cada: uns desciam, de seguida, para as caves do Ministério, outros eram deslocados para o antigo Liceu Paulo Novais - era ali mesmo ao lado.






















«Seminário sobre a vida e obra de Agostinho Neto» (Brasília, 2012).





Universidade Agostinho Neto (Luanda).







O trânsito para o fuzilamento também não tardava. Num carro, os condenados, noutro o pelotão de fuzilamento, num ritmo de roleta russa que aviltava até a dignidade dos laços familiares. Na memória de Tibério - como na de tantos luandenses - permanecia a visão daquele teatro de horror, no qual pais e irmãos se encontravam inesperadamente em lados opostos: de um lado os que matam, de outro os que são mortos.

A precipitação dos acontecimentos não conseguia garantir que, nos pelotões de execução, não fossem incluídos familiares dos condenados. Em tais circunstâncias era frequente que, já no próprio terreno de fuzilamento, se levantassem vozes de desespero, de um lado e do outro, diante do insuportável que é matar um irmão, um pai ou ser fuzilado por um qualquer familiar próximo.

Esta engrenagem de violência era alimentada pela praga da denúncia. Num discurso de Maio de 1977, o próprio Agostinho Neto fez a apologia da denúncia e da perseguição de todos os fraccionistas. Quando o medo toma o lugar da dignidade humana, até os laços mais enraizados podem estiolar - sucedia que muitos  chegavam a denunciar os seus próprios irmãos na miragem de obter, com isso, algum benefício.

Este é um período da história angolana em que as execuções se amontoaram à pressa, ao abrigo do decreto de Agostinho Neto, gravado em letras gordas naquele cabeçalho do Jornal de Angola: "Não vamos utilizar o processo habitual, que não seria justo. Nós vamos ditar uma sentença!"».

Américo Cardoso Botelho («HOLOCAUSTO em ANGOLA. Memórias de entre o cárcere e o cemitério»).






Um depoimento de Henrique Veiga de Macedo


Em que circunstâncias foi convidado para ocupar funções? Qual foi a sua reacção? Por que a abandonou funções? Como teve conhecimento do facto? 

Em meados de Junho de 1949, era eu então Delegado do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, no Porto, fui chamado por Salazar, Presidente do Conselho de Ministros, que, no Forte de Santo António, no Estoril, me disse do seu empenho em ver-me ocupar o cargo de Subsecretário de Estado da Educação Nacional. Tudo fiz para me subtrair ao convite, alegando, além do mais, que, embora fosse professor nas horas disponíveis, não me sentia preparado para essa função governativa. Mas logo Salazar me observou que os homens não valem tanto pelo seu saber como pelas faculdades de se adaptarem a novas situações e novos desafios. E sublinhou que, entre nós, ia vingando por de mais a velha tendência, que reputava menos correcta, de se exigir que o Ministro da Educação fosse professor, e professor universitário: o das Obras Públicas, engenheiro; o da Saúde, médico; o do Exército, militar... Pedi-lhe uns dias para reflectir, mas perante a urgência que me manifestou, acabei por aceitar o convite, que deveras me surpreendeu, e veio mudar o rumo da minha vida, numa altura em que já decidira abandonar a função pública para me dedicar à advocacia e à gestão da empresa industrial de meu pai.

Marechal Carmona e Oliveira Salazar


Durante largos anos, não me foi dado saber das razões que conduziram Salazar a querer-me como seu colaborador. Só há pouco tempo, ao ler o notável livro do Dr. Franco Nogueira sobre Salazar (vol. IV, p. 152), tomei conhecimento dos termos honrosos da carta em que este me propunha ao Presidente Carmona para o cargo. Também só muito depois, em 1961, quando saí do governo, o Dr. Joaquim Trigo de Negreiros haveria de revelar-me ter sido ele quem indicara o meu nome a Salazar. Tenho ainda razões para crer que o Doutor Fernando Andrade Pires de Lima, então titular da pasta de Educação, com quem tanto me aprouve trabalhar, e o Doutor Mário de Figueiredo, ambos meus inesquecíveis professores na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, contribuíram igualmente para a escolha.

Em 2 de Julho de 1955, ao regressar de uma visita à Madeira, integrada na execução do Plano de Educação Popular e da Campanha Nacional de Educação de Adultos, foi-me entregue uma mensagem de Salazar, solicitando que me responsabilizasse pela pasta dos assuntos do Trabalho, da Previdência e dos Organismos Sindicais (Ministério das Corporações e Previdência Social). Aí, dizia contar comigo para «reacender o antigo fogo e continuar a cruzada social e corporativa» - a qual, acho oportuno referi-lo, nunca teve raiz, feição ou sentido fascista, como tantos erroneamente se comprazem em propalar. Poderia, acaso, ser fascista quem, pela sua formação doutrinal e vivência cristã, sempre se mostrou contra os excessivos poderes estatais - «a elefantíase do Estado», para usar expressão sua - e que defendia a existência de corpos sociais institucionalizados com participação efectiva na vida política, como processo natural eficaz de limitar tais poderes? Era, aliás, pelo mesmo tipo de razões mas acrescidas, que Salazar repudiava também o nacional-socialismo, e o comunismo, a grande «heresia» da nossa idade, em seu dizer.

Não me é agora possível reproduzir aquela mensagem que, como tantas outras cartas e documentos do meu volumoso arquivo pessoal, em 2 de Maio de 1974, por ordem do Sr. Coronel Vasco Gonçalves, do MFA, me foram levados (sem qualquer explicação e sem que até hoje eu tenha conseguido a sua devolução ou sabido sequer do seu paradeiro), por um subtenente da Armada, dois agentes da Polícia Judiciária e um recruta, de cravo vermelho enfiado no cano de uma G3. Pelo mesmo motivo, não posso reconstituir o teor da carta em que, no começo de Maio de 1961, Salazar me agradecia os serviços prestados ao País e dava por finda a minha cooperação no plano ministerial. Dispunha-me, recebida esta carta, a regressar ao Norte, quando o Doutor Mário de Figueiredo, líder do Governo na Assembleia Nacional, me procurou por incumbência de Salazar, para me dissuadir dessa intenção, pois continuava a julgar-se necessária a minha permanência em Lisboa. E de facto, um mês depois, Salazar pedia-me («pedido pessoal... e com vivo empenho...») que passasse a presidir à Comissão Executiva da União Nacional, função que, apesar de não ser filiado, aceitei e desempenhei até Fevereiro de 1965, escusando-me, porém, a receber a remuneração que, equivalente à de Ministro, me fixara.






É corrente ouvir-se que Salazar era menos atencioso no relacionamento com os ministros e, em particular, quando estes iam deixar de o ser. No que me respeita, não posso esquecer as expressivas referências que, ao convidar-me para a União Nacional, fez à  minha acção no Governo e «ao momento alto» em que esta cessara. Confesso que ainda hoje me interrogo sobre se Salazar não terá querido assim dar-me a entender que a minha substituição, aliás por mim há muito desejada, não se prendia com a viva e crescente reacção de fortes grupos de interesses económicos, hostis à política social que eu vinha executando. Reacção que recrudescera na altura em que se tornou conhecido o meu propósito de integrar a cobertura de riscos de acidentes de trabalho e doenças profissionais na Previdência Social, bem como a proposta de Lei, por mim subscrita e enviada por Salazar à Assembleia Nacional, sobre o regime do contrato de trabalho, onde se previa, além de outras providências, a participação dos trabalhadores nos lucros das grandes empresas privadas e nas empresas públicas, ideia esta que, infelizmente, acabou por não vingar (in «Salazar visto pelos seus próximos», 1946-68, Bertrand Editora, 2007, pp. 47-50).

Continua


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