Afonso Botelho |
Prelúdio
Tendo em conta o estado de calamidade pública em que a Universidade se debatia em meados do século passado, melhor compreenderemos o estado de podridão a que uma tal instituição chegou nos dias de hoje, sem remédio nem esperança à vista. Ora, de Afonso Botelho sabemos que teve a felicidade de ter conhecido Álvaro Ribeiro e José Marinho, de modo que falava e escrevia com base numa vivência espiritual que o salvaria aquando da sua passagem pela máquina universitária.Porém, as alusões à Igreja Católica por parte de Afonso Botelho foram aqui preteridas. E a razão reside no facto de a acção católica, hoje praticamente destituída de pensamento, se ter tornado estéril e inoperante. Deste modo, sem que tal signifique qualquer espécie de animosidade para com o Magistério da Igreja, e muito menos para com a correspondente profissão de fé do autor, daremos aqui preferência àqueles trechos que mais incisivos se nos afiguram para um melhor entendimento da questão universitária.
Por outro lado, a ideia de Universidade enquanto corporação espiritual, bem como a de instituição promotora da transcendência no concerto dos povos, é já coisa de antanho. Esqueça-se, para efeitos de actualidade, a histórica filiação da instituição universitária no claustro monacal. Esqueça-se ainda o modelo medievo arquitectado e inspirado nas sete colunas do Templo da Sabedoria. Tudo isso foi irreversivelmente banido e ultrapassado pela pós-modernidade triunfante.
Por conseguinte, resta para a maioria dos Portugueses o espectro da Universidade Pombalina, em que Aristóteles não mais representa o eixo. Todavia, o mestrado de Aristóteles continua por cumprir. E porquê? Porque quem «estudar Aristóteles sem mediação de comentadores desactualizados, quem se compenetrar da filosofia e da filomitia do Estagirita, não encontrará dificuldade em concluir que o melhor aristotelismo se concilia com o pensamento português».
Estas últimas palavras, vindas de Álvaro Ribeiro, falam por si, tal como, aliás, também falam as de Afonso Botelho sobre os erros, as contradições e as iniquidades da Universidade defunta. E para mais, quando, na expressão do autor, «a grave crise [da cultura portuguesa] é inconsciente e secreta». Logo, vejamos no que consiste o drama do universitário.
Miguel Bruno Duarte
Filosofia Portuguesa
1. «(…) na Universidade (…) se faz uma verdadeira ocultação dos autênticos pensadores portugueses, sobretudo dos contemporâneos e, claro está, dos seus discípulos directos. Ocultação de obras e de pessoas».
2. «No (…) pensamento [de Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Pascoaes, Fernando Pessoa, etc.] (…) estão postos em causa os principais postulados do ensino oficial, tanto no que respeita à doutrina dominante, como no que respeita às bases pedagógicas que sustentam as instituições de ensino. A triste cadeira semestral de Filosofia Portuguesa [ou, mais propriamente, de "Filosofia em Portugal"] que faz parte do "curriculum" de algumas secções das Faculdades de Letras de Coimbra e de Lisboa, é também um dos processos de ocultação, visto que nela se oculta a originalidade actual e efectiva do pensamento filosófico português, pelo estudo da originalidade histórica e inofensiva da Filosofia Portuguesa».
3. «Nem a Filosofia Portuguesa se defende como uma coisa, embora seja atacada quase sempre como tal. Defender a existência e originalidade da Filosofia Portuguesa é defender, para portugueses, a autonomia do pensar e do falar. É essa autonomia que a Universidade dos Professores não pode ou não quer defender».
4. «Da relação mestre-discípulo conheço, apenas um caso, de resto tão significativo que chegou a dar forma nova à própria instituição e seu regime, ao mesmo tempo que individualizou um grupo de pensadores, continuadores das constantes dum pensamento comum, embora muito diferenciado nas suas posições doutrinárias. Refiro-me a Leonardo Coimbra».
6. «Assim como a via da relação mestre-discípulo excede os limites normais da Universidade a ponto de, quando se verifica, chegar a romper as normas estatutárias, a via da cultura fica aquém da natureza e missão próprias da instituição medieva. A via da cultura é (…) a que está mais próxima do conhecimento e mais afastada do saber. A cultura é, sob certo aspecto, saber objectivado e permite, portanto, que as relações concretas da elaboração de pensamento derivem e se integrem no esquema exterior e abstracto do acto geral do conhecimento, nas relações menores de sujeito-objecto».
7. «(…) o estudante que não encontre durante o curso um mestre, vivo em si próprio, ou nas suas obras, não completou a sua formação embora leve consigo a garantia da sua formatura».
Língua Portuguesa
1. «A degradação da linguagem no sentido da letra morta explica todo o nosso ensino, em que é patente e geral a hegemonia da palavra escrita sobre a palavra oral. No ensino secundário, cada vez se acentua mais o predomínio das palavras escritas; no ensino superior, até mesmo as provas orais são, no fundo, a repetição do que está escrito na sebenta, não significando, portanto, qualquer libertação da letra».
2. «Este processo de degenerescência de linguagem teve, por causa, a situação heterónoma em que culturalmente esteve, e está, a Língua Portuguesa, sujeita ao falar e ao escrever do estrangeiro, e por efeito, a perda total de autonomia das instituições de educação e cultura. E mesmo o Catedrático, que no regulamento da Universidade é, indiscutivelmente, o titular dos únicos direitos, deixou, à porta de entrada, a sua independência cultural, para não ter que utilizar a porta de saída».
3. «O "trivium", que é afinal o estudo da oralidade, cedeu hoje completamente o seu lugar na hierarquia do saber, ao conhecimento da letra e das letras».
Professores e alunos
1. «O elemento docente, como tal, está constituído em função do pluralismo da sociedade, das potências sociais, não podendo concorrer portanto para o universal, que a essência da Universidade exprime. Rigorosamente, a Universidade de hoje não deveria chamar-se universidade mas "diversidade", pois a sua missão, interna e externa, é a de "diversificar": diversificar a Ciência, impedindo uma hierarquia de conhecimento verdadeiramente progressivo, do múltiplo para o uno, do conhecer para o saber; diversificar a alma dos alunos pela adição dos conhecimentos científicos e subtracção dos valores de Espírito; diversificar os licenciados, ou "formados", pela especialização das profissões e das funções do Estado; por último, diversificar-se a si própria, no âmbito dos que a dirigem, através de intrigas pessoais, estreitos redutos de escola ou sistema, processo de ensino, posição política, etc., etc.».
2. «Enquanto o drama do Professor é um drama de vontade ou de consciência, que termina quase sempre em comicidade, o drama do aluno é um drama de obediência, de paixão inconsciente, que se prolonga pela vida fora, imerso nas carências da personalidade e nos erros dos costumes sociais».
4. «Os estudantes universitários não formam nenhuma classe, nem à face do Estado, nem muito menos à face dos professores; formam sim, eles e os professores, uma instituição que deverá viver harmonicamente com as outras dentro da Nação».
5. «A quebra da tradição universitária, o corte na sua essência histórica, fê-la perder o poder espiritual exercido em três sentidos correspondentes às três formas da sua missão: fê-la perder o seu próprio domínio interno, que era o da educação e da convivência universal de estudantes e professores – Universitas magistrorum et scholarium; fê-la perder a sua acção determinadora na vida nacional (…); fê-la perder, por último, a sua acção no entendimento espiritual das nações…».
6. «Enquanto a vida interna da Universidade não tiver configuração própria, enquanto professores e alunos não estiverem ao serviço de uma causa comum que lhes ordene a existência e lhes complete a personalidade, enquanto o ser universitário não for uma qualidade que implique certo tipo espiritual, não há "Universitas" nem se reconduz a Universidade à sua acção educadora».
7. «A nossa Universidade nasceu e desenvolveu-se de raiz vincadamente discente. Os escolares, os seus interesses, ou, mais tarde, o valor simbólico dos seus direitos, deram sempre à Universidade portuguesa o carácter estudantil e não professoral. (…) O panorama actual (…) é a própria oposição do que, outrora, a Universidade portuguesa foi».
8. «O tipo discente de Universidade é aquele que assenta numa comunidade de estudantes, no universal concreto, determinado pela vida, em comum, de pessoas que se juntam para estudar. Este foi o tipo da Universidade portuguesa (…), o tipo mais real de Universidade. (…) Isto não quer dizer que os professores não caibam na corporação, mas antes que o seu lugar é, secundário, enquanto lentes, e legítimo, enquanto estudantes».
9. «A comunidade dos que estudam, primacial e antecedente da corporação dos que lêem e dos que ouvem, em qualquer tipo de Universidade, tem, no regime da Universidade portuguesa, a tradição de garantir aquela comunidade básica dando ao elemento discente toda a autoridade e supremacia em desvavor do elemento docente».
10. «Não é a corporização dos mestres e dos escolares que nos deve preocupar porque nem uns nem outros formam, por si, elementos essenciais da Universidade. Se a quisermos verdadeiramente reformar, temos que descobrir primeiro o segredo daquela comunidade de estudantes sobre que todo o resto assenta. A corporação ou a convivência ordenada de professores e alunos virá depois, no decurso lógico da vida comunitária dos que têm por finalidade o saber universal».
11. «Assim como toda a verdadeira comunidade só deve governar-se por si própria, a Universidade, para voltar a sê-lo, só deve ser governada pelos estudantes».
13. «O professor tem uma significação meramente social na vida portuguesa. Já ninguém suspeita da missão educadora que esse nome devia suscitar».
Pena de Exame
1. «Ao estudante, oferecem-lhe apenas autonomia para o sofrimento dos exames. É uma autonomia motivada mas não justificada, porque o sofrimento que não sirva a salvação, não é justo nem justificável».
Capela de São Miguel da Universidade de Coimbra (datada do século XVI). |
3. «Onde porém, o exame é mais falso e também mais dramático, enquanto se sofre evidentemente, é no ensino universitário, visto que, na Universidade, o estudante espera o fim do adiamento cultural sofrido durante a instrução primária e o Liceu».
4. «Tanto no que respeita à personalidade, como no que respeita à Sociedade, a instituição universitária, pelo menos a partir da reforma do Marquês de Pombal, opõe-se ao livre desenvolvimento do princípio de individuação, que na comunidade política, se designa por nobilitação».
5. «Com a perda da tradição aristotélica na Filosofia, perdeu-se também o princípio fundamental da educação da nobreza, daquela nova nobreza que justificou a maior evolução e dilatação da Pátria».
6. «Desde que se considere o exame como método pedagógico, e é como tal que o consideramos em todo o nosso ensino, porque lhe damos a primeira e última palavra, a unidade lógica e temporal da aprendizagem é o conceito terminal, o conhecimento sem continuidade, que a cada momento se suspende para ser examinado».
7. «Acentuou-se o valor do exame, entre nós, com o progresso do critério experimental, a ponto de, hoje, se reputar este critério, não só o único capaz de avaliar o saber do aluno, como o único possuidor de virtudes estimulantes e pedagógicas».
8. «O método experimental, tal qual é preferido pelo senso comum destina-se a conhecer os fenómenos, a aparência da realidade, e é exactamente como aparência que o aluno é conhecido no exame».
9. «Quanto mais se radica o ensino no saber examinável, mais se descobre o desconhecimento em que forçadamente são colocados o examinador e o examinando – basta observar o crescente cuidado de anonimato nos exames liceais, onde se está logicamente à espera da máquina perfeita, que consiga mascarar por completo a pessoa do examinador, pois este cuidado tem origem na opção de quem ensina e de quem examina, sendo a passividade do aluno apenas um reflexo da actividade do Professor. Isto significa que (…) o sistema do anonimato, da classificação e do exame, não consegue esconder totalmente a bilateralidade da nota classificadora. O professor que classifica, classifica-se».
10. «O examinando é que sente o falso drama, porque recaem sobre ele, sujeito passivo do exame, as consequências sociais e espirituais de um ensino positivista. Fala-se no ensino positivista porque o Positivismo é a escola filosófica (pelo menos considerada como tal) que, exceptuando o Marxismo, mais se organizou para se efectivar socialmente. É uma escola que se exprime e se difunde através do curso, do discurso e do catecismo. Conseguiu, portanto, criar no meio docente de há várias gerações um substrato que explica todas as outras tendências e aparentes progressos».
11. «O examinando sente o absurdo de um saber que termina na prova, e que nada tem que ver com a formação da sua personalidade, porque, no exame, se devolve aos Professores que examinam os conhecimentos que ensinaram. E percebe também que a experiência a que vai ser sujeito é uma humilhação necessária para se manter o sistema em que o Professor domina o aluno».
12. «Todos os factores convergem neste momento para agravar a humilhação, mas o que fere mais cruelmente o estado emocional do examinando, é o conluio que se estabelece entre a sua família e o professor que examina, a antecipada concordância que pais e parentes manifestam perante a justiça do exame, denunciando assim que confiam mais no critério de estranhos do que no poder revelador do amor familiar. Uma boa parte das famílias portuguesas vem a reconhecer o valor ou desvalor dos seus filhos pelos resultados dos exames».
13. «No sistema da prova, tal qual se realiza no ensino português, falta a projecção natural da Fé, da Esperança e da Caridade: não se crê no que se aprende, não se espera nada do que nos é ensinado nem se confia em quem nos ensina, porque o exame é contrário ao amor humano e só estimula malquerenças, invejas e adulações».
14. «Nele, no exame, está realmente o segredo. A esse balcão comercia o aluno com o professor um diploma; aí se radicam os interesses fundamentais da Universidade. O professor, quer queira quer não, ensina para o exame, e o aluno aprende para o exame».
15. «O exame é o segredo. O segredo que conserva um agregado social na aparência de ser composto por dois corpos – o docente e o discente – que tem relações de tipo societário, isto é, de interesses ocasionais, com vários alunos, indiferentes entre si, mas supondo e dando a supor que constituem o corpo discente».
16. «O exame para os alunos, e o concurso para os professores, são dois ardis pelos quais o conselho dos catedráticos das várias Faculdades constantemente recusa a necessidade de escolher. Claro que a opinião individual continua a ser o elemento preponderante e decisivo. Não obstante a objectividade que se quer atribuir ao exame, todos os que já foram alunos ou professores sabem que, querendo estes, não há exame que valha à sorte dum aluno. Nos concursos a decisão escondida é ainda mais evidente, mas apenas porque os candidatos são em muito menor número do que os examinandos e os interesses postos em jogo muito mais concentrados. Num e noutro caso, porém, passa-se o mesmo: recorre-se a um processo de aparência para fugir à decisão activa e pessoal, esconde-se a potencialidade da opinião sob a carpintaria dum acto abstracto e positivo».
17. «O que o exame jamais consegue, nem mesmo na aparência, é doar a disposição de aprendizagem, o amor à Verdade (…). E isto porque o exame não chega a ser um processo pedagógico, mas uma derivante grosseira do questionário, que, por sua vez, já é uma derivante do método psicológico da experimentação».
18. «(…) todo o português é, hoje, por estado normal, um examinando. O exame estendeu as suas raízes muito para além dos limites da escola e (…) se seguíssemos a sua sombra, caminharíamos por regiões insuspeitas e insuspeitáveis. Talvez chegássemos à mais alta hierarquia temporal e até religiosa. Quero com isto dizer que o ambiente de prova de exame, acalenta o estado anímico do português, em todas as suas manifestações, quer profissionais, quer políticas, quer religiosas. Talvez não seja difícil sustentar a tese de que o próprio Deus é hoje mais usualmente crido e sentido como Supremo Examinador do que como Deus de Amor».
19. «Todo o recém-nascido é já um examinando em potência e mal começam a amadurar as suas faculdades já o é em acto. E nunca mais o deixa de ser até à reforma – ou seja até à morte para o trabalho social».
Continua
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