quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Champalimaud entra em cena

Escrito por Orlando Vitorino








Aí entra, e em toda a força, António Champalimaud. E eu, que ainda há dias exibia o meu orgulho de pobre, surpreendo-me a admirar o homem do dinheiro, o industrial que criou lenda entre os Portugueses.

Do Brasil se anunciara já, em entrevista telefonada a um dos seus jornais. Foi lisonjeiro para comigo, duvidando displicente dos candidatos presidenciais mas declarando que "ao Orlando Vitorino, em economia, dou 20 valores". Não podia ter tido eu melhor credencial.

Conheci-o há cinco anos, por altura das anteriores eleições presidenciais. Com a sua fisgada, viera do Brasil mas com passagem pela Inglaterra e Alemanha. Nessas terras lhe falaram de mim, em quem ele nunca ouvira falar. Desembarcado em Lisboa, logo me procura. Tenho de confessar que fiquei fascinado com a sua personalidade. O nosso primeiro encontro, em casa dele, prolongou-se desde as três da tarde até para além da meia-noite. Falou sem cessar. Contou minúcias da vida: que até aos 17 anos não tivera uns sapatos novos porque "herdava" os dos irmãos; que, durante quinze anos, passara as manhãs de todos os dias a responder a interrogatórios na Polícia Judiciária; que, por uns tantos anos, tivera de se exilar na Cidade do México. E entre suas misérias contou também de suas grandezas. Disse: "construi um império". Descreveu como comprara um Banco e, subindo a um andar do prédio defronte, levara a uma janela o maior banqueiro português e lho mostrara com uma simplicidade teatral ("é meu") que deixou o outro boquiaberto. Descreveu como comprara uma Companhia de Seguros olhando as fragatas que atravessavam o Tejo com produtos das suas fábricas. Descreveu como comprara as minas de Moncorvo a empresários franceses ("eu sim, eu é que nacionalizei") e as ia explorar como os outros nunca conseguiram (explicava: "seria o que há de mais fácil; eles é que nunca olharam para um mapa"). Descreveu como imaginara e planeara, exilado no México, o que ainda hoje não é a cidade industrial de Sines, plano que o Marcello lhe roubou mas não sabendo, nem ele nem os seus técnicos, executar. Descreveu, por fim, como alargara o seu "império" à África e referia-se, quase comovido, a Moçambique.

Levou tempo antes que falasse no que o trouxera até mim. E quando o fez, foi de chofre: "Eu serei o Presidente da República, Vocé será o Primeiro Ministro". Disse-o assim de chofre, decerto por um resto de receio. Argumentava: "Muitos deles foram meus empregados: o Spínola, o Zenha, o Proença, o Nobre da Costa... Muitos deles, fui eu quem os fez. O Zenha ("pagava-se bem, esse menino!"), o Zenha escreveu e publicou de mim o que só se diz de um ídolo (e mostrava o documento). O Nobre da Costa, esse, fez-se todo das migalhas que me vinha esmolar... Se eles são agora as grandes figuras do Estado, porque é que não hei-de ser eu o Presidente da República?"

Pois aí entrou ele outra vez em cena. Outra vez para ser Presidente da República. Mas não me procurou, agora. Pergunto-me porquê? Por eu já me haver candidatado e ter assim ficado seu adversário? Por ter alargado a mim, durante este longo intervalo em que nos deixámos de nos ver, a desconfiança que tem de toda a gente? Ou por não termos já nada que dizer um ao outro? Seja como for, não consigo deixar de sentir uma certa saudade desses meses em que ele seria Presidente da República e eu apenas Primeiro Ministro.



Champalimaud está em cena






Afinal, António de Champalimaud não deixa de me procurar e até me oferece de jantar no seu sumptuoso palácio da Lapa. Como outrora, ficamos longas horas a conversar, sentados frente a frente a uma mesa enorme numa sala forrada de magníficas tapeçarias Aubusson. Servem-nos uma velha criada que dá ao ambiente uma imagem de eternidade. Ainda não esqueci o nome dela: Conceição. Nem de quando, há cinco anos, eu ter vindo perguntar-lhe pelo patrão e ela, perplexa, ter acabado de me informar que andava no telhado da casa, onde havia telhas partidas. Champalimaud poupa-a: serve-me, serve-se. E fala, fala sempre.

Veio, como há cinco anos, preparar a candidatura. Pergunto-lhe: "Vai ganhar?" Fica perplexo. Depois responde: "O importante é fazer saber ao povo português que pode contar comigo..." E logo, mais forte: "...saber que eu invisto dinheiro, que é meu, na minha candidatura. É isso que eu quero que os Portugueses saibam". E vai prevendo o dia já próximo em que se desmoronará toda esta organização socialista que se apossou de Portugal. Nesse dia, os Portugueses irão recorrer a ele, dar-lhe-ão os poderes para pôr em prática as soluções que lhes vai agora propor na sua campanha eleitoral. Interrompo-o: "Admita que ganha? Que fará nesse caso?" Parece apossar-se dele uma espécie de delírio que, no entanto, logo controla. Mas acentua-se o seu modo de falar aos sacões, com expressões ora imperativas ora quase infantis e sempre em termos e vozes rudes. A minha pergunta leva-o a imaginar-se e descrever-se a si próprio subindo as escadarias do Parlamento para a cerimónia da posse, pisando tapetes vermelhos, entre alas de guardas republicanos fardados de luxo. Eu, cínico, insinuo:" Terá de jurar a Constituição". Reprime-se. Desenha com o braço um gesto largo, a apagar a imagem em que se estava vendo. E passa das grandezas imaginárias para as grandezas reais. Está, como ele diz, "outra vez rico". E enquanto eu fico a tentar imaginar o que seja, para este homem, a medida da riqueza, ele descreve a luta que acaba de travar com toda a indústria cimenteira do Brasil, como foi repetidamente acusado por Comissões parlamentares, o que teve de ouvir, o que soube responder. Por fim venceu. Descreve o combate e a vitória com imagens napoleónicas. No mais aceso da batalha, reuniu os seus homens de mercado e ordenou: "Damos tudo, menos dinheiro!" Passaram quarenta e oito dias e oito noites. Ao fim delas, fez-se um grande silêncio. Champalimaud esperou. Champalimaud subiu à torre. Não avistou viv'alma até onde a vista podia alcançar. O inimigo abandonara o campo de batalha. Era a vitória.

Está, pois, outra vez rico. Ri-se. Bate com a mão magra e longa no bolso: "Eu cheio de dinheiro, eles a tinir". Eles: o Estado, os políticos, os Partidos... "Vêm à minha porta, como pedintes. Há aí um Partido (parece-me entender o PSD) que quer que eu lhe dê as "obrigações" com que o Estado deles entendeu pagar-me as empresas que me roubou. Depositaram-nas num Banco, em meu nome. Mas eu não lhes toco. Porque hei-de ser eu a fazer um dia as contas. E como não lhes toco, os tipos imaginam que lhas posso dar". Ri-se e eu leio no seu riso: "o que os pobres diabos imaginam quando estão a tinir..."




Agora fala daquilo a que chama "o meu secretariado" para a campanha eleitoral. Já o tem composto e instalado. Hesita em dizê-lo, usa meias palavras... Eu quero conversar com toda a franqueza. Neste momento, não sei se em todos os momentos, um homem como este é muito mais importante do que essa coisa vaga, indefinida, meio teatral meio real, que é a Presidência da República. E digo-lhe tudo da preparação da minha candidatura: o que faço, o que tenho, quem trabalha comigo. Mas ele não consegue esconder a desconfiança de que eu só lhe digo o que me convém dizer-lhe. Em certo momento exclama: "Mas nós somos rivais".

Não, meu pobre riquíssimo amigo. Eu não sou rival de ninguém e muito menos de si, da sua personalidade fascinante, da amizade que me tem e não quer reconhecer porque nunca acreditou que houvesse amigos. E já que tanto gosta de citar clássicos, aqui lhe deixo um desabafo de Aristóteles: "Amigos? Não há amigos". Serve-lhe? A mim não. Por isso não sou rival de ninguém. Nestas eleições, limito-me a apresentar o que tenho e não é dinheiro, nem uma carreira triunfal de empresário, nem uma astúcia sinistra de político. Apenas tenho o que sei: um projecto de sociedade com o qual V, aliás, concorda quando está livre dos demónios que o trazem tantas vezes possesso. E proponho-o, muito simplesmente, aos Portugueses. Não quero saber do poder para nada. Afigura-se-me até que há uma certa obscenidade no poder político. Repugna-me mandar nos outros homens. Avilta-me a importância social. As escadarias atapetadas de vermelho já as fiz subir muitas vezes aos actores, no palco dos teatros. Aprendi com eles que tudo isso é fictício e só tem beleza quando se faz a fingir. O discurso de Marco António com o cadáver de César nos braços é tão belo na peça de Shakespeare como deve ter sido repugnante na realidade vivida. O que falta cada vez mais à humanidade é educação estética. Em especial aos políticos. Todos eles são actores sem personagem.

Actor sem personagem é o que Champalimaud não é. Dia a dia, hora a hora, ao longo de uma vida inteira, criou ele a personagem de que é actor. É um homem a sério, com uma grande obra feita e a fazer, e um justo orgulho de a ter feito. Aí o tenho à minha frente. E apossa-se de mim um mau desejo de lhe explorar a desconfiança que tem para comigo. Dirijo-lhe perguntas como esta: "Afinal, o que é isso do seu secretariado? Quem o compõe?" Ele hesita, mas resiste. Encolhe os ombros, atira a mão magra e murmura: "... uns professores universitários..." Outra pergunta, mais pessoal, a propósito de ele ter declarado, numa entrevista, que "todos os candidatos são zero ou nada". Sem qualquer laivo de censura, digo-lhe: "Também me inclui a mim nesse zero?" Mas surpreendo-me a ser eu próprio quem responde: "Claro que V. só se referia aos candidatos do sistema..." Concorda com um olhar e um sorriso que eu diria gratos.

Quando o deixei, vim com a certeza de que, como há cinco anos e como daqui a cinco anos, António Champalimaud não chegará a apresentar a sua candidatura.





(...) Um homem das Arábias


Logo de manhã leio a toda a largura da 1.ª página de um jornal: "Champalimaud: todos temos de votar em Freitas do Amaral".

Um homem das Arábias, este Champalimaud. Há poucos dias, dizia-me peremptório e duro: "Tudo, menos votar no Freitas" (in O processo das Presidenciais 86, pp. 24-26 e 62).


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