terça-feira, 12 de outubro de 2010

Fernando Pessoa apreciado por Teixeira de Pascoaes

Entrevista a Teixeira de Pascoaes








Assistimos à leitura do admirável «poema em prosa» (no dizer justo de Lopes de Oliveira), que foi a conferência de Teixeira de Pascoaes sobre Junqueiro. Nela, feriram-nos a atenção umas referências veladas, mas em todo o caso visivelmente depreciativas, para Fernando Pessoa como poeta. Ficou-nos o desejo de ouvir o autor do «Sempre» falar mais de espaço sobre o assunto. Havia motivos para julgarmos de particular interesse o seu depoimento sobre a personalidade literária de Pessoa, além da razão de ordem geral de ser sempre grato ouvir um grande poeta falar de outro grande poeta (ou, para nos exprimirmos em termos objectivos – considerado como tal). Na verdade, não fora sob a égide de Pascoaes que Fernando Pessoa se estreara nas letras? Não houvera, porventura, relações pessoais entre ambos e não emitira Fernando Pessoa, por mais de uma vez, juízos de valor sobre a poesia de Pascoaes, que mostram bem o alto conceito em que o autor da «Mensagem» tinha a poesia pascoaesiana? De Pascoaes sobre Fernando Pessoa, é que nada lêramos ainda e só ouvíramos as referências irónicas da conferência sobre Junqueiro. Além disso, tanto Fernando Pessoa como Teixeira de Pascoaes estão na ordem do dia, neste ano de 1950. Sobre Fernando Pessoa anuncia-se a próxima publicação dum estudo crítico; da autoria do próprio Fernando Pessoa foram, há pouco, reveladas as páginas sensacionais de «O Preconceito da Ordem» e sabe-se ir sair em breve a tradução portuguesa dos «English Poems». Quanto a Pascoaes (parecendo começar, agora, nesta sua terra, a dar-se conta de que é um escritor de celebridade mundial), o público português vai registando: acaba de aparecer a 4.ª edição do «São Paulo» em holandês; fundou-se em Zurique uma sociedade de intelectuais para estudar a obra do autor do «Verbo Escuro»; uma editorial americana vai publicar em português os inéditos, e ainda reeditar, também em português, toda a obra de Pascoaes, etc.

Encontrando-nos com Pascoaes, resultou, ao sabor da conversa, a entrevista que segue.

– Gostava de saber o que pensa de Fernando Pessoa. As suas alusões irónicas ao «Supra Camões» e ao «Sumo Poeta da actualidade» parece não deixarem lugar a dúvidas de que Fernando Pessoa não lhe merece muita consideração como poeta…

– Evidentemente.

– Mas então seria muito interessante ouvir a sua opinião, fundamentada, sobre Fernando Pessoa, tanto mais que a teoria do «Supra Camões» foi sob a sua direcção, na «Águia», que ele a expôs, e além disso creio que devem ter convivido um com o outro…

– Conheci-o pessoalmente, mas convivi pouco, ou antes, não convivi com ele. Tinha um aspecto misterioso… Olhe: era só quase nos eléctricos que o encontrava (excepto uma vez que conversei com ele no Martinho da Arcada). E, a propósito, ocorre-me que, numa ocasião, entrando eu num eléctrico (recordo-me bem, era da carreira da Estrela), deparo com Fernando Pessoa que me pergunta de chofre: «Já notou uma coisa, ó Pascoaes? Há escritores de quem toda a gente fala e ninguém lê, e outros de quem ninguém fala e toda a gente lê. E destas duas espécies, quais, em seu entender, têm mais valor?» Respondi que aqueles de quem toda a gente fala e ninguém lê, e Fernando Pessoa rematou: «É também a minha opinião».



– O que acaba de contar é já curiosíssimo. Mas, entrando fundo na questão: não considera Fernando pessoa uma figura literária de primeira grandeza, e possuidor dum talento extraordinário? – o que, de resto, no dizer daqueles que com ele privaram e tinham olhos para ver, saltava à vista ao mais ligeiro contacto?

– Considero, sim senhor, Fernando Pessoa um grande talento. Mais: afirmo que como crítico e como ironista não houve outro que o igualasse. Nem o Camilo nem o Eça, nem o Fialho (que, quando atingia o máximo da expressão, era superior ao Camilo e ao Eça). Mas depois veio Fernando Pessoa, e foi o mais genial de todos (tão genial, que o tomaram e tomam a sério, o que não aconteceu aos outros). O desaparecimento de Fernando Pessoa deixou um vácuo que ainda não foi preenchido, nem o será tão cedo. Já vê que tenho o culto da memória de Fernando Pessoa…

– Está bem, mas queria que me falasse do Fernando Pessoa poeta. E a propósito: sabe com certeza o que ele escreveu a seu respeito?

– Não me lembro.

– Por exemplo, que os «sinais do nosso renascimento próximo (Pessoa escrevia isto em 1923) são o caminho de ferro de Antero a Pascoaes e a nova linha que está quase construída».

– Ele escreveu isso? Desconhecia. Mas – ironizando… – deixe-me concluir a frase: «construída…» por ele!… Pois claro. Então ele não era o «Supra Camões?…» No entender dele
seria; no meu, não foi poeta…

– !?

– Repare: não digo que foi mau poeta. Digo que não foi poeta, isto é, nem bom nem mau poeta. E se foi poeta, foi-o só com exclusão de todos os outros, desde Homero, até aos nossos dias… Veja a «Tabacaria»: não passa duma brincadeira. Que poesia há ali? Não há nenhuma, como não há nada… nem sequer cigarros!… Fernando Pessoa tentou intelectualizar a poesia e isso é a morte dela. É roubar o espontâneo à Alma Humana, isto é, o que ela tem de Alma Universal ou de poder representativo da realidade. Veja o poema (poema?!) que começa «O que nós vemos das coisas»… Isto não é poesia, nem filosofia, nem nada. Não é poesia, porque nessa visão das coisas elas mostram apenas a sua mais próxima superfície, criada pelo seu primeiro contacto com a nossa sensibilidade; é portanto a sua mais falsa aparência. Não é filosofia, porque sobre esta aparência não podemos construir nenhum sistema interpretativo da existência, cujos últimos limites se estendem, talvez inspiradamente, para além da sua constituição atómico-eléctrica. Fernando Pessoa, quanto era lógico na prosa, era ilógico no verso.






– Íamos ouvindo e registando. Evidentemente que a nossa opinião não contava. Estávamos ali como se fôssemos um repórter e a função deste é provocar a discussão e, de seguida, escutar. Atalhámos:

– Ocorre-me esta afirmação de Pessoa: «Há duas feições literárias, a épica e a dramática. O lirismo é a incapacidade comovida de ter qualquer delas» Que lhe parece?

– Que não é nada disso. Ser lírico é ser poeta dentro das leis eternas da harmonia. Basta irmos à origem da palavra: vem de «lira», instrumento de música. E sem música não há poesia, não só lírica, mas também épica, dramática e satírica, pois a epopeia, o drama e a sátira, são formas do lirismo essencial.

– Então, em resumo, Fernando Pessoa…

– Em resumo, Fernando Pessoa não foi poeta, porque foi dotado dum raciocínio matemático. Ora a matemática estiliza a poesia e a poesia não pode ser estilizada, porque a estilização mata. Que é o homem estilizado? O seu esqueleto (que são as nossas linhas essenciais e firmes).

Mas Pascoaes conheceria toda a obra poética de Fernando Pessoa, para assim, não fazer a mais pequena concessão ao Fernando Pessoa poeta? Averiguámos que não, e comprometemo-nos a fazer chegar às suas mãos alguma coisa do que ele não conhecia e que, em nosso entender, poderia, talvez, modificar a sua opinião. Entretanto, como dispunhamos já de poucos minutos, quisemos ainda, abordar outra faceta da personalidade de Fernando Pessoa.






– Que me diz ao Fernando Pessoa político?

– Sobre isso nada lhe posso dizer com segurança. Nunca falei com ele sobre política e compreende-se, pois eu não sou político. Sou liberal, é certo, mas sou-o por egoísmo. Quero a liberdade pela mesma razão por que o sapateiro quer que haja sola: é que sem sola o sapateiro não pode fazer sapatos, e eu, também, sem liberdade não posso trabalhar intelectualmente. Em todo o caso, quanto ao Fernando Pessoa político, a impressão que tenho é a de que em política era o mesmo que em poesia. Tinha a arte de tornar o «sim» igual ao «não» e vice-versa… Em suma, um «blagueur» genial. Houve um esboço («a lápis…») do Fernando Pessoa: foi o Santa-Rita Pintor, outro «blagueur», cujas «blagues» andavam na boca de toda a gente, em Lisboa, há uns trinta ou trinta e cinco anos. Era considerado naquela altura o maior pintor de Portugal e creio que nunca pintou nada…

– Já que falou do Santa-Rita Pintor, diga-me: que pensa do movimento futurista?

– Nesse movimento houve um poeta, um verdadeiro poeta: Mário de Sá-Carneiro. Esse, sim, foi um poeta de raiz, porque não era nada estilizado. E no domínio das artes plásticas, houve, ou há, o Almada, que como artista tem incontestável mérito.

– Tinha terminado a nossa conversa. As opiniões nela manifestadas, discutíveis como todas as opiniões, e, talvez, não definitivas, revestem-se de alto interesse, dada a categoria de quem as emitiu. Valia a pena virem a lume? Ocorrem-nos as palavras famosas de Fernando Pessoa. «Tudo vale a pena se a alma não é pequena»…


Mário de Sá Carneiro (1890-1916).


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