terça-feira, 19 de outubro de 2010

Um Fernando Pessoa

Escrito por Agostinho da Silva








Àqueles a quem, não querendo mal, também especialmente não amam concedem os deuses uma vida fácil e benigna, que os faz, a eles e aos restantes, acreditar em protecção celeste; aos outros, porém, àqueles cuja carreira se vê essencial aos destinos do mundo, vendem os deuses e bem caro, todos o dons de que os cumularam; e, porventura, o preço mais alto que reclamam de sua mercadoria é o de, a cada momento realmente importante da vida, nada disporem como que de maneira fatal, deixando que o seu amado possa, em plena liberdade, escolher o que mais é de seu agrado; e aqui a maior parte se perde: porque à chama que os tornaria celestes preferem a temperada medianidade que para sempre os prende à terra.

Começa logo a escolha pela Pátria. Para a maioria dos homens, se apresenta a Pátria apenas como um acidente ou um acaso físico: são de onde nasceram, e, a pouco e pouco, a convivência dos pais, de seus conterrâneos, mais tarde a Escola e o Estado, os dois grandes organismos encarregados essencialmente de não deixar escapar ninguém das malhas do exército social, os vão gradual e realmente convencendo de que não poderiam ter nascido noutro lugar e de que uma escolha futura que livremente pudessem fazer representaria sempre e de qualquer modo uma diminuição ou tradição. A outros, no entanto, e porque são amados dos deuses, se apresenta o caso de modo diferente: a vida, mostrando à superfície, como circunstância, o que é meditado e deliberado propósito de quem rege a História, os encaminha à escolha que decidirá de seus destinos: o de resplandecer num véu de glória, que é quase sempre, visto por dentro, um véu de lágrimas, ou o de ser jogado fora como um vaso de oleiro que mentiu, pela má qualidade do barro, à diligente regularidade da roda e à inventiva agilidade do gesto. Quem pode, em raro jogo, escolher o seu País por aí mesmo está escolhendo a sua vida: uma vida que dele mesmo se vai alimentar.

Para Fernando Pessoa, cuja existência se iria desenrolar, tanto quanto se poderia prever, no Portugal de seus tempos, isto é, no ponto mais baixo que poderia atingir a descendente curva da austera, apagada e vil tristeza, a alternativa apresentada foi a mais tentadora que se poderia imaginar: a da Inglaterra, e a de uma Inglaterra apreendida na sua história e na sua cultura. Por uma daquelas pequenas resoluções que movem depois as grandes molas, poderia Fernando Pessoa ter passado inteiramente ao domínio inglês e nele se afirmado como um homem de Império, já que o encontro se cumpria na África, ou como um homem de Universidade, já que o encontro era igualmente num ambiente à Walter Pater, com imaginários retratos de Inglaterra elisabeteana mascarando uma outra que apenas procurava colocar seus capitais e manter pela força os seus mercados. Numa ou noutra carreira, teria Fernando Pessoa sido célebre: as críticas a seus poemas ingleses seriam apenas o prenúncio do que os outros críticos viriam a escrever; um outro Conrad, noutro domínio, se incorporaria à literatura inglesa.

O que, no entanto, acontecia era que iam mais alto as ambições de Pessoa e penetrava a sua inteligência mais longe do que a dos estadistas ingleses. Era o mundo mais nobre, mais humano e mais divino, do que o supunha a Inglaterra e jamais se resignaria a aceitar como permanente, apesar de todas as excelências sobre os outros, apesar de não ter constituição escrita, apesar de tender já a uma Comunidade de nações livres, um império que, na base de tudo, mantinha as duas noções e invenções diabólicas da força e do lucro. No fim de contas, o melhor que a Inglaterra lançava sobre o universo já Portugal o fizera, muito antes dela; e Portugal porque não era de nenhuma Igreja reformada, porque se mantivera fiel a Roma e à fraternidade católica, porque nunca fora sequaz de uma ciência que tendia apenas a dominar, de uma economia que tendia apenas a explorar e de uma política que não era outra coisa senão de origem maquiavélica, deixara aberta, apesar de suas falhas, uma esperança para o futuro: a de que o seu império do mar fora apenas o primeiro passo, por isso mesmo ainda físico e político, de uma acção que depois a Europa, incompreensiva como sempre, lhe viria cortar: a de trazer para o mundo aquele Reino que milhões de homens quotidianamente imploram em vão.



O jovem Fernando Pessoa




Vai, pois, Fernando Pessoa, deliberadamente, confirmar o acaso físico: vai nascer português porque tem a convicção de que Deus não pode abandonar seu outro povo eleito e de que, passado o domínio da Europa, quando a técnica tiver esgotado todas as suas possibilidades, quando a economia protestante se verificar plenamente anti-humana, quando a centralização estatal se revelar estéril, Portugal virá de novo construir o seu mundo de paz, por maior que tenha de ser o seu sacrifício: mundo de uma paz que não surja como a Romana ou a inglesa, do exterior para o interior, de um César para seus súbditos, dos tribunais para os corpos; paz que se realize antes de tudo nas almas, lei que seja inteiramente não escrita e, no melhor de si, informulada; Reino de Deus que surja pela transformação interior do homem.

É como uma justificação e uma explicação deste seu acto fundamental de vida que Fernando Pessoa, pacientemente, vai durante quase duas dezenas de anos escrevendo Mensagem, sem dúvida a mais importante de suas obras e plenamente emparelhando com Fernão Lopes, Os Lusíadas, D. João de Castro e a História do Futuro na compreensão do que verdadeiramente é Portugal; pela inteligência e entendimento fundamentais que enformam toda a obra e por ter posto mais a claro do que Camões na Ilha dos Amores a concepção de um verdadeiro Império Português ou Quinto Império, veríamos até Mensagem como de importância superior à dos Lusíadas: no total, o não é, porque inutilmente procuramos na obra de Pessoa traços daquela espantosa e eloquente vitalidade de Camões, daquela ígnea personalidade que em si ardendo destruía todos os círculos limitadores que ele próprio ou os outros tentavam traçar à sua volta; a diferença que há entre Camões e Pessoa é a diferença que há entre um homem e a sua inteligência: mas esta brilhava; foi mais compreensiva quanto ao Passado estático e ao Passado dinâmico, tão incisiva como a de Camões quanto ao Presente e muito mais aguda na previsão do Futuro.







A primeira ideia que nos dá Pessoa é a de que há um certo passado de Portugal que não é de natureza puramente histórica: é apenas uma revelação no passado do que é em Portugal uma perenidade; o apuramento dessa perenidade constitui o conteúdo da primeira parte do poema, aquilo a que Pessoa chamou justamente Brasão, mas que não é para ele brasão de túmulo, ou brasão daqueles palácios em ruínas que foram obsessão em Gomes Leal: o seu Brasão é a nobreza em cerne, é a essência do ser fidalgo de Portugal. Quando agir, será no Passado, a segunda parte do poema, Mar Português, e, no Futuro, a terceira parte, O Encoberto. Brasão terá como lema Bellum sine bello: é a potência sem o acto, a energia sem a matéria, a História sem o tempo: Deus, vendo Portugal em Si eterno, escreveria Brasão. Mar Português é o acto que não esgota a potência, a matéria que não apaga a energia, o tempo que não liquida a História: por isso é apenas a Possessio Maris que o Poeta lhe deu por lema: é Portugal podendo apenas uma mínima parte do que pode; não se entregando todo e, portanto, apenas possuindo; em Mar Português, Portugal Tem, não É. Em O Encoberto, porém, toda a sua grandeza se revela: e o descerramento desta sua glória é quase a renovação, agora de homens para homens, do clamor antigo dos anjos, quando o Céu fez, por uma Terra que dele se desaviera, o sacrifício supremo de si próprio: Pax in excelsis; paz nas alturas em que o homem, indo além de si mesmo, se faz Santo; não a paz em que o homem, rendendo-se, organiza, explora e defende a sua própria baixeza.

Em Brasão, Portugal é o rosto com que a Europa fita um Ocidente que, ao plenamente ser, justificará todo o passado de miséria que a humanidade tiver atravessado; a missão de Portugal não poderá ser outra senão a de resgatar o que a Europa fez e de a salvar a seus próprios olhos; por isso o seu campo, o dos Castelos, é o que serve de base ao das Quinas, o das Chagas de Cristo, este o campo de Portugal: é expirando na cruz, esgotando-se no seu sangue e na sua piedade, que Portugal poderá salvar o mundo.

Castelo de Guimarães


No dos castelos, porém, Portugal porá, como seu alicerce, o que de mais fundamental a Europa poderá ter dado ao mundo: com Ulisses, a ideia de que o mito é mais importante do que a realidade, de que o poder vir a ser é o substracto do que é, de que as coisas morrem à medida que são; com Viriato, a de que a verdadeira força propulsora da vida não é a inteligência, mas a reminiscência, e de que o ponto criador não é a definição, mas o pressentimento; com o Conde D. Henrique a de que a acção, se Deus é o agente, se faz para além das intenções e das possibilidades do herói, consistindo o heroísmo apenas em se não recusar o que se não compreende; com D. Tareja, juntamente com a da contemporaneidade do temporal e do eterno, a de que o dever perante a obra consiste em a ela se dedicar com a bruta e natural certeza com que a Mãe amamenta a seu filho; com D. Afonso Henriques, a de que para se vencerem infiéis, só vale uma indefinível arma, que, espinosianamente, tenha como um dos aspectos o da espada e como outro o da benção, como um, o do corpo, como outro, o do espírito; com D. Dinis, a de que a intuição poética vale mais do que o plano; com o sétimo castelo, o que junta D. João e D. Filipa, o que se afirma é que a história, ao ser, toma dois aspectos: o do homem e o da obra, sendo as modificações de qualquer desses o reflexo das modificações do outro; e ainda, que o milagre da concepção humana consiste em que cada filho, sendo de seus pais, não tem ao mesmo tempo nada que ver com eles: a cada nova geração reafirma o Espírito Santo a liberdade de criar. A Europa em que Portugal assenta não é, felizmente, a Europa cartesiana.

Se a força de alicerce de Portugal vem de ter afirmado a existência de uma Europa que duas vezes se perdeu a si própria, primeiro na Idade Média grega, depois na Idade Média Ocidental, a sua força de salvação virá de, voluntariamente, ter incluído em seu brasão as chagas de Cristo, não pintando-as apenas, mas consubstanciando-as em gente sua: primeiro em D. Duarte, o mártir do dever; depois em D. Fernando, o mártir da grandeza de alma, superior sempre a seu destino; e em D. Pedro, o mártir da fidelidade a uma ideia claramente pensada e claramente sentida; e em D. João, o mártir de não querer senão o todo, ou o seu nada; e, finalmente, em D. Sebastião, o mártir do sonho de grandeza que está para além das circunstâncias históricas. Coroando os campos, a santidade activa de Nuno Álvares, a sua pureza guerreira, o halo que no céu gravam suas acções terrestres; e, numa afirmação final da energia que a tudo subestá, o Grifo com sua cabeça de águia adivinhando o mundo como um perfeito globo, ou melhor, obrigando o mundo a ser o globo que pensava; com uma de suas asas rasgando o firmamento num sulco de vontade, com a outra das asas o rasgando num sulco de poder.


Estátua de D. Nun'Álvares Pereira (Mosteiro da Batalha).


Sobre a base teórica de que a vontade de Deus desperta o sonho do homem e de que o sonho do homem provoca o surgimento da obra, e afastando por aí, para explicar a História, tudo o que sejam causas espirituais ou materiais limitadas ao círculo humano, e pondo nitidamente, logo no primeiro poema, que a história que vai contar, a da Possessio Maris, não é a história de Portugal, mas apenas o seu interrompido prólogo, Pessoa dá o que foi o encantamento máximo dos navegadores, o de transformar o abstracto em concreto; o que foi basilar em sua actividade, a convicção de que só em Deus, como último ponto, encontrariam o porto de repouso; a vontade de um rei de carácter sacramental que, faz, ao mais humilde dos homens, poder mais do que todos os medos do mundo; a glória de ter mostrado que o mar é sempre o mesmo e que a sua posse nada significa de vital; o sentimento de que o que vale na empresa de buscar é a busca e não o encontro; o mérito de ter sido o corpo da vontade de Deus, de ter sido o Tempo da Eternidade a revelar; o impulso que irá conduzir a história para além dos que o lançaram; a consciência de se ter realizado, no mundo físico, e sem nisso estar verdadeiramente empenhado, a mais alta façanha de que os homens se podem orgulhar; o ter ensinado que toda a descoberta se faz apenas quando se tem a coragem de passar além dos domínios da alegria e da dor; por fim, em Última Nau e Prece, a certeza de que, embora tenha vindo a noite e seja vil a alma, Deus ainda reserva para o seu povo Distância a conquistar.

É essa Distância como distante, é essa conquista como inconquistável o que, em O Encoberto, se anuncia pelos Símbolos, pelos Avisos, o último dos quais é o do próprio Fernando Pessoa, e se afirma triunfantemente através do negrume dos Tempos. Portugal, completando a sua obra, dará ao mundo o seu íntimo Império feito de anseios, de lonjuras, de Reinos ilocalizáveis em tempo ou espaço, o seu reino de alma humana continuamente sendo e continuamente ansiosa de mais ser, tendo-se inteiramente desprendido das ilusões de uma afirmação puramente pessoal e de uma pessoal felicidade; o mar bate nas costas do Império, mas, se o escutarmos, pára; decerto, porém, um dia, desistindo de nos opormos ao mundo, não mais o quereremos escutar; então, através de todo o nevoeiro, pelo próprio nevoeiro, terá surgido a Hora; o Encoberto, em milagre supremo, se descobrirá.



Corpo de Heitor (Guerra de Tróia).



Tomada a primeira decisão e aceite o dom dos deuses, encontram-se eles no pleno direito de exigir a paga, tanto mais pesada quanto menos qualidades intrínsecas apresentava aquele que se resolveu à escolha; se a dádiva foi a quem, de certo modo, menos a merecia, mas se decidiu onde outros porventura hesitaram, só poderá ele redimir-se do pecado de ter roubado fogo do céu sofrendo na sua carne e no seu espírito. Nenhum autor de verdadeiras epopeias o deixou de saber; nem Homero nem Camões, nem Milton se eximiram ao preço; não poderia outra coisa ter sucedido com Pessoa. Há, porém, quanto a ele, uma diferença importante: as outras epopeias surgiram da inteira personalidade de seus autores e eram eles heróis como os de seus poemas, heróis apenas traídos pela diferença dos tempos, a diferença de resto necessária para que a perspectiva épica lhes fosse possível; Homero poderia ter-se batido em Tróia, Camões tem o entusiasmo da primeira viagem, Milton, não podendo estar com Lúcifer, esteve com Cromwell. Mas Fernando Pessoa criou a epopeia com a compreensão que lhe davam inteligência e sensibilidade, numa união religiosa; faltaram-lhe, no entanto, a vontade e a acção. Tiveram os outros todos os sofrimentos que vêm da presença e da participação; caíram sobre ele os que surgem de se recusar e estar ausente.

Nenhum dos autênticos poetas épicos, e daqui se excluirão muitos dos que estilisticamente escreveram epopeias, incluindo-se muitos dos que trabalharam outros géneros, nenhum deles foi primacialmente um literato; foram, na essência, homens de acção que, nos intervalos, a escreviam. Deste caminho desviaram a Pessoa ou o erro ou a fatalidade ou, mais de acordo com a ideia sua de que vendem os deuses quando dão, a fatalidade de errar.



Infante D. Henrique (quadro de Malhoa).



Foi sua primeira manifestação a de confundir o Portugal que teve a posse do Mar com o Portugal que o Encoberto deveria, ressuscitando, conduzir às novas e supremas aventuras. O primeiro Portugal foi o Portugal continental, o da defesa contra a Espanha, ou melhor, contra Castela, e, porventura, sobretudo o Portugal da velha unidade galaico-portuguesa, o Portugal lírico e guerreiro das cantigas de amigo e das velhas trovas do cancioneiro popular; nele estiveram as raízes mais profundas da nacionalidade e nele sempre residiram as inabaláveis bases daquele religioso amor da liberdade que caracteriza Portugal como grei política; e é porque Deus faz a História e gosta, poeticamente, de jogar com seus símbolos, que o Infante D. Henrique nasce no Porto e no Porto se bate o Rei D. Pedro. Terminada, porém, a fase de expansão, outro Portugal entrou em jogo e muito mais adaptado à sua tarefa do que o Portugal do Norte, demasiado rígido para as aventuras da miscigenação, da tessitura económica e do nomadismo que não reconheceria limites e, no entanto, firmaria fronteiras: é esta a vez do alentejano, andarilho de estepa, do algarvio, barqueiro de porto a porto, ambos já, por súbditos mouriscos, colonos e crioulos. Também, por símbolo, Raposo Tavares nasce no Alentejo, e vão das Ilhas, com raízes alentejanas e algarvias, os casais do Sul do Brasil.

É a esta acção mais directa de um segundo Portugal que se deve a estabilização e a conservação do que o primeiro conquistara e se deve, portanto, a possibilidade de ter surgido, como palco para a grandiosa acção, o Portugal de nossos dias, que já não é, de modo algum, o continental, mas o Portugal dos cinco continentes, de que o outro é, apenas, a dependência ou província europeia. Portugal está hoje em toda a parte e, porque os territórios da América, da Ásia, da África e da Oceania sofreram muito menos a opressão da Europa de Carlos V e conexos, o Portugal mais autêntico e de maior vitalidade não é o País cuja capital é Lisboa, mas o do Brasil, ou o de Angola, ou o da Índia. É um Portugal que não tem seu centro em parte alguma e cuja periferia será marcada pela da expansão de sua língua e da cultura de Pax in excelsis que ela levar consigo; é um Portugal que se não importará com a definição de regimes políticos, de regimes económicos ou de instituições religiosas, porque esse será o problema de cada uma de suas unidades, só ficando, por essência e definição do próprio conceito - Portugal, totalmente excluídas aquelas formas institucionais que vão, como o autoritarismo político, o liberalismo económico ou a negação do Espírito Santo, contra o que há de estrutural no próprio homem: o Portugal da Hora, o Portugal de Bandarra, de Vieira e da Mensagem; não é de modo algum o Portugal do Minho ao Algarve, culturalmente tão provinciano e tão acanhado: é, mas já expandido a todo o mundo, o Portugal que ainda vive no coração e na acção de seus pescadores e de seus montanheses, o Portugal cujo Rei jurava as Ordenações como qualquer outro cidadão, o Portugal das terras comunais, o Portugal de Santa Maria. Só para este Portugal ressuscitarão os mortos de Alcácer, porque só para ele vale a pena alguém viver. O outro só pode trazer a quem nele se aferra, e por mais heróicas que sejam as suas razões, o desânimo, a amargura, ou o imaginar, o puro imaginar, da evasão; Portugal porque a História passou, se ultrapassou.






Para o Fernando Pessoa que concebera a Mensagem ia o drama ser muito profundo. Se, para o surto poético, ele soubera distinguir e tivera a coragem de escolher entre a Inglaterra de Isabel e o Portugal do Bellum sine bello, que é apenas outra forma de expressar o Pax in excelsis, dando neste a plenitude do que no outro é a semente, quando se chegou ao terreno da prática o único Portugal que ele viu foi o da Europa, viciado por trezentos anos de ocupação estrangeira; o erro foi mais longe, porque de Portugal se restringiu a Lisboa, mais viciada ainda, porque lhe tem cabido, como sede de governo, o papel de impor o estrangeiro ao resto do País; e em Lisboa escolheu para conviver o pior meio que se pode imaginar, o dos cafés de literatos. A sua existência, como Fernando Pessoa, vai ser a de se mover dentro de um círculo estreito que não ousa romper e de que apenas se evade pela leitura e pela conversa, pela bebida e pelo fumo; o que poderia ter sido a violenta, arrastadora, despertadora corrente, lentamente se pantaniza entre quem o não valia, e ele próprio se não valendo a si. Nem os impulsos do carácter, como a de um Espinosa, nem os impulsos de temperamento, como a de um Camões, o salvaram do tédio de se ver ao espelho; pisando, no mesmo círculo se afundou, e afinal, como outros portugueses que, tendo a alavanca de mover mundos, lhe procuraram ponto de apoio em Portugal, teve de se resignar ao suicídio: e ao pior dos suicídios, o que vem de se deixar morrer.

Quando se entrega aos planos de Deus, como na Mensagem, a sua inteligência atinge o plano da genialidade generosa; o que acontece é que a adesão a Deus é sempre nele um acto que a cada passo se tem de renovar: Fernando Pessoa era incapaz de fazer votos perpétuos; então, nos intervalos, o Diabo espreita, e com a tentação da inteligência, que é, além de tudo, por ser ele próprio inteligente, a tentação que o Diabo melhor maneja. Tão mefistofelicamente inteligente se torna então Fernando Pessoa que inteiramente lhe desaparece a faculdade de amar; que, num pobre sucedâneo da conjugação dos tempos na Eternidade, elabora a subtileza, puramente intelectual, de ser feliz, se ser feliz outrora agora; que se sente contente ao imaginar a beleza das paisagens descortinadas através das janelas de lares que nunca terá; que, finalmente, ao contrário do novelo divino, que é eternamente um novelo desenrolando-se no espaço e no tempo e um novelo a si mesmo eternamente voltando, se transforma num novelo embrulhado para o lado de dentro.

Só que a natureza do homem não é diabólica e é seu último fim a santidade; pode o Diabo não querer, por demoníaca obstinação, livrar-se de seu beco, mas nem orgulho nem preguiça formam à volta de coração humano muralha tão espessa que a esperança não a rompa: ao passo que o que perde o Diabo é ter perdido a esperança; ou não querer ter esperança. O problema seguinte a resolver é naturalmente o de a vontade se seguir à imaginação que sempre a esperança arquitecta, o de ter quem espera o carácter suficiente para persistir no caminho entrevisto. Mas o que se punha em primeiro lugar, para Pessoa, era a questão de saber como haveria possibilidade de se não suicidar, tendo caído no meio em que caíra e não vendo maneira de dele se livrar, pelo tal preço dos deuses ou por circunstâncias de feitio puramente histórico. Não uma, mas várias foram as soluções concebidas: e tão grave era a questão para Pessoa, tão vital a sua resposta, que as soluções, como por um novo baixar do Espírito, não surgiram, como seria natural num escritor, sob a forma de ensaio ou poesia: surgiram encarnadas, surgiram como gente, e, como indivíduos autónomos, puderam, independentemente da vontade de Pessoa, não da sua vontade criadora, anunciar o que eram como solução e, até, travar polémicas entre si ou com o próprio Fernando Pessoa. O que havia de feminino em Pessoa, e nele tanto importa, se paria em poetas (in Um Fernando Pessoa, Guimarães Editores, 1996, pp. 11-35).


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