quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

«História» e «Poesia» na Tradição

Escrito por Eudoro de Sousa





Heródoto



«O advento da história é, pois, uma revolução, na Grécia do século V [a. C.]. Mas uma revolução não apenas atribuível a Heródoto e a Tucídides porque nos surge como que representando etapa necessária do racionalismo grego na sua evolução especulativa. O outro pólo de tal revolução é Aristóteles.

Também Aristóteles, antagonizando Platão e toda a mitologia, desenvolveu uma noção de causalidade de que se apropriariam os historiadores. Também Aristóteles, em certa medida, fez história (Histórias sobre os Animais). Vamos mais longe: é na Metafísica que encontramos exposta e desenvolvida filosoficamente a teoria da causalidade histórica, em termos tais que pouco lhe poderíamos hoje acrescentar. Ao mesmo tempo, todavia, é o próprio Aristóteles que se opõe a Heródoto, na sua asserção de que "a poesia é mais filosófica do que a história", e quem corrige e completa a insuficiente teoria de uma causalidade monofacetada capaz de explicar por si só, e inteiramente, os actos e os eventos.

Quanto ao primeiro aspecto, observa o Estagirita na Poética: "... Não diferem o historiador e o poeta por escreverem em verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) - diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é mais filosófica e mais elevada do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular".

Por muito rigor que use o historiador na apreciação dos documentos, por muita exigência de verdade que manifeste, sempre o produto deste labor, insinua Aristóteles, permanece na esfera do particular, e não só porque seja praticamente inacessível acumular todos os factos históricos e em relação a esta totalidade relativizar a história particular de Alcibíades, ou dos Gregos, ou dos Portugueses, ou dos Europeus, mas sobretudo porque o tipo de causalidade que constitui a esfera própria da história não é universal, não se refere ao uno, não estabelece relação aceitável com o ser, mas tão-só com a parte, com a projecção, com a representação de uma das suas dimensões, excluindo a dimensão essencial, que é objecto da metafísica, decerto, mas que a poesia por assim dizer prefigura ou simboliza.

Eis porque, na sua teoria das causas, à causa eficiente, que funda a causalidade histórica, Aristóteles acrescenta a causa final, que tem em si a potência de superar a historiografia de Heródoto e dos seus sucessores e de restituir toda a dignidade metafísica a uma história já não vinculada aos factos e ao tempo homogéneo, mas aberta ao futuro e à liberdade, num tempo imatematizável. Tal tipo de história, que não seria já obra dos Gregos, mas viria a ser desenvolvido pela filosofia cristã da história, na linha afro-bracarense de Santo Agostinho e de Paulo Orósio, surge-nos em verdade já implícito na dialéctica causalista, sugerida no Livro V da Metafísica».

António Quadros («Introdução à Filosofia da História»).


«(...) É bem certo que Aristóteles teoriza a história muito menos do que o supõem os filólogos modernos...».

Eudoro de Sousa (Introdução à Poética de Aristóteles).


«Mais do que pelas promessas, é pelas narrativas que vulgarmente se propagam as mentiras. Consciente da relação entre o antecedente e o consequente, o mentiroso pode atribuir falsas causas a acontecimentos reais. A História, apesar da sua cientificidade, está sujeita às arbitrariedades de quem a escreve e de quem a ensina.






A historiografia é um processo de racionalização do passado que tende para a dedução cronológica. Racionalizar é atribuir intenções racionais e até morais a actos com motivação e intenção diferentes. Assim, o historiador é capaz de defender uma injustiça dizendo que ela foi apenas uma ilegalidade, ou uma legalidade, como poderá desculpar um crime alegando que ele evitou a consecução de actos piores. As obras de ficção, como as novelas, os romances e os contos, assentam sua técnica na escolha de falsas causas tomadas por antecendentes de verosímeis feitos. As anedotas, que tornam maliciosa, picaresca e alegre qualquer conversa vulgar, também resultam da preparação astuta de um antecendente que provoque um inesperado consequente, causador de riso ou de sorriso.

Há momentos em que o homem e a mulher não podem resistir à tendência para dizer a verdade, afirmando-a em narrativas várias de conteúdo mais ou menos autobiográfico. Defendem, contudo, a sua honra, a sua reputação e a sua vaidade, ao afirmar como sucedido com terceira pessoa o evento de que foram agentes ou pacientes. Assim dizem ter acontecido com um amigo, com um conhecido, o facto de que asseguram a verosimilhança ou a verdade. Neste processo de objectivar a subjectividade gera-se uma tendência para dramatizar em conversa ou em escrita, o que pode ser uma fonte de arte».

Álvaro Ribeiro («Liceu Aristotélico»).





«HISTÓRIA» E «POESIA» NA TRADIÇÃO


Por paradoxal que pareça, «literatura» é um elemento cultural moderno, e até, dos mais característicos da modernidade, De modo que de um título como História da Literatura Grega, sob a imediata significação que todo o homem culto depreendeu da leitura, mais ou menos apressada, e distraída, de compêndios escolares e obras de divulgação, encobrem-se pelo menos três equívocos, ou porventura só três, porquanto dois apenas são os termos que o compõem (história e literatura grega), e mais um que é o composto deste termos.

O primeiro diz respeito à «história». Se é certo que a maioria da gente que ouviu falar de história, a entende como um saber do quer que seja ocorrido antes da época em que o historiador se situou para no-la contar, mais certo é que, sob tal designação, conhecemos escritos de duas espécies: uns que visam a descrição do desenvolvimento cronológico, de alguma acção ou situação, e outros que, embora tenham em mira o entendimento do acontecido, não relacionam mediata ou imediatamente o acontecido com o acontecer, isto é, não exprimem pelo relato do acontecimento o que faz com que ele de facto o tenha sido.

Em «literatura grega» depara-se-nos o segundo equívoco. Qualquer letrado admite sem perplexidade a existência da literatura, pois, como se disse, é ela um dos traços mais característicos da cultura moderna. E como sem perplexidade admite a existência da literatura, sem crítica aceita a existência e essência de uma literatura grega. Dá-se porém o caso, ou melhor, apenas se dá o caso de não haver existido e jamais ter sido, a literatura grega, senão o denominador comum, modernamente forjado, da epopeia, da lírica, do drama, da retórica, da historiografia, da filosofia - em suma, de todos os géneros poéticos ou não poéticos, em que os homens de então disseram ou tentaram dizer algo que, decerto não é o que, no falar depreciativo de muitos, se entende por «literatura».

Estes equívocos menores, elevados à segunda potência de incompreensão, geram o maior equívoco, que é o de atribuir à Grécia uma «história da literatura».

Atena


Com efeito, se por literatura entendermos o conjunto dos géneros literários, tal literatura não tem história na Grécia Antiga; e não a tem, sobretudo, desde que na história subentendamos desenvolvimento, evolução ou progresso, pois não há quem desconheça essa peculiaridade dos alvores da tradição clássica, que consiste em milagre idêntico à nascida de Atena. Neste sentido, só poderia haver, não a história, mas a pré-história da tragédia e da comédia, da epopeia e da melopeia. História - essa só haveria, pressupondo que se atentasse apenas no que os géneros poéticos, assim denominados, expressam, pelo modo que lhes é próprio, acerca de determinados aspectos da realidade natural humana ou divina. Mas se, por «literatura», entendemos o que aos géneros poéticos e aos géneros prosaicos, à poesia e à prosa, é comum, quer dizer, se a literatura for outro nome que damos à expressão escrita, com «engenho e arte», deste ou daquele aspecto, ou de todos os aspectos da humana consciência do Homem, de Deus e da natureza - então, se há história, e história com sentido de desenvolvimento, evolução ou progresso, história da literatura será, que melhor denominaremos fenomenologia da expressão.

De um ou de outro modo, ou de um e de outro modo entendida, quer vise a determinação da natureza de certa realidade expressa pelo género poético ou prosaico, quer a da essência da expressão prosaica ou poética da mesma realidade, de qualquer modo, a «história da literatura», terá se ser filologia e fenomenologia, no étimo significado destas palavras.

Como filologia, ou fenomenologia da expressão escrita, é que devemos abeirar-nos do estudo da «literatura» Antiga e, em particular, da «literatura» grega. E se, como filologia ou fenomenologia que também haja de ser «história», então que história seja em que o tempo exerce uma função que não se cifre apenas em aproximar ou distanciar os acontecimentos uns dos outros, na linear trajectória da temporalidade abstracta do acontecer.

De duas maneiras de contar a história - ou vertendo o passado no presente ou revertendo o presente no passado -, supõe-se a virtual contemporaneidade do historiador e do historiável; propõe-se o «memorialista» como modelo do historiador, e a «memória» como ideal da história. Mas assim como assim, o tempo histórico é imperfeito e imperfectivo: do que era não resulta o que é, e do ser que «foi» não provém ser que «seja». Não haverá outra maneira de contar a história?

Tanto importa advertirmo-nos da não efectividade do tempo que intervém na história vulgarmente contada, quanto urge reconhecer que o historiador procede, e talvez não possa deixar de proceder, por via de comparação do passado com o presente. Comparação não significa equiparação. Todavia, é pela equiparação dos tempos que passaram com os tempos que passam, que o tempo perde a efectividade que lhe é própria. Entenda-se por estas palavras, que, se a distância é relativa, o passado é absoluto. Há lugares mais ou menos afastados da nossa presença, mas não há senão um passado do nosso presente. As coisas afastam-se de nós sempre iguais a si mesmas. Passam por nós através do espaço, mas não através do tempo. Pelo contrário, o tempo passa por elas e por nós; e quando passa, altera-as e altera-nos. Tal é a efectividade do tempo: alteração, metamorfose, transfiguração.






O poder de alienar, de transfigurar, de metamorfosear, é virtude da poesia, não da história. Mas se alguém ousou comparar a história com a poesia, é porque a comparação era possível. E se era possível comparar, é porque algum termo de comparação existe. Assim, ao asseverar que a poesia é mais filosófica do que a história, afigura-se-nos que Aristóteles podia ter em vista uma verdade articulada nestes três momentos. O primeiro é que poesia e história podem dizer-se de vários modos; o segundo é que alguma coisa há de comum entre um dos modos como a poesia pode ser dita e um dos modos como a história pode ser contada; e o terceiro é que, comum a certa modalidade de recitação poética, e a certa modalidade de narração histórica é a expressão que denominaremos de filosófica. Eis porque se poderia entrever, da literatura antiga, a história que não desdenhasse de uma poesia que o tempo continuou escrevendo nas entrelinhas dos poemas que uma vez ficaram escritos.

Na figura desta poesia infusa e difusa da história, invocamos a presença da tradição. Mas a «tradição» também corre à sombra de vulgarizado equívoco; designadamente, o de se supor que os testemunhos dos Antigos podem ser entendidos pelos Modernos, sem qualquer mediação. Certo é, todavia, que as mensagens do passado nunca chegaram ao presente, senão pelo caminho de uma história pela qual o tempo passou. Admitindo, por exemplo, que a actual filologia, bem exercitada nos mais rigorosos métodos de crítica, tivesse conseguido restituir os «autógrafos» de Platão, também não há dúvida que os textos assim reconstituídos, seriam aqueles a que mais direito cabia de reivindicar a dignidade de «fontes» da tradição platónica. No entanto, perguntamos a quem quer que se autorize de intérprete, se poderá abstrair do platonismo que se propagou de Aristóteles a Proclo, de Proclo a Ficino, de Ficino a Schleiermacher, e de Schleiermacher a Heidegger, quando pretenda dizer-nos qual foi o verdadeiro pensamento do fundador da academia. Não, decerto. Pois ainda que a «letra» persista, sempre igual a si mesma, ao longo de um tempo alheio, extrínseco e indiferente, outro tempo, o tempo real, passou através do «espírito». Daí que em sua presente versão do passado, não seja a linguagem que usa, senão aquela que os séculos têm vindo enformando. Eis a poesia do tempo, e «poesia» na autêntica significação da palavra.

Duas seriam, pois, as fontes da tradição clássica, uma decorre das próprias páginas dos livros escritos em tempos que passaram; outra é a mesma poesia que o tempo que passa veio inscrevendo à margem ou nas entrelinhas do poema outrora escrito. E tanto tempo passou - alterando, metamorfoseando, transfigurando -, que ao abrirmos o livro da «literatura» antiga, por vezes já nem sabemos qual é o poema de ontem e a poesia de sempre. Sabemos que algo foi escrito pelos poetas de outrora, e que outr'algo o foi pelos poetas de toda a hora. Também sabemos que uns foram os intérpretes de certa realidade, e que outros são os intérpretes daquela interpretação; mas já não distinguimos bem os discretos momentos da poesia que enformou a história (in Origem da Poesia e da Mitologia e outros ensaios dispersos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000, pp. 253-255).

Templo de Atena



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