domingo, 11 de junho de 2023

Camões e a Fisionomia da Pátria

Da autoria de Leonardo Coimbra


Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça


Túmulo de D. Pedro


Túmulo de D. Inês de Castro

«(...) o que aparece como modelo político a partir de Dom Afonso IV, e com realizações cada vez mais nítidas, é uma doutrina política que vem directa de Roma, daquela Roma que podemos ainda ligar não à Idade do Filho mas à do Pai. Surge então essa doutrina contra a política republicana e democrática, digamos assim, do povo e das instituições portuguesas. O rei começa a ser diferente. Marco do princípio disso, podia ser antes, mas assinalo-o quando Dom Afonso IV manda matar Inês de Castro por uma razão de Estado. A razão de Estado torna-se nítida em Portugal com esse assassínio, com essa execução, porque se achava que o país estava em perigo e preferiu-se que o estado perdurasse a que perdurasse o amor de Dom Pedro e Dona Inês.

E se formos a ver, o que verificamos é que a partir logo do primeiro rei houve cada vez mais a influência do Direito Romano. Gente que partia de Portugal para frequentar universidades, por exemplo a Universidade de Bolonha, que ali tomava conhecimento do Direito Romano e ia substituindo todo o direito que tentava ser um Direito cristão por aquele que finalmente triunfou e fez com que as instituições políticas propriamente portuguesas fossem abatidas por uma receita vinda de fora. E a coisa foi avançando mesmo com aqueles reis que, muitas vezes, em Portugal são considerados os melhores, um Dom João I, um Dom João II, um Dom Manuel, até acabar no século XVIII, já nos seus finais, por aquilo a que se chama o absolutismo real, que depois foi abatido com as lutas liberais, mas que nunca saiu do ânimo dos dirigentes portugueses. Os liberais portugueses, no fundo, eram absolutistas, tratava-se de mandar, a liberdade era para eles, a de mandarem, a de não ser só um ou os outros a mandarem, mas também eles. Agora quanto à liberdade dos mandados, pouca atenção se prestou a isso. E com a proclamação da República passou-se o mesmo. De maneira que, com as devidas diferenças e com uma liberdade geral muito maior do que a que havia de facto, a tendência que tem proliferado em Portugal tem sido essa de mandar nos outros. O que explica certas coisas e torna a história desse ponto muito interessante.»

Agostinho da Silva (in «Vida Conversável», organização e prefácio de Henryk Siewierski, 1998).


«Os argonautas do Mistério são os sábios, os poetas e os santos. Debrucemo-nos com eles no arco da velha ponte e vejamos o mundo que passa.

O Universo passa, o tempo corre e nas suas águas precipitam-se as flores marginais, correm reflectidos os mundos e os sóis.

O Poeta ouve o murmúrio que transita, fixa o instante fugitivo, e como em chapa de aço candente as águas que recebe no peito são asas de névoa, ascensão e fulgor, caindo no Mar transcendente da Memória em perfeito e luminoso corpo de eternidade.

E assim, o Poeta eterniza o instante... e assim o Poeta ergue à Consciência os mais incoercíveis movimentos da alma, e assim o Poeta filtra no episódio a sua parte de eternidade, eleva sobre os indivíduos transitórios a fisionomia espiritual das Pátrias, da Humanidade e Deus.»

Leonardo Coimbra («Camões e a Fisionomia da Pátria»).


«Sob o aspecto religioso, é evidente que o que aparece em Portugal é uma gente completamente subordinada ao que o cristianismo se tornou depois da Contra-Reforma e que poderíamos talvez definir assim: um cristianismo completamente ocidentalizado, perdendo tudo quanto tinha de oriental, com mais um ponto extremamente curioso, que é este: a primeira transformação que o cristianismo sofre na Europa, ainda na Idade Média, é a de passar de um neoplatonismo de pensamento para um aristotelismo de pensamento, isto é, quando os cristãos tiveram de explicar a um grego o que era o cristianismo, fizeram-no em termos filosóficos para que ele o entendesse. Se o cristão não tivesse por objectivo converter ninguém, era escusado explicar, dizia o que era, no que acreditava e não tinha de dar mais nenhuma explicação. Mas como a sua ideia era também converter o pagão, converter o grego, ele tinha de explicar o cristianismo de maneira que o grego pudesse entender. Ora, das filosofias que havia à disposição, aquela que estava mais próxima do cristianismo era realmente o platonismo, mas já não na forma antiga de Platão, que não era muito conveniente para o cristianismo. Porque Platão teve duas épocas nítidas na sua vida, uma quando jovem, poeta, dramaturgo, em que andava à procura de temas para o teatro, que estava ensaiando e que de repente encontrou uma figura mais cómica e mais trágica ao mesmo tempo do que qualquer outra figura do teatro grego, no qual os poetas ou tinham de escolher as figuras trágicas como, por exemplo, Édipo, ou de inventar comédias. Mas ele encontrou uma figura grega viva, sua contemporânea, que era ao mesmo tempo fácil para a comédia e para a tragédia. Quando viu Sócrates meter a ridículo os sacerdotes, os generais ou os filósofos perante os meninos que se riam da figura que os outros faziam, ele tinha ali um assunto de comédia como nunca houve; e ao mesmo tempo as acusações e a morte de Sócrates deram-lhe um assunto de tragédia como, provavelmente, só depois a de Cristo deu a outros. Excluídas as diferenças, naturalmente, de que Cristo se apresentou sempre como enviado, um filho de Deus e Sócrates não ousou tanto, mas andou muito perto, porque quando tomava resoluções depois de ouvir o seu deus interior, ele estava muito perto do conceito cristão de ser o homem filho de Deus. De qualquer maneira, no platonismo, o mais interessante para Platão terminou quando fundou uma Academia. Quer dizer, Platão tinha recebido de Sócrates a lição suprema de que a filosofia não é para ensinar, mas sim para provocar, para fazer aos outros perguntas que os embarace e os leve, depois, pelo pensamento a desembaraçarem-se tanto quanto possível.


Quando Platão se pôs a ensinar na Academia acabou com isso, ele fundou na Academia todas as academias do mundo no que elas têm de pior, com alguma coisa útil que pudessem ter. Então muitos dos seus discípulos afastaram-se da primeira parte de Platão, porque não tinham o génio teatral dele, mas ao mesmo tempo afastavam-se também da segunda, porque não estavam para se meter no que era já uma Universidade, no que era já uma Academia com todos os seus defeitos e preferiam estar à parte em pequenos grupos ou, individualmente, entrarem naquilo que se chamou neoplatonismo.

Então a Igreja o que encontrou mais perto de Cristo, dos Evangelhos, para pregar ao pagão foi exactamente o neoplatonismo. Mas o platonismo, mesmo no neoplatonismo, é muito difícil de entrar na cabeça do homem vulgar, do homem comum cuja vida se não faz meditando nessas coisas metafísicas, mas no físico da vida. E, de facto, a Igreja estava em crise perante as populações, quando foi salva pela invasão muçulmana da Península. Paradoxalmente, o que salvou o cristianismo nessa altura foi os muçulmanos terem invadido a Espanha e trazido com eles Aristóteles, que tinha uma filosofia muito mais compreensível para o homem vulgar, ao passo que Platão a ideia que dava era a da filosofia do abstracto, do inexistente, do sonhado. Aristóteles dava a filosofia do concreto, eram as coisas que se passavam na Terra, era aquilo que toda a gente podia compreender e lhes dava até com a lógica um instrumento de trabalho extremamente simples: o silogismo foi a chave para abrir muita porta, que para outros estava fechada.

Por isso a Igreja passa do platonismo para o aristotelismo e é essa Igreja fortemente aristotélica que vem aparecer em Portugal, que por natureza não era aristotélico ou que era as duas coisas ao mesmo tempo. Aí talvez se pudesse dizer que o português – e é o exemplo de Camões – era um homem fadado para entender ao mesmo tempo as coisas do concreto e para poder levar uma vida de tal maneira que parecia que não podia atingir senão outra coisa além do concreto, do sensível, do facilmente apreensível pelos sentidos. De repente, esse homem alçava-se para outras coisas, pairava por outras regiões, como no começo, que parecia incompatível no mesmo indivíduo. Isto é, assim como Joaquim de Flora tinha talvez pensado que em Deus havia, simultaneamente, o tempo e a eternidade, o português achava que eram simultâneos e com a mesma importância, o mundo do abstracto, o mundo do divino, digamos, e o mundo do concreto, o mundo humano. E coisa curiosa, é isso exactamente que vamos encontrar na Ilha dos Amores de Camões. Quando Camões ali pinta, descreve o verdadeiro lugar que se descobre, a epopeia – continuo a achar – não canta o descobrimento do caminho marítimo para a Índia, aproveita a narrativa para dizer que o importante a descobrir não é o lugar de onde vem a pimenta e aonde se pode vender o veludo, que o ponto importante que os portugueses têm de descobrir é o tipo de vida que permita a um tempo mantê-los no abstracto e não descuidarem em nada o concreto, que aqui o português tem obrigação de ser duplo, não a obrigação de ser uno, e que talvez nessa duplicidade – veja-se como curiosamente a palavra duplicidade tomou o sentido pejorativo e nós achamos que aquele que tem duplicidade é o hipócrita, é um sujeito em que não se pode confiar, quando provavelmente duplicidade é a possibilidade de estar em dois terrenos ao mesmo tempo – é que podia estar um ideal para todo o homem.»

Agostinho da Silva (in «Vida Conversável», organização e prefácio de Henryk Siewierski, 1998).


«A tragédia grega é a luta do homem com a Fatalidade, isto é, das forças de vida contra todos os resíduos da evolução amalgamados e condensados num único bloco de Fatalidade.

Por baixo do mais fácil e gracioso politeísmo corre e flutua um pandemonismo informe, recebendo todas as precipitações residuais do alto.

Hesíodo e Ésquilo passeiam entre as sombras; Sócrates e Platão entre as frescas claridades duma manhã de Abril.

Mas Platão sabe que essas claridades podem ser as sombras duma outra luz e a alegoria da caverna vive a chamar a atenção do homem...

A Divina Comédia é o sonho de Jacob em plena vigília, é a onda iniciada num estremecimento da alma do Poeta e alargando e subindo, penetrando em todos os planos da vida espiritual.

Argonautas do Mistério que elevam a consciência a eternas visões da realidade.

Mas o mais insignificante poeta é ainda capaz de fixar qualquer fugitivo estremecimento e chamá-lo para a vida no próprio instante em que silenciosamente se ia fenecendo.»

Leonardo Coimbra («Camões e a Fisionomia da Pátria»).



Camões e a Fisionomia da Pátria

 

(...) A arte é um formidável fenómeno de osmose: a alma de artista ressoa de todos os estremecimentos da natureza e a natureza é pintada com as tintas da sua alma.

O Universo é convívio, por isso o artista retribui, e em excesso, todas as dádivas que recebeu.

O Mar, o mar dos portugueses entrou pelas órbitas do Poeta e saiu cantando as oitavas d’Os Lusíadas.

E tão íntimo foi o abraço, tão perfeita a transfusão que o marulho longínquo do oceano é esta própria fala:

 

Bramindo o negro mar, de longe brada

Como se desse em vão nalgum rochedo.

 

Portugal encapela-se em ondas, a sua vida comunica-se e de praia em praia é um abraço cingindo o planeta.

A vida do planeta é convivência no Infinito, a alma de Camões ligou, pelos fios invisíveis da Memória, o Mar e a Pátria à vida espiritual do Universo.

As oitavas d’Os Lusíadas, ondas do mar salgado, são eternos estremecimentos de Memória esculpindo no Infinito a fisionomia espiritual da Pátria.

O homem pertence a vários planos de vida espiritual: é cidadão da sua pátria, membro da sua religião, parcela consciente no Universo.

E cada plano é atravessado pelo esforço do homem-consciência para a conservação e para a Memória.

É por isso que em cada plano há névoa e sonho e o homem estremece duma nostalgia inquietante.

O homem é o desterrado de Soares do Reis...

Se o universo desde o sábio ao Poeta (e sem que prejulgue o problema Mal) é convívio, a consciência do homem há-de procurar as relações cósmicas na companhia das consciências mais próximas.

Eis porque o homem, consciência no Infinito, é cidadão na sua Pátria e une a sua voz à voz de seus irmãos para erguer em coro a própria voz da Pátria. E, como as almas só crescem pelo sacrifício dos desejos de separatividade que as forças da Morte nelas insinuaram, o amor da Pátria é a primeira e a mais concreta experiência religiosa das almas.

Mal vai, no entanto, às pátrias que, vítimas dum orgulhoso isolamento demoníaco, não prolongam o sacrifício das almas, não alargam os seus estremecimentos de amor até à vida cósmica e infinita.

Se Deus é a própria consciência social, para que esta não pese e adormeça as almas necessário é que cresça e se ilimite em consciência social do Universo.

O amor da Pátria será o amor dos homens e das coisas, encerrando-se em eterno e renovado amor de Deus.

A voz dos Portugueses, espessada, avolumando em ampliativos e excedentes abraços, será a epopeia da Pátria levando no seu canto o mar e a paisagem, os homens e o céu.


Curso do rio Mondego


As oitavas d’Os Lusíadas são as ondas do mar levando em espuma as bandeiras das batalhas, trapejando ao vendaval dos heroísmos, os sonhos da raça, o amor, Coimbra e o Mondego, os montes, campos e boninas...

A crítica mais ou menos boticária entreviu n’Os Lusíadas uma mistura do maravilhoso pagão e do maravilhoso cristão.

É tempo de acabar com tanta incompreensão, de dizer bem alto que uma obra de arte é um ser vivo, uma viva consciência salvando para a Memória o fluxo que transita. Jamais será a mistura de mortes e quimeras.

Há n’Os Lusíadas, como em toda a labareda, uma parte incombustível que a chama não incendeia e tomba em inerte poeira de cinzas.

Incombustível, quando o coração do Poeta não arde em tão alto fogo devorador que tudo queima.

É a erudição do Poeta que fornece o alimento à chama, e, se o fogo do pensamento é génio, tudo arde em vivo lume de beleza e eternidade.

Por vezes, sim, por vezes o calor do pensamento não basta a reiqueimar essa erudição, e então na fluidez das oitavas boiam estátuas mutiladas de deuses mortos e ausentes.

Mas esse é o fumo que faz toda a labareda humana, é o sinal de origem que, marcando a imperfeição do homem, sublinha a divindade do Poeta.

O pensamento vulgar, não subindo acima das mais próximas realidades, ignora a natureza e o valor do simbolismo, chegando a supor que os símbolos poéticos são artifícios decorativos com que o Poeta procura deleitar-nos a sensibilidade.

Daí a ideia dum maravilhoso que, como as decorações dos arraiais minhotos, passa de poeta em poeta.

Se conhecer é relacionar, é sempre uma atenuada ou viva analogia a alma do próprio conhecimento, que da ciência à arte é sempre, embora diferentemente, um simbolismo.

O simbolismo pagão é a grande concepção estética da Natureza e da Vida. As contradições entre o homem e a Natureza resumem-se ainda às relações de silêncio e convívio, que o homem encontra e harmoniza na quase tangibilidade dos deuses mal escondidos ainda no seio duma Natureza amiga.

O murmúrio da floresta é quase o sopro, repousado e possante, duma respiração imensa: a tremulina de luz, que percorre o ribeiro quando um ruído se ergue do estremecimento do canavial, é o próprio corpo de Frescura a caminhar; o bulício das selvas, multiplicando e fecundando a vida, é a própria Vida espalhada e vagabunda juntando-se para crescer; o silêncio pontiluzente, meditativo e severo, da noite estrelada é a própria serenidade da distância a olhar: sátiros, ninfas, hamadríadas, nereidas, faunos e deuses passeiam por entre os homens...


As Nereidas, por Gaston Bussière (1902).


Fauno

O mundo é a convivência ingénua, mas já os dragões e as serpentes de novo assustam e repelem a sensibilidade do homem.

Ele terá de reencontrar a companhia adentro de si mesmo...

Se o corpo de Vénus é feito de espuma do mar, a Virgem Maria é a mais alta e translúcida espuma da Alma.

Um paganismo simples e gracioso aprendeu na vida universal as mesmas forças, tendências e elementares vontades, que trabalham silenciosamente nas profundezas do ser humano; mas já as lutas titânicas revelam na Natureza vontades inimigas, que nos assediam e oprimem.

Um titanismo vitorioso, coberto de glória e feridas, pode voltar a ressentir a beleza ingénua, a inocência e o bem; na forma da aragem que embala as florinhas, na frescura humilde do arroio, na sombra acolhedora da árvore, no sonho que trespassa a grande voz dos elementos.

Eis porque não há maravilhoso nem misturas de maravilhoso, há sim uma voz humana que é contemporaneamente estremecimento da alma e do ar, que fulgura, no éter interior e no éter envolvente, a mesma luminosa geometria. N’Os Lusíadas há alegria campesina, boninas, mas há também águas que são já lágrimas de amor saudoso, há montes e ervinhas que andam a aprender no peito de Inês.

E a paisagem de Coimbra ainda hoje vive a repetir essas lições; na Quinta das Lágrimas ainda hoje da fonte correm sem descanso, ressoando em eco, os versos desta oitava:

 

As filhas do Mondego a morte escura

Longo tempo chorando memoraram;

E por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram:

O nome lhe puseram, que inda dura,

Dos amores de Inês, que ali passaram

Vede que fresca fonte rega as flores

Que lágrimas são a água e o nome amores.

 

A natureza não existe fora da convivência do homem. Ora simples, silenciosa e profunda, duma inocente religiosidade, ora destroçada e perdida se a não socorre a memória.

Fonte que é o simples murmúrio da gratidão das sedes, leito de frescura da ninfa adormecida, translúcida neblina das rendas que a vestem; fonte que discorre em lágrimas as saudades dum amor distante...

É esta Natureza que o Poeta tem de conquistar para a alma, é esta Natureza que a Pátria tem de desvendar para o mundo.

Viajar é compreender: por ignotos rumos procurar e levar companhia aos seres e às coisas da distância, alargar, dilatar a alma para além dos horizontes, ampliando o convívio, contactando por maior superfície a grande zona do Mistério.




Ao partir para a viagem, acorrem todas as vozes da tranquilidade doméstica, demovendo e comovendo, tentando prender o homem à firmeza das ligações criadas, temendo a deslealdade e o esquecimento.

Há vozes de egoísmo e de preguiça, mas há também vozes proféticas que acusam a nossa vontade pecaminosa de não ir em busca de novas amizades, mas de ambições e maiores egoísmos.

Uma noite, era eu ainda colegial, senti, olhando da sala de estudo o côncavo firmamento estrelado, a atracção dum astro distante, e a minha alma infantil partiu subitamente ao chamamento da distância; de repente um frio de isolamento, de abandono, me fez regressar instantaneamente ao calor e ao abrigo dos homens, que, embora pouco carinhoso, me falava, era meu, era convívio, conhecimento, mútuo amparo.

Jamais se apagou da minha memória essa sensação única, que hoje suponho o primeiro e mais perfeito contacto do meu ser com o Mistério.

Também, ao partir, o Velho do Restelo virá... E à despedida, há-de dizer egoísmos, mas há-de também prevenir os egoísmos e as cobiças para que não aumentem com o tamanho dos mundos que lhes vão ser dados.

E o Velho sabe que a Viagem, a Epopeia, é uma obra prometaica, de «fogo de altos desejos que a movera».

O homem Prometeu é o homem dando o Infinito aos seus desejos, partindo para além dos deuses familiares, correndo o risco de ficar só e às escuras no Espaço sem fim, onde só um novo Deus de infinito amor poderá ser companhia.

Esse homem Prometeu, perdido e vagabundo, encontrou a mão de Jesus reconduzindo-o a Deus; mas quantos ainda hoje passeiam num Infinito mudo a desolada estátua de sua solidão e tristeza?

A Epopeia vai fazer-se: os Portugueses partem ligando os mundos, e, ao dobrar da África, o Velho do Restelo é o Prometeu português, o Adamastor petrificado, prevenindo de novo as almas das duras consequências da audácia, das dores companheiras de toda a criação.

O Velho desejara que o fogo dos altos desejos prometaicos não tivera ardido, e profetizara com uma voz tão sábia e prevenida que bem parece ser a própria voz dum doloroso saber de experiências.

O Velho acompanha a frota e, de novo, maior, imenso e tormentoso, quer vedar o Mistério, conter as forças de bem e de mal que os navegadores estão prestes a libertar.

Profetiza a ameaça, mas, quando interrogado em palavras lusíadas, conta aos Portugueses, ao mar e às nuvens a tragédia esquiliana da sua aventura.

O irmão Prometeu roubara o fogo aos deuses, ele quisera furtar-lhes o amor.

A luz prometaica iluminara os mundos, mas o Espaço regelado não fora comovido por essa fria luz da inteligência: a candeia cristã vai purificar e aquecer e será o Amor a Grande Presença Universal, dadivosa e inesgotável.

Eis porque o Prometeu português tem um Cáucaso – é o término do mundo conhecido, aprisionado em contacto com as primeiras ondas do mundo misterioso!


Tétis mostra a Vasco da Gama a Máquina do Mundo. Ver aqui


Eis porque o Adamastor tem um abutre – os próprios braços do amor, regaço ondulado de Tétis, fazendo estremecer infinitamente a bruteza penhascosa do seu corpo.

 

Converte-se-me a carne em terra dura,

Em penedos os ossos se fizeram;

Estes membros que vês, e esta figura

Por estas longas águas se estenderam:

Enfim, minha gravíssima estatura

Neste remoto cabo converteram

Os deuses; e por mais dobradas mágoas,

Me anda Tétis cercando destas águas.

 

O seu corpo é beijado pelas mil bocas do amor que o devora e, abraçado à névoa do corpo amado, sobe liberto o seu desejo, penetrando em lágrimas as funduras oceânicas em que se abisma.

E chora, chove, desfaz-se a nuvem negra e de novo o Sol reaquece mais desejos.

Alma sedenta da Pátria, inextinguível fome de imortalidade, com o amor cravado da Pátria traçada a fogo no próprio coração do Infinito!

E lá vai Vasco da Gama num Mar, que não é do planeta, levando a raça numa Viagem sem termo a ouvir e libertar adamastores, correndo num pacífico oceano de Memória a sua eterna aventura religiosa.

E, cantando com o Poeta, todos nós somos já espectros duma outra vida, formas duma luz transcendente penetrando o planeta dos estremecimentos do Infinito.

É a grande Viagem: o Gama ao leme, o Poeta fazendo do seu canto o próprio oceano em que vogamos, e nós, reconciliados com ele, em êxtase cantando a beleza profunda e eterna das almas...

Faça cada Português as suas pazes com Camões e, de novo, no Infinito, radiosa e feliz, a Pátria há-de sorrir...

(In Leonardo Coimbra, Dispersos, I, Poesia Portuguesa, Editorial Verbo, Porto, 1984, pp. 213-219).



Vasco da Gama chega à Índia.

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