sábado, 17 de junho de 2023

O Galaaz português

Escrito por Franco Nogueira


«A própria guerra de Castela estava sendo a apoteose de Leonor Teles. Ela, ela só, provocando e dirimindo contendas entre príncipes! Ela, obrigando o poderoso rei de Castela a descer a Portugal! Ela, vendo-o caminhar contra Lisboa abandonada, e tornar-se o instrumento da sua desforra sobre essa cidade que a abocanhara! A situação das coisas enchia-se de felicidade carinhosa. O desespero de não poder amar esquecia-o, gozando as delícias da vaidade. Por isso, na situação turvamente luminosa da sua alma, sorria como sereia para Nun’Álvares, que baixava os olhos, vergonhoso e mesurado, depois de ter olhado firme, sem uma contracção na face, para o desfilar terrível dos esquadrões castelhanos, a caminho de Lisboa.

Sedutoramente, a rainha, pondo-lhe a mão, delgada e nervosa, sobre o ombro, disse-lhe que queria armá-lo escudeiro. Nun’Álvares então estremeceu, lembrando-se de Galaaz. Foi com os lábios frios por uma visão de futuros indeterminados que beijou contritamente a mão de Leonor Teles.

Também ao bastardo de Lançarote do Lago aparecera a dama, para o armar cavaleiro. Também Galaaz fora à abadia, e a abadessa chorava de prazer no meio das suas quatro aias. Os vaticínios da sua vida predestinada iam-se cumprindo assim, pontualmente. Por isso estremecera, quando a rainha lhe disse querer armá-lo por suas próprias mãos, como a abadessa da história, obrigando Lançarote a armar Galaaz. E interrogado pelo pai, o bastardo respondera:

– Senhor, se vos aprouvesse, bem o queria ser, pois não há cousa no mundo que eu tanto deseje como honra de Cavalaria...

– Filho – disse Lançarote (como ele tantas vezes ouvira dizer ao prior, seu pai) –, estranhamente vos fez Deus formosa criatura!

E Nun’Álvares, erguendo a cabeça, a sorrir, também respondia:

– Se Deus me fizer formoso, dar-me-á bondade, prazendo-lhe. De outro modo, valeria pouco. Mas Ele quererá que eu seja tão bom, e cousa que semelhe à minha linguagem e àqueles de onde eu venho. Pus a minha esperança em Nosso Senhor...

Logo trabalhou a rainha de achar arnês que servisse a Nun’Álvares, tão criança era ainda, e pequeno de estatura como sempre ficou. Alguém lembrou então que havia o arnês do Mestre de Avis, quase da mesma idade, e pouco antes armado cavaleiro. A rainha sorria, encantada, por estes brinquedos... Entretanto os castelhanos saqueavam os subúrbios de Lisboa. Foi-se pedir o arnês ao Mestre de Avis, irmão de el-rei, e veio. Vestiram-no a Nun’Álvares. Servia-lhe. Não parece fatídica esta investidura?

Como Galaaz, Nun’Álvares não pôde sofrer de chorar, quando banhada em água benta a espada, lha cingiram ao cinto, calçando-lhe as esporas. Pôs-se então de joelhos, colocou-lhe a rainha o capacete na cabeça, e desembainhando-lhe a espada, feitas as perguntas rituais, bateu-lhe com ela os três golpes sagrados no elmo e no ombro.

– Deus vos faça bom cavaleiro!

Levantou-se armado. Era outro homem. Descera sobre ele a iniciação mística, sagrando-o. Não havia de falhar a sua sina!».

Oliveira Martins («A Vida de Nun’Álvares»). 

«Sob calma aparente, Nun'Álvares descobre rasgos de emotividade primária, frenesim de acção e luta, uma pujança expressa em destemor, não sofreados repentes e rapidez de estratégia, o que tudo leva a inseri-lo também no tipo caracterológico denominado colérico – grupo dos condutores (“meneurs”), pelo poder da simpatia, feita de misticismo e desembaraço do que foi um verdadeiro condestável. A vivência religiosa de igual modo intensa e a bondade da sua índole, refrearam-lhe contudo, e com o tempo, os impulsos, acentuando aspectos secundários do seu carácter. O “colérico fiel”, acabou por vencer o colérico lutador nesse extraordinário “guerreiro e monge”».

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).

 

«Agente principal, apóstolo fervente, braço denodadamente forte, espírito quase profético da revolução, Nun’Álvares, porém, era a sua vítima gloriosa. Neste momento da paz, começa para ele uma outra vida. Símbolo superior de toda a realidade, principia a morrer no instante em que vê realizado o plano heróico da sua existência. A vitória é para ele o fim. Vendo de pé, real e verdadeiro, em forma e em essência, o seu ideal da independência alcançado, sente a sua missão terminada, a sua existência vazia, o Céu a chamá-lo: outras ambições, outras esperanças, outros ideais... A antiga sociedade aristocrática, de onde procedia, já desde a infância lhe aparecia transformada numa nuvem poética, embalsamada pelos aromas inebriantes do nardo místico da Cavalaria. Não tinha já realidade verdadeira para ele que, na santidade ingénita da sua alma, repelia a desordem dos costumes e das ideias fidalgas, cuja decomposição vira em criança na Corte de el'rei D. Fernando. Mas a sociedade nova de legistas, esse culto, muitas vezes farisaico, dado a uns textos desenterrados do passado; essa quase endeusação de um homem elevado às proporções de símbolo; esse processo de compreensão racional das coisas, alicerce profundo, raiz primária da sociedade nova, que abandonava a vida espontânea, natural ou mística, pela vida prática da observação e do estudo, desentranhando de si as leis, sem correr ao milagre: tudo isso, e mais a corte dos legistas, enfronhados em textos e livros, meticulosos, rabugentos, pedantes e antipáticos para as naturezas dos iluminados e dos heróis: fazia-o cismar longas horas na singularidade das coisas humanas... A guerra estava acabada, mas o vencedor não era ele; apesar de ter vencido nos Atoleiros, pela primeira vez, em Aljubarrota, em Valverde – em toda a parte, protegido sempre por Deus que pusera a peito cumprir o vaticínio lavrado quando nascera.

Não compreendia a sociedade nova. O rei que sonhara, quando, primeiro, nos paços de São Martinho lhe viera a ideia de levantar um trono ao Mestre: o rei da sua ideia, não era aquele. Se o via e lhe falava, abraçando-se e recordando os transes cruéis dos dez últimos anos, o homem parecia-lhe o mesmo, e o seu amor por ele renascia cada vez mais forte. Mas, quando, longe, se demorava a revolver na imaginação o curso das coisas, reconhecia que as suas esperanças ambiciosas de um reinado se sumiam nos ares com o dissipar do clamor das batalhas, perdidos pelos desvios recôncavos das serras. A açucena branca da sua primitiva ingenuidade, colorindo-se de vermelho no fragor da guerra, subira tão alto na haste, que transpusera as nuvens; e agora, cada vez mais bela e perfumada, atraía-o para outros mundos, etéreos – o mundo que está para além da campa, ou para aquém, no quase túmulo de um claustro.

A Cavalaria da sua infância transformara-se em Devoção, no período heróico da sua vida. Agora que a guerra acabara, sem compreender nem amar a sociedade que saía dela, a aspiração da sua alma era a Morte; mas não o aniquilamento. Era a morte cristã, ressurreição num empíreo de bondade e virtude absolutas; negação do mundo terrestre, em nome do mundo ideal concebido pela imaginação santa.

Ruínas da nave da Igreja do Carmo de Lisboa. Ver aqui

Este estado mental do Condestável, que principiou a definir-se no dia em que, depois da viagem tormentosa de dez anos, a nau da sua vida deu fundo no Porto, é também, ou antes, ia ser o estado da consciência colectiva em Portugal. Ainda nisto Nun’Álvares aparece como um precursor. Pois quando a nação, reconstituída pela crise de onde agora a vemos sair, se lança à viagem dupla da constituição do imperialismo político e da descoberta dos mundos ignotos; quando se lança no mar ardente da fé, e quando chega ao porto do destino na sua viagem épica: também cai de bruços no chão, aclamando a Morte, e esperando a fortuna do passamento. Felizes daqueles a quem foi dado realizar os seus desejos épicos! Lágrimas abençoadas as dos que, vendo desfazer-se em fumo a imagem desses desejos, tinham em si a capacidade de transformar o fumo em ambições novas, e os desenganos em esperanças douradas!»

Oliveira Martins («A Vida de Nun’Álvares»).




O Galaaz português


Perante a revolução e durante esta, revelou o Mestre de Aviz uma personalidade mais conduzida pelos acontecimentos do que impulsionadora: hesitante, cauteloso, e sempre prudente, excessivamente prudente. Encorajado por Álvaro Pais, falou com firmeza à rainha e matou o conde Andeiro; mas logo, de joelhos, foi implorar o perdão de Leonor Teles [1]. Odiava a viúva de Fernando I, e assassinara o seu favorito; mas considerou a hipótese de se lhe ligar pelo casamento; e chegou a mandar emissários para lho proporem [2]. Nos momentos cruciais da revolução, não tomava iniciativas; e quanto às que outros tivessem, ou aconselhassem, mantinha-se reservado, cauto; e tergiversava antes de ter a certeza do êxito. Não era decerto, na coragem pessoal, um pusilânime: mas nas fases iniciais da revolta não possuía visão a frisar com os acontecimentos: e não descobria o partido político e nacional que podia tirar daqueles. As suas dúvidas tinham de ser destruídas por Álvaro Pais; o seu ânimo tinha de ser retemperado por Nuno Álvares; e o seu caminho tinha de ser iluminado pela sabedoria de João das Regras. Era personalidade sem amplitude: desconhecia a audácia, ignorava a temeridade. Mais tarde, o homem engrandeceu-se com a função: teve a fortuna de casar com uma princesa britânica, Filipa de Lencastre, de excelso espírito e de envergadura de carácter; o trato dos negócios da guerra e do Estado amadurece-o; e a mística nacional dos seus conselheiros e do seu povo acabou por impregná-lo, e por o transformar num alto servidor da nação. Foi um dos bons reis.




Nuno Álvares, logo nomeado condestável, era de outra matriz humana [3]. Impetuoso, ardente, místico, Nuno Álvares é o cavaleiro medieval. Desde novo, deixou-se absorver pelas histórias de Galaaz e da Távola Redonda, e sonhava para si demandas do Santo Sepulcro e do Santo Graal. Embrenhava-se nas artes militares; considerava o rei e a coroa como entidades sacrossantas; mas entendia que aquele e esta deviam estar ao serviço da numerosa hoste que era o povo. Personificava a ousadia e o destemor; e aos vinte e dois anos, julgando ferida a sua dignidade de oficial português, afrontou João de Castela, desconsiderando-o em público, com serenidade e aparato. Ficava atónito perante as tergiversações do Mestre; mas não desanimava; e transmitia ao seu ídolo a coragem de altas empresas. Para o Condestável antepunha-se a tudo o interesse do povo português, de cujos instintos profundos se sentia irmanado; e defendê-lo de Castela constituía a sua missão suprema. Como guerreiro, era chefe; e os demais, mesmo os velhos e experientes, aceitavam-no naturalmente nessa qualidade. Dos que o acompanhavam, se eram maus, fazia-os bons; e, se eram bons, fazia-os melhores. Sempre se houve com heroísmo e honra: no campo da luta, como capitão; em negociações políticas, como plenipotenciário; em expedições de África, como soldado de um reino em ascensão. Era afável de palavras, e acolhia comedidamente quantos da sua hoste dele se abeirassem, tanto capitães como homens de armas; mas no arraial, em curso de batalha, impunha-se e era temido como Senhor; e tornava-se bravo se alguém desobedecia ao regimento que lhe fora dado. Haviam-lhe medo os pequenos, e receio de o anojar os fidalgos e cavaleiros; mas depois da luta, por encobertos modos e graciosos gestos, procurava maneira de emendar os rigores de que tivesse usado. Não tinha cobiça, e das presas de guerra nenhuma guardava para si; e regia com muita justiça o que lhe estava confiado, resolvendo por “direita balança” os pleitos que lhe eram submetidos. Fazia esmolas e praticava caridade, especialmente em favor de envergonhados, viúvas e orfãos; e, quando morreu a condessa sua mulher, não voltou a casar-se e entrou em mística religiosa. Depois de assinadas as pazes com Castela, professou; e foi Frei Nuno de Santa Maria. Cumprira a sua missão: perdoou as dívidas, distribuiu as riquezas, repartiu o património de terras e vilas. Aniquilou-se. Vestiu o seu hábito, que considerava a sua mortalha. Recebeu um dia a visita do embaixador de Castela, e na sua cela acolheu o enviado. Perguntou-lhe o embaixador: “Não despireis jamais essa mortalha?”. Respondeu Frei Nuno: “Sim, se el-rei de Castela outra vez mover guerra contra Portugal”. O embaixador, assombrado e de cabeça pendida, saiu da cela. Perante a alusão aos perigos do reino, ressuscitava o capitão indomável; e quando soube, já adiantado em anos, que praças portuguesas em África estavam em algum risco, do seu convento do Carmo atirou ao Rossio uma lança, exclamando: “Em África a poderei cravar, se for preciso”. No cabo da sua existência, pouco saía. Envolto na estamenha em farrapos, com uma gorra desbotada a cobrir-lhe a cabeça, inclinado para a frente, apoiado a um bordão, passos arrastados, rosário nas mãos, ia por ruas e vielas e bairros escusos fazendo esmolas e amparando aflitos e ansiosos. Em 1 de Novembro de 1431 – quarenta e seis anos após Aljubarrota – morreu Frei Nuno. Foi profunda a emoção do reino, e sofreu-a fortemente João I. Este tinha a certeza íntima de que devia a Nuno Álvares o trono; e o povo, no seu instinto colectivo, sentia que desaparecera o arauto da honra, do interesse e da independência da nação. Foram-lhe feitas exéquias régias. João I assistiu: mandou dispor ao seu lado uma cadeira vazia: a sua consciência nacional, amadurecida pelo governo, dizia-lhe que o Condestável fora um dos raros portugueses sem os quais o reino não seria o que era.

(In Franco Nogueira, As Crises e os Homens, Livraria Civilização Editora, 2.ª edição, 2000, pp. 61-63).

Estandarte de Nun'Álvares Pereira


[1] Ao que parece, João I teria sido aconselhado nesse sentido pelo frio Álvaro Pais.

[2] Idem.

[3] Com uma retórica literária a que por vezes sucumbe, Oliveira Martins define assim Nuno Álvares: Era uma açucena na alma, e um leão na bravura e na generosidade. História de Portugal, 147. Com traços de novela histórica, temos do mesmo escritor a conhecida Vida de Nun’Álvares.



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