Conferência lida por Francisco da Cunha Leão em 7 de Julho de 1961
«Toda a concepção dualista, maniqueísta, vê na vida dos corpos a infelicidade; e na morte o bem último, o resgate da falta de se ter nascido, a reintegração no Uno e na luminosa indistinção. Aqui, por uma ascensão gradual, pela morte progressiva e voluntária que a ascese representa (aspecto negativo da iluminação), podemos aceder à Luz. Mas a finalidade do espírito, o seu objectivo, é também o fim da vida limitada, obscurecida pela multiplicidade imediata. Eros, nosso Desejo supremo, só exalta os nossos desejos para os sacrificar. A realização do Amor nega todo o amor terrestre. E a sua Felicidade nega toda a felicidade terrena. Considerado sob o ponto de vista da vida, um tal Amor só poderia ser uma infelicidade total.
Tal é o fundamento do paganismo oriental-ocidental sobre o qual o nosso mito [de Tristão e Isolda] se destaca.
Mas, justamente,
porque é que ele se “destaca”? Que ameaça, que interdição, obrigou a doutrina a
velar-se, a confessar-se apenas por símbolos enganadores – a seduzir-nos apenas
através do encanto e da secreta encantação dum mito?
(...) Prólogo do Evangelho de São João:
“NO PRINCÍPIO ERA O VERBO E O VERBO ESTAVA JUNTO DE DEUS E O VERBO ERA DEUS (...) NELE ESTAVA A VIDA E A VIDA ERA A LUZ DOS HOMENS. A LUZ BRILHOU NAS TREVAS E AS TREVAS NÃO A RECEBERAM” (1: 1-5).
Tratar-se-á ainda do dualismo eterno, sem remissão, da irrevogável hostilidade da Noite terrestre e do Dia transcendente? Não, porque eis o seguimento da passagem:
"E O VERBO SE FEZ CARNE E HABITOU ENTRE NÓS; E VIMOS A SUA GLÓRIA, UMA GLÓRIA COMO A DO FILHO ÚNICO VINDO DO PAI, CHEIA DE GRAÇA E DE VERDADE". (1: 14-15).
A Incarnação da
Palavra no mundo – da Luz nas Trevas – eis o acontecimento inaudito que nos
liberta da infelicidade de viver. Tal é o centro de todo o cristianismo e o fulcro
do amor cristão que as Escrituras chamam agapè.
Acontecimento sem
precedente e “naturalmente” inacreditável. Porque o facto da Incarnação é a
negação radical de toda a espécie de religião.
Ele é o supremo escândalo, não só para a nossa razão, que não admite essa
indispensável confusão do infinito e do finito, mas sobretudo para o espírito
religioso natural.
Todas as religiões
conhecidas tendem a sublimar e levam
a condenar a sua vida “finita”. O deus Eros exalta e sublima os nossos desejos,
reunindo-os num Desejo único que conduz à sua negação. O objectivo final dessa
dialéctica é a não-vida, a morte do corpo. Sendo a Noite e o Dia incompatíveis,
o homem criado que pertence à Noite só pode encontrar a salvação deixando de
existir, “perdendo-se” no seio da divindade. Mas o cristianismo, pelo seu dogma
da incarnação de Cristo em Jesus, altera completamente essa dialéctica.
Em vez de a morte
ser o termo último, ela passa a ser a
condição primeira. Aquilo a que o Evangelho chama “morrer para si próprio” é o começo duma vida nova, a partir de agora.
Não é a fuga do espírito para fora do mundo mas o seu regresso em força ao seio
do mundo! Uma recriação imediata. Uma reafirmação da vida, não certamente da
vida antiga ou da vida ideal, mas da vida presente que o Espírito recupera.
Deus – o Deus
verdadeiro – fez-se homem e verdadeiro homem. Na pessoa de Jesus Cristo, as
trevas “receberam” verdadeiramente a luz. E todo o homem nascido de mulher que creia nisso, renasce do espírito a
partir de agora: morto para si mesmo e morto para o mundo na medida em que o eu
e o mundo são pecadores, mas restituído a si mesmo e ao mundo na medida em que
o Espírito quer salvá-los.
A partir de agora, o amor deixa de ser fuga e
perpétua recusa do acto. Ele começa além da morte mas volta-se para a vida. E
essa conversão faz aparecer o próximo.
Eros |
Para Eros, a
criatura não era mais que um pretexto ilusório, uma ocasião de exaltação; e era
preciso desembaraçar-se dela em seguida, porque o objectivo era arder de
paixão, cada vez mais, até morrer! O ser particular não era mais que um defeito
e obscurecimento do Ser único. Como amá-lo verdadeiramente, tal qual era?
Estando a salvação no além, o homem religioso desviava-se das criaturas ignoradas
pelo seu deus. Mas o Deus dos cristãos – e só ele, entre todos os deuses que se
conhecem – não se desviou, pelo contrário: “ELE AMOU-NOS PRIMEIRO” na nossa
forma e nas nossas limitações. Foi a ponto de revesti-las. Revestindo a
condição do homem pecador e separado, mas sem pecar e sem se dividir, o Amor de
Deus abriu-nos uma via radicalmente nova: a da santificação. O contrário da sublimação que não era mais que fuga
ilusória para lá do concreto da vida.
Amar torna-se então uma acção positiva, uma acção de transformação. Eros procurava a transfiguração no infinito. O amor cristão é obediência no presente. Porque amar a Deus é obedecer a Deus que nos ordena que nos amemos uns ao outros.
Que significa: Amai os vossos inimigos? É o abandono do egoísmo, do eu de desejo e angústia; é uma morte do homem isolado mas é também o nascimento do próximo. Àqueles que lhe perguntam ironicamente: “Quem é o meu próximo?” Jesus responde: “é o homem que tem necessidade de vós”.
Todas as relações humanas, a partir desse instante, mudam de sentido.
O novo símbolo do Amor
já não é a paixão infinita da alma em
demanda da luz, mas é a união de
Cristo e da Igreja.
O próprio amor humano se encontra assim transformado. Enquanto as místicas pagãs o sublimavam até fazer dele um deus ao mesmo tempo que o votavam à morte, o cristianismo recoloca-o na sua ordem e aí o santifica pelo casamento.
Tal amor, sendo concebido à imagem do amor de Cristo pela sua Igreja (Ef. 5: 25), pode ser verdadeiramente recíproco. Porque ele ama o outro tal como é – em vez de amar a ideia do amor ou a sua mortal e deliciosa queimadura. (“Mais vale casar do que abrasar”, escreve São Paulo aos Coríntios). Além disso, é um amor feliz – apesar dos entraves do pecado – pois que conhece a partir desta vida, na obediência, a plenitude da sua ordem.
O dualismo do Dia e da Noite, levado ao seu extremo lógico conduzia, do ponto de vista da vida, à infelicidade absoluta, que é a morte. O cristianismo só é uma infelicidade para o homem separado de Deus, mas uma infelicidade criadora e bem-aventurada a partir desta vida para o crente que se “apodera da salvação”.»
Denis de Rougement («O Amor e o Ocidente»).
«A raiz da paixão mortífera e insanável, o estímulo nascente da infelicidade conjugal, a impossibilidade da realização do amor terreno, são traços que determinam, no essencial, o mito europeu de Tristão e Isolda – o mais oposto de todos ao amor e saudade trágicos que ligam Pedro a Inês.
(...) O mito de Pedro e Inês é, imediatamente, da sobrevivência do amor, mas, na substância, da saudade, porque nela reside a causa superadora da morte e a convivência possível do género trágico com o sentimento redentor cristão.»
Afonso Botelho («Saudade, Regresso à Origem»).
«Nenhuma
história nacional ou de povo, equivale, em movimento, à portuguesa.
Ocorre falar em
paralelo com a história do povo hebraico.
Muito diverso é o
caso e convém discernir.
Os judeus
expandiram-se, forçados pela destruição da sua pátria, votada ao extermínio.
Perseguidos, espalharam-se pelo mundo, tornaram-se maleáveis, suspicazes, preferindo a riqueza móvel à imobiliária, que lhes tolheria a fácil evasão – facto que nunca deixaram de prever. Conseguiram formar uma nação sem território, mantida pela raça – mais pela raça que pela religião. Esse racismo, que é o mais ferrenho de todos os povos, permitiu-lhes reaver, ao cabo de dezanove séculos, o solo pátrio – quase já sem religião nem língua comum.
O caso português é de contínuo trânsito geográfico através dos mares, de ocupação de ilhas e finisterras, de perfurações continentais, à maneira de cruzeiros marítimos, – em superação vigorosa dos obstáculos da natureza, em extravasa dos limites corpóreos da pátria.
O aventurismo
antropológico dos Cabos do Mundo – nesta única finisterra que logrou
organizar-se em Estado com pertinaz sequência – ganhou carácter ecuménico.
A adesão às novas terras foi natural,
voluptuosa, mesmo de amor. Se éramos portadores do incomparável ideal ecuménico
do Cristianismo, essa mensagem universal e humana sem par dispôs no caso
português, de antropológica matéria-prima que muito concretamente e através de
uma cobiça do mundo irrefreável, do amor ao exótico, da capacidade de afirmação
heróica, de simpatia coadjuvada intensamente pelos elementos sensuais e
sexuais, conseguiu integrar, muito
concretamente, como dissemos, outros povos, outras culturas, e transmitir
uma psique, uma atitude humana e
étnica sobrepostas a corografias e raças, em triunfo espantoso do
verdadeiramente humano, bastante forte e seguro de si, para, na generalidade da
acção, se desprender das próprias matrizes.
Para se desprender, excepto pela Saudade.
Caso que na história
do mundo em grande escala é ímpar, e bem explica a reacção única dos lusíadas
de Angola. Esses colonos e agricultores do Congo, os poucos funcionários
administrativos brutalmente surpreendidos por assaltos maciços de bandoleiros negros, vindos ou animados de fora, intencionalmente exercitados, no ódio racial e na prática imediata das mais execráveis barbaridades, em que a
mutilação dos corpos antecede o assassínio, a sua reacção instintiva não foi fugir mas defenderem-se e... ficar.
Nas dispersas fazendas, nas pequenas póvoas
do mato, ainda que desamparados militarmente, e antes de qualquer decisão
nacional (ainda que pronta), a sua tenção nunca foi ceder.
Indiferentes ao
número de fanatizados atacantes, surdos a uma apregoada corrente da história de
desistência ocidental, enjeitando os numerosos exemplos de abdicação, eles,
verdadeiros portugueses universais por instinto e sentimento, responderam à intimidação do choque emocional terrorista, com a réplica violenta de uma
indómita energia. Refluindo para se agrupar, essa gente não permitiu que a
maquinação internacional em curso conseguisse desbaratar a estrutura da ocupação portuguesa, que aguentou, sem ceder qualquer vila ou cidade propícia à
sede de um governo separatista dentro do território, até que os reforços militares os foram socorrer.
Estranha epopeia
em Angola se tem escrito com corpos e almas. Nela colaboram, como há três
séculos no Brasil, os diversos elementos étnicos numa frente comum. Mais uma vez os portugueses fazem história, quando a ela lhes não convém ceder.
Nova fase de
reflexão e aventura conseguimos iniciar.
Dilatar foi o verbo empregado por Camões,
para significar a expansão portuguesa, que é de confluência entre a Europa e os
outros continentes.
Este verbo serve-nos. Dilatar pelo calor
– calor de corpo e alma, é de amor prodígio conquistando espaços e homens.
A expressão mais
alta, grandiosa e sem par desta verdadeira comunhão com os mundos novos, está
no Brasil que sociologicamente reproduz o milagre da multiplicação dos pães.
Reconhece-se a
excelência da obra do Brasil, mas, entra-se na injustiça quando se afirma que,
noutros pontos do Globo, incluindo as actuais províncias ultramarinas, pouco
fizemos ou pouco nos esforçámos.
O juízo será mais justo, se
reflectirmos alguns minutos que seja, no que foi a criação ciclópica do Brasil e
na absorção que por mais de três séculos, ela representou para metrópole tão
pouco numerosa e relativamente pobre. A construção de um estado unitário
tamanho – quase do tamanho da Europa – toma aspectos de trabalho de Hércules, exaustivo,
fabuloso. Por isso, desde que se atenda ao precedente americano, o que fizemos e
queremos continuar fazendo em África e Ásia, significa pelo menos o alicerce de
novas, grandiosas construções de uma política plurirracial, hoje em perigo no
Mundo, mas essencial para a Civilização.
Pelo trânsito histórico, o luso-galaico, o
português, tornou-se lusíada. No
conteúdo lusíada, o primitivo povo não passa já de parcela, a alimentar
aglomerados maiores em que outras raças participam numa simbiose de sensibilidade
e ideal que as aproxima, destacando-as dos seus próprios meios naturais. Melhor
termo não há que o “lusíada” camoniano, para designar um caso etno-cultural de
encontro de continentes e povos – único na História!
É evidente que o carácter português decisivamente influiu no ideal – o carácter originário e o adquirido.
Povo propenso à aventura, a aventura o exacerbou, sem que o forte realismo dos seus fecundos viveiros rurais o deixasse perder-se, desordenadamente, senão aparente, nas inúmeras atmosferas, por mais díspares, a que se expôs.
A riqueza, a plasticidade dos verbos, ficou-lhe marcando no idioma a vivência da aventura. E a prolixidade dos substantivos concretos, a par de alguns abstractos, individualizados como se concretos fossem, acusa a filiação nas terronhas nunca enjeitadas de um realismo possante.
Já com preocupação sistemática esquematizámos elementos para a caracterologia do povo português, anotando a existência de algumas constantes entre os extremos do trânsito histórico, e as vanguardas ultramarinas de que Lisboa tem centralizado o fluxo e o refluxo.
Neste último caso estão
o manuelino que mete na pedra o turbilhão do mar e do exotismo, e o fado, essa
ressaca das vidas destroçadas pelo mundo, posta em canção.
São escassos os
trabalhos deste género em língua portuguesa. Alguém disse que a absorção das
tarefas mundiais, nos desviou do estudo de nós próprios, não nos deu ensejos de
introspecção – razão que é de aceitar. Os espanhóis, pelo contrário,
preocupam-se muito em conhecer-se, especialmente a partir da geração de 98,
após o desastre de Cuba, que veio despertar a adormecida consciência nacional.
De então para cá, deflagrou abundante egoísmo à volta da temática do carácter
espanhol, da Espanha como problema e posição mundial.
Servimo-nos do castelhano para anotar, por
contraste, em relação ao português, diferenças importantes no fundo comum
ibérico, considerados estes dois povos contrapolares na Península.
Vimos no
castelhano, em seu comportamento mais alto, um agente do ideal.
Homem agente do
ideal – de um ideal preciso, de cavaleiro cristão, bem definido por Garcia
Morente, Ganivet, Valdecaras e outros.
Homem agente do ideal.
Vida como afirmação e luta.
Em confronto,
consideramos o Português “homem-estado de alma, vida afirmando-se pelo
sentimento e assimilação humana”, com carácter muito menos acentuado na
exterioridade, mas, renitente e inconfundível na sua profundeza e dinamismos teleológicos.
Assim, à teimosia aberta corresponde entre nós uma teimosia surda, cuja
eficácia a excede, já que mais interiorizada e reflectida.
O espanhol, mormente
o castelhano, espírito categórico e ardente, vê com precisão o ideal e segue
militando sem tergiversações.
O Português, mais dubitativo e sonhador, sente profundamente o ideal, mas, sem o esplendor de certezas solares com que ele se apresenta ao castelhano. A diferença dos caracteres reflete-se na concepção dos ideais.
Os elementos indefinidos, futurantes do ideal português, são porventura os mais dinâmicos. A fé cristã, o amor da Pátria, constituem ingredientes muito importantes desse ideal, bem radicados, fundamentais, cuja expressão dinâmica Luís de Camões sintetizou em dilatar a Fé e o Império.
Algo torna contudo inquieta, dorida, a consciência religiosa, algo transcende mátria e pátria para contornos dilatados que chegam a esperancismo ucrónico, alargando a missão universal trans-patriótica.
A crença num reino do Espírito Santo e num V Império, unindo longinquamente religião e pátria,
projecta para transcensões intemporais a história de um povo que age
existencialmente.
Esse agir existencialmente
renova o ideal, a fim de que responda às inseguranças próprias de cada época.
Na prefiguração
lusíada do futuro, persistem como expressões limites, solucionadoras últimas da
angústia, do mal e da guerra, aquele Reino do Espirito Santo e aquele V Império,
o que tudo é fruto de estrutural saudade.
O apego dionisíaco à natureza e à vida, com
pungente nostalgia de um paraíso que se perdeu, ou de um valor que se não
cumpre, quando o mal é flagrante e a cisão irremediável, alimentam indomável
esperancismo só resolúvel de vez naquelas situações limites da história universal,
em que tudo será resgatado.
Tais posições
pressentidas apenas intuitivamente pelo povo, transluzem nas linhas míticas da
existência colectiva e chegaram a ser ideadas por lusíadas de escol, entendendo
que o escol não reside necessariamente em qualquer areópago provincianamente
soberbo dos seus fornecimentos europeus.
O escol, num povo de história movimentada, forja-se nas vanguardas da acção, digerindo mundos e desgraças, está no português universal ou virado ao universo.
Portugueses universais, isto é lusíadas, foram por exemplo, o Infante D. Henrique, Luís de Camões, Fernão de Magalhães, Fernão Mendes Pinto, o Padre António Vieira, Fernando Pessoa.»
Francisco da Cunha Leão (in «O que é o Ideal Português»).
A supervivência do amor português
Supervivência tanto significa intensidade, vivência superlativa, como superação da morte, vida perene.
Um mito de
fatalidade amorosa que é céltico, foi renovado, em termos trans-sociais e
transcendentes, por dois amantes, um príncipe de Portugal e uma fidalga da
Galiza. Sequência trágica, a dos amores entre altos personagens de uma e outra
banda do Minho (Rainha Dona Tareja-Fernão Pérez de Trava; Príncipe Dom
Pedro-Dona Inês de Castro; Rainha Dona Leonor de Telles-Conde de Andeiro).
Sobremaneira fatal,
irregular e trágico foi este. O príncipe, uma vez rei, desenterrou o corpo da
amada, reabilitou loucamente, pomposamente, o seu amor, entronizando rainha de
Portugal, com as devidas honras aquela que seu coração elegera e lhe ficara
impressa para sempre no pensamento e na carne.
E nos túmulos de
pedra lavrada, ao Juízo Final se entrega o mais fervoroso, o mais louco
arrebatamento de todos os tempos.
A história e lenda
de Inês de Castro exprime a importância absorvente que tem o amor na existência
do nosso povo. Segundo D. Francisco Manuel de Melo, era notória a índole amorosa
do português, e Jorge Ferreira de Vasconcelos faz dizer a uma personagem da Eufrosina que o amor é português. A
poesia de amor na língua pátria é copiosa e inconfundível. Também a prosa está
enxameada com documentos dessa inebriante absorção.
As expressões mais altas, mais típicas do amor português estão em D. Diniz, Camões, Bernardim, Cristovão Falcão, Tomaz Gonzaga, Florbela, Pascoaes (elegia do amor), etc...
Tem valor para o caso a fala do Cardeal na Ceia de Júlio Dantas.
As cartas de Soror
Mariana, a despeito das ressalvas que se lhes faça quanto à autoria, constituem
dos testemunhos mais impressionantes do amor português.
O nosso romantismo é
de raiz: por isso precede séculos o chamado movimento romântico, excedendo-o
até aos nossos dias, tanto em Portugal como no Brasil.
O lema camoniano da linda Inês a cada passo renasce em nossa
literatura, feito motivo perene.
Das circunstâncias da existência colectiva e das formações míticas enunciadas, um ideal antropológico se desprende. Interessa adiantar que o povo português é sensível à afirmação do valor pessoal; propende a admiti-lo e a admirá-lo. Pouco lhe interessa o vago ou genérico valor do homem, tal como a filosofia abstracta ou o filantropismo. Comove-o, sim, o caso concreto de cada homem, a marca, a dimensão, o drama da pessoa. Prefere o soldado conhecido, ao desconhecido, aquele que tem mãe e noiva ou mulher e filhos, uma aldeia, uma história. Os povos elegem heróis à sua feição, e um ou outro por antinomia, como Joana d’Arc em França e D. João II em Portugal, pelo contraste providencial que exerceram.
Toda a história de França obedece ao cálculo; os seus políticos, os seus militares são acima de tudo raciocinadores lúcidos, verdadeiros cartesianos a agir. Os sentimentos aparecem-nos doseados, sumidos perante a razão do Estado. Homens como Luís XI, Filipe o Belo, Mazarino, Richelieu, Colbert, Luís XV, Foch e De Gaulle, denotam uma linha de razão esclarecida em que o equilíbrio, o sentido das proporções, predomina.
Joana d’Arc, Carlos
IX, Napoleão, constituem excepção, pela aura mítica ou estilo aventuroso que
rodeou tais figuras, ainda que o genial corso, a par da intrepidez de actos e
palavras, equacionasse com extremo rigor os problemas da guerra e do governo.
Na história de
Portugal tais figuras aparecem intermitentemente como excepções necessárias,
quais agentes refreadores, correctivos das mais pronunciadas oscilações do
sentimentalismo.
O homem preferido
pelo português é o herói iluminado,
cuja acção, tantas vezes intrépida, tem auréola de missão, um halo de poesia ou
de transcendente destino.
Ver aqui, aqui e aqui |
Oliveira Martins, ao
observar que o fundo céltico se manifesta em alto grau nos tipos humanos
excepcionais da história pátria, como Nun’Alvares e D. João de Castro (este na
sua ingénua ternura pela natureza), teve a intuição perfeita do herói
português.
Logo no Amadis, esse
ideal antropológico se evidencia, todo pureza e sonho.
O herói iluminado não
é simples impulsivo nem mero militante. Cabe aqui distingui-lo do tantas vezes
temerário espanhol, propenso ao militantismo extremo, seguro do seu ideal
enfático de personalidade.
O introspeccionismo
saudoso e as inferioridades numéricas, de que nunca esta nação se libertou,
concorriam para preencher reflexivamente os entreactos da aventura, tornando-a
eficaz. Há sinceridade na máscara do herói português. Basta olhar a face dos
figurantes que povoam os painéis de Nuno Gonçalves. É resignado o rosto dos
nossos Cristos, intimamente sofredores, em contraste com os espanhóis,
tétricos, espectaculares.
O heroísmo foi
inscrito por João de Castro Osório como característica dominante dos
portugueses.
Heróico ou não, o
comum dos portugueses só rende quanto é capaz, desde que situado em missão. O
simples economismo só de níveis de vida e maquinetas, embora o interesse
bastante, até pelo aspecto reclamativo social e político, não o prende
totalmente. Quer missão, campanha que pode ter carácter económico e social.
Uma vez que a não
sinta, degrada-se. A crise da missão histórica reflectiu-se em crise do homem.
Pulularam então os subprodutos do heroísmo: – o marialva, o fadista, conforme
os escalões sociais, e certos bandoleiros; entre estes últimos, José do Telhado
é do tipo galaico, João Brandão, do lusitano. Já o libertinismo puro não é
connosco, amorosos por natureza, apaixonadiços, inflamáveis. O cálculo frio,
em amor, é-nos difícil de sustentar.
O nosso herói sem
objecto não volve D. Quixote e raro suporta as couraças estóicas do vizinho
Séneca, do vizinho Quevedo. Degrada-se. A religiosidade saudosa e a aguda
sensibilidade do nosso povo projectam-se em obras pias, como hospitais,
misericórdias e casas pias, e no carácter dos Santos; estes, nacionais ou peninsulares mergulhados na tarefa
lusíada, são ecuménicos, missionários, comandados pelo coração e pela simpatia
humana: Santo António, o Santo Condestável, S. João de Brito, S. Francisco
Xavier, Anchieta, Beato Inácio de Azevedo, S. João de Deus e, recentemente, os Padres Cruz e Américo.
As casas do gaiato e o património dos pobres
inserem-se na linha das humaníssimas fundações das rainhas Dona Leonor e Dona
Maria I, e de S. João de Deus.
Naturalmente
religiosos, dispensamos hermenêutica à volta da Fé, que se tem ou não tem,
sentimos a religião por obras que não fórmulas, reagimos ao poderio temporal do
clero.
Queremos aos escritores
ou artistas místicos, apaixonados até às lágrimas, ou de realismo forte,
castigador, e assim aos ironistas sentimentais, aos justiceiros truculentos
espontaneamente.
Por umas e outras
razões, amamos Gil Vicente, Camões, Bernardim, o Bandarra, Vieira, Bocage, J. A.
de Macedo, Camilo, certo Eça e certo Oliveira Martins, António Nobre, José
Duro, Florbela, Fernando Pessoa e Pascoaes.
Isso também explica
o êxito entre nós de autores estrangeiros, quais Nietzsche, Zola, Victor Hugo,
Tolstoi; de livros como o Werther, bem como o pouco êxito do puro esteticismo e
do psicologismo, de que são exemplos Anatole e Proust.
Se em literatura
nos compraz o desgarramento sentimental e o aberrante, no homem de acção
apreciamos a capacidade reflexiva, a par do acto ousado e oportuno. Gostamos do
escândalo, saboreamo-lo por vezes morbidamente ou como espectáculo; falso,
enganoso será contudo ajuizar do êxito por isso. Diverte-nos o charlatanismo e
toda a espécie de crítica mordaz bem temperada de emoção, o achincalhe, a piada
oportuna, iconoclasta, sem que tal queira dizer que glorifiquemos os autores
para outra coisa que não seja isso. Acabaremos por seguir o homem das meias palavras
ou o espadachim iluminado e sereno. Agudo sentido do ridículo e das proporções
inutiliza aos olhos do povo português o condutor espectacular e a imposição do
exagero, tanto quanto a razão fria por outro lado lhe não basta e o argumento
só é verdadeiramente bom se fala à sensibilidade.
Gente de finisterra
é já de si gente anfíbia que foge ao Continente. Representa antropologia diferenciada,
sem determinismo de raça, pois se trata de arcaicas sobreposições de povos
sucessivamente integrados e amolgados num quadro físico e moral peculiar, a que
se juntaram no decurso histórico outros contributos raciais em doses
consideráveis.
Os povos em tais
circunstâncias, sendo expansionistas – de aventura marítima e emigração –
perante o ataque não tinham para onde fugir. Ficavam. Postos na antinomia do
heroísmo estreme ou do estreme cálculo, não lhes era consentido meio termo.
Quando as
Aljubarrotas não eram possíveis, mudava-se a capital e recebiam-se os invasores
com simulada, provisória cortesia.
Entre a aventura e a
reflexão andámos sempre alternados, ora em conjunção. A síntese marca as épocas
áureas da história pátria – da fundação, dos descobrimentos, da restauração –
aquelas em que o nosso ideal mais se enformou.
O que se está
passando em Angola é prova de que ainda se mantém a capacidade que se mostrou
em momentos culminantes. O agir intrépido, intimamente aliado a uma vasta,
elástica reflexão que vai do prever intuitivo ao cálculo, conjugam-se neste
caso como nas melhores épocas.
O povo sentiu
instintivamente com todas as forças a reivindicação do que é «nosso».
Empregamos a palavra povo sem intenção demagógica, mas, de substrato humano da
Pátria, tão vivo por sinal nos humildes. A juventude, em contacto com toda
aquela grandeza dos espaços que os seus maiores obtiveram e com as populações
que haviam sangrado e suado para desbastar o mato e erigir cidades, sentiu a glória
de ser portuguesa, aqueceu-se em fraternidade pátria, e dá-se à tarefa
guerreira sem destoar da clássica bravura dos «avós de seus avós».
Com os soldados estão
o povo português, todo o peso da história pátria, os verdadeiros lusíadas, o
escol das Forças Armadas e alguns intelectuais, alguns apenas, infelizmente.
O curso da história
marcha no entanto inexorável, – a nossa e a dos que decaem –, conduzido por
aqueles que escrevem indelevelmente com o sangue e no sentido imposto pela
vontade.
O convívio e a mistura com os outros povos,
alargou-se cronologicamente para círculos cada vez mais vastos, e assim plasticidade e universalidade se inscreveram fundamente no génio nacional.
E hoje, mais do que
outros povos, e perante um autêntico recuo histórico rotulado de progressismo,
que é retrocesso aos exclusivismos étnicos, às raças acantonadas em
continentes, nós, os lusíadas,
representamos o espírito das periferias marítimas ocidentais, do convívio e
interpenetração de raças e culturas.
Após a Torre de Babel,
os homens, desentendidos pelos idiomas incomunicáveis, arrumaram-se nos
continentes, nas entranhas dos territórios, apuraram-se em civilizações
fechadas.
De Portugal saiu o
esforço mais decisivo para derrubar essas muralhas europeias, de uma Europa de
raça branca, para se disseminar e morrer pelo Mundo, para reincarnar em todas
as outras raças encontradas pela integração do sangue e das culturas.
O ideal português do homem é o de um homem que, sendo embora português ou brasileiro, excede o conteúdo destas particularidades, pelo que universalmente significa o cidadão de uma sociedade pluricontinental e plurirracial.
(In O que é o Ideal Português, Lisboa: Edições Tempo, 1962, pp. 137-144).
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