quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O Amor Cortês: trovadores e cátaros

Escrito por Denis de Rougemont








«Mais vale casar do que abrasar».

São Paulo («Epístola aos Coríntios»).


«Amor não é amor; Amor é Anti-Roma».

Sampaio Bruno («Os Cavaleiros do Amor»).


«Amor, anti-Roma, não vem com a Igreja Romana; vem com a Roma cesarista e cesarina. (...) Tanto Bruno como Pascoaes leram a tradição anti-Roma como dirigida à Igreja romana, mas, ao que julgamos, a tradição anti-Roma é anterior à cristianização peninsular. O carácter anti-Roma eclesial só lhe foi dado, por antonomásia, no movimento albigense, nunca antes».


Pinharanda Gomes («A Patrologia Lusitana»).


«A poesia dos trovadores, que se aclimou entre nós durante o reinado de D. Afonso III, tem origens imprecisas que tanto podem ser atribuídas à poesia árabe como à poesia provençal».

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).



«Aquele que ama, que se abstém de tudo o que é interdito, que guarda o seu amor secreto e que morre de seu segredo, esse morre mártir».


(Versículo do Al-Quran).



«Em Portugal, o catarismo foi tão episódico como, mais tarde, o protestantismo. É inegável, porém, que as cantigas d'amor e só as cantigas d'amor podem ser interpretadas como cifras da iniciação cátara: o amor que nasce é um mal que ensandece; a afinidade do amor com a morte; a recusa por parte da amiga de se entregar ao amigo, que a deseja fisicamente; e tudo o mais pode ser referido à endura, termo que, aliás, os poetas galaico-portugueses usam para caracterizar a paixão. Pelo contrário, nas cantigas d'amigo, em que várias vezes vem referida a consumação do acto sexual, onde nunca o marido aparece como obstáculo à união dos amantes, mas a mãe (o que faz supor tratar-se de raparigas solteiras), onde a natureza conspira com os amantes na realização do amor, parece residir a cifra doutro tipo de iniciação erótica, que subsistiria ao lado e ao mesmo tempo do catarismo importado com as cantigas d'amor. Os investigadores portugueses que trataram do assunto, de Rodrigues Lapa a Natália Correia, atribuíram às cantigas d'amigo um fundo pagão, especificamente celta, que explicará a ressonância naturalista. Hernâni Cidade, procurando fontes mais próximas, sugere uma origem em Prisciliano nas cantigas d'amigo».


António Telmo («História Secreta de Portugal»).








«O voi, ch’avete gl’intellectti sani
Mirate la dottrina che s’asconde
Soto’l velame versi strani».

Dante Alighieri


«Oh vós, qu’Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades, quando lerdes
N'um breve livro, casos tão diversos,

Verdades puras são, e não defeitos;
Entendei que, segundo o Amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos».

Luís de Camões («Os Lusíadas»).



«Ved cómo Platón va derecho, sin vacilaciones, y agarra com sus pinzas mentales el nervio tremebundo del amor. "El amor – dice – es un anhelo de engendrar en la belleza". Qué ingenuidad! – dicen las damas doctoresas en amor, tomando sus cocktails en todos los hoteles Ritz del mundo. No sospecham las damas la irónica complacência del filósofo cuando ante sus palabras ve saetear en los ojos encantadores de las damas esa atribución de ingenuidad. Olvidam um poco que quando el filósofo les habla sobre el amor, no les hace el amor, sino todo lo contrario».


José Ortega y Gasset («Estudios sobre el Amor»).









O Amor Cortês: trovadores e cátaros


Que toda a poesia europeia tenha saído da poesia dos trovadores no século XII, é um facto que ninguém contestará. «Sim, entre os séculos XI e XII, a poesia, donde quer que fosse (húngara, espanhola, portuguesa, alemã, siciliana, toscana, genovesa, pisana, picarda, flamenga, inglesa, etc.) fora previamente languedociana, isto é, o poeta, não podendo ser senão trovador, era forçado a falar – e a aprendê-la se a não soubesse - a língua do trovador, que sempre foi o provençal» (1).

Que é a poesia dos trovadores? A exaltação do amor infeliz. «Há em toda a lírica occitana e na lírica de Dante e de Petrarca um só tema: o amor; e não o amor feliz, realizado ou satisfeito (espectáculo que nada pode engendrar) mas, pelo contrário, o amor perpetuamente insatisfeito; ou seja, apenas duas personagens: o poeta que, oitocentas, novecentas, mil vezes, reedita a sua queixa e uma bela que diz sempre que não».

A Europa não conheceu poesia mais profundamente retórica: não só nas suas formas verbais e musicais, como também, por paradoxal que isso pareça, na sua própria inspiração, uma vez que esta tem como fonte um sistema fixo de leis que serão codificadas sob o nome de leys d’amors. Mas deve também dizer-se que nunca a retórica foi mais exaltante e ardente. O que ela exalta é o amor fora do casamento, porque o casamento significa apenas a união dos corpos, enquanto o «Amor», que é o Eros supremo, é o transporte da alma para a união luminosa, para lá de todo o amor possível nesta vida. Eis por que o Amor supõe a castidade. E d’amor mou castitaz (de amor vem castidade), canta o trovador de Toulouse, Guilhem Montanhagol. O amor supõe também um ritual: o domnei ou donnoi, vassalagem amorosa. O poeta conquista a sua dama pela beleza da sua homenagem musical. Jura-lhe, de joelhos, uma eterna fidelidade, como se faz a um suserano. Como garantia de amor, a dama dava ao seu poeta-paladino um anel de oiro, ordenando-lhe que se erguesse e depondo-lhe um beijo na fronte. A partir daí, os amantes estão ligados pelas leis da cortesia: o segredo, a paciência e a «mesura» que não é totalmente sinónimo de castidade, como veremos, mas antes de contentação… E, sobretudo, o homem será o servo da mulher.







Donde vem essa concepção nova do amor «perpetuamente insatisfeito» e esse louvor entusiasta e queixoso de «uma bela que diz sempre que não»? E donde vem esse sábio lirismo que de repente aí se encontra para traduzir a nova paixão?

Não será exagerado sublinhar o carácter miraculoso deste duplo nascimento, tão rápido: no espaço de cerca de vinte anos, nascimento duma visão da mulher inteiramente contrária aos costumes tradicionais – a mulher vê-se elevada acima do homem, para quem se torna o ideal nostálgico – e nascimento duma poesia de formas fixas, muito complicadas e requintadas, sem precedente em toda a Antiguidade nem nos poucos séculos de cultura românica que se sucedem ao renascimento carolíngio.

Ou tudo isso «cai do céu», quer dizer, brota duma inspiração súbita e colectiva – mas ainda seria necessário explicar porque é que se produziu em dado momento e dados locais bem definidos; ou tudo isso resulta duma causa histórica concreta, - e então trata-se de saber por que razões ela permaneceu obscura até aos nossos dias.

O que é extremamente curioso é o embaraço dos romanistas mais sérios logo que chegam a reconhecer a questão, e a facilidade com que decidem não responder.

Toda a gente admite hoje em dia que a poesia provençal, e as concepções do amor que ela ilustra, «longe de se explicar pelas condições em que nasceu, parece em contradição absoluta com essas condições» (2). «É evidente que ela não reflecte de modo algum a realidade, já que a condição da mulher não foi, nas instituições feudais do Sul, menos humilde e dependente que nas do Norte» (3). Ora, se é «evidente» a esse ponto que os trovadores não colhiam nada da realidade social, parece não menos evidente que a sua concepção do amor tem outra origem. Qual poderia ela ser?

A mesma pergunta se põe em relação à sua arte, quer dizer, à sua técnica poética. «Criação extremamente original», escreve Jeanroy (mesmo que censure a cada um destes poetas, tomado separadamente, não terem mostrado nenhuma espécie de originalidade e se terem limitado a apurar formas fixas e lugares-comuns: mas ainda era preciso que um deles, pelo menos, as tivesse criado!». Ora desde que um historiador se arrisca a formular uma hipótese sobre a origem da retórica cortês, os especialistas cumulam-no das mais ácidas ironias, sobretudo em França.

Sismondi fazia remontar aos Árabes o misticismo do sentimento: afasta-se desdenhosamente «essa enormidade» (4). Diez mostrou as semelhanças de forma (ritmos e cortes) entre a lírica árabe e a lírica provençal: não é sério, dizem-nos. Brinkmann e outros supuseram que a poesia latina dos séculos XI e XII podia ter fornecido modelos: bem vistas as coisas, essa hipótese não é sustentável porque os trovadores, parece, não tinham suficiente cultura para conhecer essa poesia. E assim, para cada resposta proposta, a «seriedade» dos sábios parece consistir sobretudo numa propensão para qualificar de enormidade ou de fantasia tudo o que ameace dar um sentido ao fenómeno que passam a vida a estudar.






É certo que Wechssler, numa obra famosa (5), julgou poder esclarecer tudo distinguindo na origem da lírica provençal influências religiosas, neoplatónicas e cristãs adulteradas… Mas essas «afirmações ousadas» em breve ergueram contra si o conjunto dos nossos eruditos. Wechssler viu-se tratado de «doutrinário» - suprema injúria – e vários insinuaram que a qualidade de alemão desse professor os dispensava de refutar um sistema incompatível com o claro génio da nossa raça.

Resta, portanto, dum lado um fenómeno estranho e, doutro, sábias refutações de tudo o que pretenda explicá-lo. «É igualmente possível – escreve um dos nossos professores – ver nessas canções de amor, que constituem três quartas partes da poesia provençal, uma imagem fiel da realidade e uma pura colecção de fórmulas vazias de sentido». Sem dúvida. Mas aí o autor anuncia que, como «historiador escrupuloso», evita pronunciar-se. O que equivale a dizer que a lírica cortês de que se ocupa permanece a seus olhos, e até haver mais ampla informação, «uma colecção de fórmulas vazias de sentido». Excelente «material» é certo, para um filólogo que se preze e que não queira «forçar» os textos, nem sequer pela menor tentativa de os compreender.

Pela minha parte não poderei contentar-me com uma hipótese a tal ponto escrupulosa. Recuso-me a supor um só momento que os trovadores foram uns fracos de espírito, apenas bons para repetir incansavelmente fórmulas aprendidas não se sabe de onde. E a mim mesmo pergunto, depois de Aroux e Péladan, se o segredo de toda essa poesia não deveria ser procurado muito mais próximo dela do que se tem feito – lá mesmo: lá, no próprio meio em que ela nasceu. E não no meio puramente «social» no sentido moderno, mas sim na atmosfera religiosa que determinava as formas, mesmo sociais, desse meio (6).

Partindo daí, verificamos que um grande facto histórico domina o século XII provençal.

Ao mesmo tempo que o lirismo do domnei e nas mesmas províncias – Languedoc, Poitou, Renânia, Catalunha – uma heresia poderosa se desenvolvia. Pôde dizer-se da religião cátara que ela representou para a Igreja um perigo tão grave como o do arianismo. Não vão alguns ao ponto de pretender que ela fez no Ocidente milhões de fiéis secretos, apesar de tão sangrenta cruzada dos Albigenses no século XIII e até à Reforma?

Pode atribuir-se como origem precisa da heresia as seitas neo-maniqueístas da Ásia Menor e as Igrejas bogomiles da Dalmácia e da Bulgária. Os «puros» ou cátaros (7) ligam-se às grandes correntes gnósticas que atravessam o primeiro milénio do cristianismo. E sabemos bem que a Gnose, assim como as doutrinas de Mani ou Manés, mergulha as raízes na religião dualista do Irão.

Qual era a doutrina dos cátaros? Longamente se repetiu que «nunca se saberá», e isso pela excelente razão de que a Inquisição queimou todos os livros de culto e tratados da doutrina da Heresia e que os únicos testemunhos subsistentes eram os interrogatórios pelos escrivães. De facto, a descoberta e a publicação, em 1939, duma obra teológica (tardia, é certo) o Livre des deux Principes (8), acrescentada à recuperação dum Novo Testamento e de rituais utilizados pelos Heréticos (9), permite hoje conhecer, no seu conjunto e em algumas das suas variantes, os dogmas da «Igreja de Amor», nome que por vezes se deu à heresia também chamada «albigense» (10).

A origem permanente e sempre tragicamente actual da atitude cátara ou, duma maneira mais geral, do dualismo nas religiões mais diversas, como na reflexão de milhões de indivíduos, foi e permanece o problema do Mal, tal como o homem espiritual o experimenta neste mundo.






O cristianismo traz ao problema uma resposta dialéctica e paradoxal que se resume nas palavras liberdade e graça. Mais pessimista e duma lógica mais maciça, o dualismo estabelece a existência absolutamente heterogénea do Bem e do Mal, quer dizer, de dois mundos e de duas criações. Com efeito, Deus é Amor mas o mundo é mau. Portanto, Deus não poderia ser o autor do mundo, das suas trevas e do pecado que nos rodeia. A sua primeira criação na ordem espiritual, depois anímica, foi terminada na ordem material pelo Anjo revoltado, o Grande Arrogante, o Demiurgo, isto é, Lúcifer ou Satanás. Este tentou as Almas ou Anjos dizendo-lhes «que mais lhes valia estar cá em baixo, onde podiam praticar o mal e o bem, do que lá em cima, onde Deus só lhes permitia o bem» (11). Para melhor seduzir as Almas, Lúcifer mostrou-lhes «uma mulher duma beleza esplendorosa que os inflamou de desejo». Depois deixou o Céu com ela para descer para a matéria e para a manifestação sensível. As Almas-Anjos seguiram Satanás e a mulher duma beleza esplendorosa, foram presas em corpos materiais que lhes eram e permanecem estranhos. (Esta ideia parece-me esclarecer uma sensação fundamental do homem, mesmo em nossos dias). A alma, a partir de então, encontra-se separada de seu espírito, que permanece no Céu. Tentada pela liberdade, torna-se de facto prisioneira dum corpo com apetites terrestres, submetido às leis da procriação e da morte. Mas Cristo veio até nós para nos mostrar o caminho de regresso à Luz. Esse Cristo, nisso semelhante ao dos Gnósticos e ao de Manés, não incarnou verdadeiramente: apenas tomou a aparência dum homem. É aqui que reside a grande heresia docetista (do grego dokesis, aparência) que, de Marcião até aos nossos dias, traduz a nossa recusa «natural» em admitir o escândalo dum Deus-Homem. Os Cátaros rejeitam portanto o dogma da Encarnação e, a fortiori, a sua tradução romana no sacrifício da missa: eles substituem-no por uma ceia fraterna simbolizando acontecimentos puramente espirituais. Rejeitam também o baptismo pela água e não reconhecem senão o baptismo pelo espírito consolador: esse consolamentum tornou-se o rito maior da sua Igreja. Este era dado, a quando de cerimónias de iniciação, aos irmãos que aceitavam renunciar ao mundo e se comprometiam solenemente a consagrar-se unicamente a Deus, a jamais mentir nem prestar juramento, a não matar nem comer animal algum, e finalmente a abster-se de todo o contacto com suas mulheres, se fossem casados. Parece que um jejum de quarenta dias (12) precedia a iniciação e que um outro de duração igual se lhe sucedia (mais tarde, no século XIV, esse jejum ritual ou endura conduzirá alguns dos «puros» até à morte voluntária, morte por amor de Deus, consumação do desapego supremo de toda a lei material). O Consolamentum era administrado pelos bispos e comportava a imposição de mãos, no meio do círculo dos «puros», seguido do beijo da paz trocado pelos irmãos. Após o que o iniciado era objecto de veneração para os simples crentes não ainda «consolados»: tinha direito à «saudação» dos crentes, isto é, a três «reverências».

Viu-se o papel da Mulher, engodo do Diabo para arrastar as almas para os corpos. Em contrapartida (em compensação, dir-se-ia), um princípio feminino, pré-existente à criação material, desempenha no catarismo um papel análogo ao da Pistis-Sophia nos gnósticos. À Mulher, instrumento de perdição das almas, responde Maria, símbolo da pura Luz salvadora, Mãe intacta (imaterial) de Jesus e, parece, Juiz cheio de doçura dos espíritos libertados.

Os maniqueístas conheciam há séculos os mesmos sacramentos que os Cátaros: a imposição das mãos, o beijo da paz e a veneração dos Eleitos (ou «puros»). É importante mencionar aqui a veneração maniqueísta dirigida à «forma de luz» que em cada um representa o seu próprio espírito (que permaneceu no Céu, fora da manifestação) e que acolhe a homenagem da sua alma por uma saudação e um beijo.


Lúcifer


Sendo o inferno a prisão da matéria, Lúcifer, anjo revoltado, não pode aí reinar a não ser durante o tempo que durar o «erro» das almas. No termo do ciclo de suas provas – comportando várias vidas, físicas ou outras, para os homens ainda não iluminados – a criação será reintegrada na unidade do Espírito original, os pecadores arrastados por Satanás serão salvos e o próprio Satanás entrará de novo na obediência do Altíssimo.

O dualismo dos Cátaros resolve-se portanto num verdadeiro monismo escatológico, enquanto a ortodoxia cristã, decretando a condenação eterna do Diabo e dos pecadores endurecidos, conduz a um dualismo final, se bem que, ao contrário do maniqueísmo, ela professe a ideia duma criação única, divina e boa na origem.

Notemos finalmente este último aspecto: como sucedeu com tantas seitas e religiões orientais – jainismo, budismo, essenismo, gnosticismo cristão – a Igreja cátara dividia-se em dois grupos: os «Perfeitos» (perfecti) (13) que haviam recebido o consolamentum, e os simples «crentes» (credentes ou imperfecti). Só os segundos tinham o direito de se casar e de viver no mundo condenado pelos puros, sem se submeterem a todos os preceitos da moral esotérica: mortificações corporais, desprezo pela criação, dissolução de todos os laços mundanos.

São Bernardo de Claraval (citado por Rahn) pôde dizer dos Cátaros, que todavia combatia com todas as suas forças: «Não houve certamente sermões mais cristãos que os deles e seus costumes eram puros…».

Este juízo redime, em parte, as calúnias da Inquisição. Mas admiramo-nos de ver este Santo doutor qualificar de «cristã» uma prédica que nega vários dos dogmas fundamentais da sua Igreja. Quanto à pureza dos costumes dos Cátaros, vimos que ela traduzia crenças muito diferentes das que fundamentam a moral cristã ortodoxa. A condenação da carne, onde alguns julgam ver hoje uma característica cristã, é na verdade de origem maniqueísta e «herética». Porque, é essencial notá-lo aqui, a «carne» de que fala São Paulo não é o corpo físico mas o total do homem não crente, corpo, razão, faculdade, desejos – e portanto também a alma.

A cruzada dos Albigenses, conduzida pelo Abade de Cister no princípio do século XIII, destruiu as cidades dos Cátaros, queimou os seus livros, massacrou e queimou as populações que os amavam, violou os seus santuários e o seu último lugar sagrado, o castelo-templo de Montségur (14) – ou seja, saqueou brutalmente a civilização tão requintada de que tinham sido a alma austera e secreta. E, contudo, dessa cultura e de suas doutrinas fundamentais somos ainda tributários, para lá do que se possa imaginar…


Dante herético?






Independentemente dos trabalhos muito sérios de um Asín Palacios sobre uma possível influência da mística sufi na Comédia, pode ter interesse citar a tese difícil e um pouco ousada de dois autores do século passado: Eugène Aroux e, depois dele, Péladan. Aroux expõe o resultado das suas induções, numa obra, hoje em dia praticamente impossível de encontrar, intitulada: Dante, révolutionnaire, hérétique et socialiste (1854). Dante não só fazia parte da Ordem dos Templários, mas a ordem teria estado ligada à heresia cátara – apesar das aparências – como o braço secular à autoridade espiritual. Então, toda a Comédia, o Convívio e até o De vulgari eloquentia deveriam ser interpretados simbolicamente. Num opúsculo posterior, Aroux concretiza a sua interpretação. O título da brochura é significativo: Clef de la Comédie anticatholique de Dante Alighieri, Pasteur de l’Église albigeoise de la ville de Florence, afflié à l’ordre du Temple – donnant l’explication du langage symbolique des fidèles d’Amour dans les compositions lyriques, romans et épopées chevaleresques des troubadours (1856). É um léxico que dá o sentido de cerca de 500 palavras, como por exemplo:

«Árvores mortas». – Os católicos. Os trovadores chamavam aos membros do clero católico árvores outonais mortas.

«Albigenismo, Albigense». – Palavras que não se encontram na Comédia, mas cuja ideia está sempre presente.

«Damas». – Os iniciados do templarismo albigense que, por um desdobramento místico de alma e corpo, se supunha terem os dois sexos, homens enquanto corpo e forma material, e mulheres enquanto inteligência e pensamento livre da união com a miséria.

«Lancelote». - «(…) Foi preciso que os decifradores dos velhos manuscritos tivessem uma preocupação total com a letra para não terem visto em toda a literatura que passou sob os seus olhos senão contos sem sentido, com difusão europeia, e amores de uma pureza angélica a serem imitados como modelo pelas raças futuras!».

Não vou examinar estas «explicações», por vezes muito penetrantes, outras muito arbitrárias. Mas a história literária e religiosa confirmou, mais tarde, a exactidão de muitos dos pontos de vista de Aroux. (Gaston Paris quando estabeleceu em 1880 a filiação trovadores-troveiros-romance bretão; Asín Palacios quando retomou o problema da heresia em Dante, etc.) [in O Amor e o Ocidente, Vega, pp. 64-71 e 298-99).


Notas:

(1) Charles-Albert Cingria, Ieu oc tan (em Mesures, n.º 2, 1937). «Provençal» quer realmente dizer aqui: tolosino.

(2) A. Jeanroy, La poésie lyrique des troubadours, 1934.

(3) A. Jeanroy, Introdução a uma Anthologie des Troubadours, 1927.

(4) Jeanroy, La poésie lyrique des trobadours, I, p. 69.

(5) E. Wechssler, Das Kulturproblem des Minnesangs, Halle, 1909.

(6) Foram tentadas algumas explicações sociológicas da «cortesia». Ligam-se a suposições – muitas vezes contraditórias – sobre a condição da mulher no Languedoc. Vernon Lee, por exemplo, num ensaio intitulado Medieval Love, diz que nas cortes medievais havia «uma enorme preponderância numérica de homens», dos quais poucos podiam casar. Daí a idealização do objecto de um desejo tão difícil de satisfazer. Podemos aceitar a informação mas no fundo nada explica de exacto sobre a retórica cortês.

(7) Cátaro vem do grego catharoi, puros.


Castelo de Montségur


(8) Liber de duobus principiis, publicado por A. Dondaine, O. P., Roma, 1939. Dondaine e Arno Borst datam este tratado da segunda metade do século XIII.

(9) Cf. La Cène secrète publicada por Döllinger em Munique em 1890.

(10) Foram recentemente publicadas três obras importantes sobre o catarismo: Études manichéennes et cathares, de Déodat Roché (1952); Le Catharisme, de René Nelli, Charles Bru, cónego de Lagger, D. Roché, L. Sommariva (1953); Die Katharer, de Arno Borst (1953). Esta terceira obra opõe-se em muitos pontos às duas primeiras, mas o seu confronto é muito esclarecedor quanto à natureza exacta, evolução e complexidades da heresia.

(11) Cf. Prière cathare, citada por Döllinger. Repare-se que a liberdade do homem, o poder de praticar o mal ou o bem, teria a sua origem não em Deus mas no Diabo.

(12) Este número é arquetípico. Jesus permaneceu quarenta dias no Deserto. Os Hebreus erraram durante quarenta anos entre o Egipto e a Terra Prometida. O Dilúvio foi provocado por uma chuva de quarenta dias. No tantrismo budista, o «serviço» da Mulher está dividido em provas de quarenta dias, etc. Quarenta é o número da Provação.

(13) A expressão «perfeitos» só a encontramos nos registos da Inquisição. A palavra «bonshommes» (ou simplesmente cristãos) parece ter sido utilizada pelos próprios Cátaros, e «perfeitos» teria um sentido irónico.

(14) Ver o excelente trabalho de Fernand Niel, Montségur, la montagne inspirée, 1955. «Se Montségur não era o castelo do Graal [como afirmava Rahn], nenhum outro na Europa se adapta melhor do que ele às lendas graálicas». Para F. Niel o problema levantado por Rahn continua por solucionar. Acrescento que os adversários mais violentos desta hipótese são os que não conhecem o local de Montségur. O choque emocional provocado pela fantástica aparição do pico sagrado contém uma evidência de ordem diferente da que as «provas» escritas podiam trazer.






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