terça-feira, 18 de outubro de 2011

O romance (i)

Escrito por Álvaro Ribeiro





Eros e Psique



A prioridade do pensamento e do sentimento sobre a expressão literária e sobre a comunicação artística, prioridade admitida nas investigações de antropologia cultural, obriga-nos a subordinar ao critério psicológico todas as classificações admissíveis em filologia. A gradação dos sentimentos humanos forma a escala em que estão situadas as obras poéticas, mas quando o sentimento se consciencializa em pensamento, por adequação ontológica do idealismo ao realismo, os géneros literários respondem e correspondem a investigações filosóficas. O romance será, por este critério, a narrativa em prosa ou em verso que tenha por tema essencial o amor.

Esta doutrina da subordinação do romance a um só motivo – o amor – parecerá injustificada aos críticos literários que, contra ela, protestarão nomes de autores e títulos de livros, como se os exemplos aduzidos em contrário, ou as excepções que sempre confirmam a regra, pudessem logicamente alargar o âmbito de uma definição. A análise revelará, porém, que o autor de uma obra classificada de romance orientará o pensamento do leitor para o segredo natural da união amorosa, ainda quando se proponha outro fim, e sempre a narrativa incluirá as vicissitudes de dois amantes, quer a narrativa ascenda a gama das dificuldades triviais até à impossibilidade trágica, quer descenda a escala da desilusão agónica até ao relaxamento das ligações morais. Nunca o romancista, por mais que multiplique os caracteres, complique os incidentes, amplie as circunstâncias, dissolverá no ânimo do leitor a reminiscência do diálogo dos amantes.

Todas as pessoas que foram ensinadas a ler inteligentemente romances, e de certo modo a exercer crítica literária, sabem discernir os elementos constitutivos das obras de ficção. São esses elementos os seguintes: o diálogo, a narração, a descrição, o retrato, além dos comentários do autor, ou do interposto narrador. Fácil é distingui-los, e assinalá-los à margem de cada página do livro, para que da desarticulação do romance mais facilmente ressaltem os méritos característicos do autor.

Quem não apreciar distintamente o valor destes elementos, e não souber dizer em qual deles se afirma o mérito, o talento ou o génio do romancista, poderá ter a certeza de que não efectuou uma leitura educativa. Resumir a narrativa, em méia dúzia de frases para que o esquema permaneça na memória, equivale a praticar uma adulteração por minoração, equivale a anular o valor ontológico da obra literária. Tais resumos abundam, porém, nos compêndios de história da literatura, sabido que estes livros são redigidos na intenção de habilitar os estudantes a responder nos exames, segundo um processo que inicia os intelectuais no vício de reduzirem o desconhecido ao já conhecido.

Verdadeiro apreciador de romances é o leitor capaz de determinar os conceitos opostos, entre os quais se realiza o movimento ou o progresso das obras literárias. Há-se, portanto, estar prevenido por uma doutrina e munido de um questionário. Ler sem saber classificar o que de diferente, de novo, de melhor um romance nos apresenta em relação a outro, é ler apenas para esquecer a literatura e passar o tempo.

A literatura degenera sempre que se submete a um realismo servil, incompatível com o pensamento criacionista. O êxito de uma obra meramente realista será tão efémero como o fenómeno observado. Nunca foi possível conciliar duradouramente o realismo com uma verdadeira filosofia da arte.

O realismo postula indispensavelmente o primado do ver. São as palavras, porém, que realizam o prodígio de nos fazer ver, e de nos facultar o intuir. O romancista que não for feliz na escolha do vocabulário, verá frustrada a sua obra, como o cientista que não interrogar o movimento das imagens, dos conceitos e das noções.






Não há, para o verdadeiro romancista, maior dificuldade do que a de descrever perfeitos retratos das personagens. Qualquer pessoa de normal inteligência, ao ver a fotografia de um rosto humano, imediatamente dirá se o retratado é varão ou mulher, e poderá até calcular a respectiva idade. Raro será, porém, o observador capaz de enunciar com palavras exactas as razões estéticas da afirmação feita, porque só o artista se distingue e distancia da razão prática.

A literatura é, neste aspecto, inferior às artes plásticas, nomeadamente à pintura, porque na falta da palavra exacta tem de recorrer à expressão metafórica. Difícil é dizer, com precisão científica, o que distingue um rosto feminino de um rosto masculino, porque igual é o número de palavras designativas dos caracteres anatómicos e fisiológicos de cada sexo, e poucos termos existem para denominar os efeitos visíveis das secreções internas que estão sendo estudadas pela endocrinologia. À custa de adjectivos poderá o romancista descrever as linhas puras de um rosto, mas omitirá na maior parte das vezes a significação fisiognómica de cada pormenor, e limitar-se-á a uma opinião indecisa sobre o conjunto das feições.

Julgamos indispensável o estudo da fisiognomia a quem se dedica à literatura, porque mantemos a convicção de que a ciência de Lavater, auxiliar da antropologia, é tão útil aos autores como aos críticos e aos historiadores. A descrição das fisionomias não pode ser arbitrária, porque condiciona o procedimento das personagens ao longo da narrativa. Infelizmente, porém, não é raro ler obras literárias em que a contradição entre os dados fisiognómicos e os procedimentos caracterológicos chega a atingir o inverosímil.

Os literatos deveriam proceder a este respeito como os médicos. Sem fisiognomia é impossível a interpretação dos sintomas mórbidos e, consequentemente, a diagnose. Sem fisiognomia é impossível interpretar um carácter humano e, consequentemente, prever as linhas normais do seu procedimento social.

Muitos romancistas parecem ignorar que a cabeça humana se divide em três partes, para efeitos de descrição fisiognómica. Nada nos dizem quanto à forma do crânio, à cor dos cabelos, à largura da testa, e de um modo geral à fronte, tão significativa da vida intelectual; nada nos dizem quanto às sobrancelhas, à cor e ao brilho dos olhos, aos nervos faciais, à mobilidade dos lábios, sinais de maior expressão; nada nos dizem quanto às mandíbulas e ao queixo, tão significativos da vida instintiva. Atrevem-se muitos a escrever romances sem prévios estudos de fisiognomia, como se as características do corpo humano não condicionassem a índole, o temperamento e o carácter das personagens.


É ao longo do diálogo que o romancista costuma intercalar alguns traços fisiognómicos, mais para concretizar do que para caracterizar as personagens. Depois de uma frase significativa, surge um gerúndio para advertir o leitor de que vai ter lugar a descrição de uma atitude, de um gesto ou de um acto, que intensifica a significação do diálogo. Outras vezes é o próprio narrador quem interrompe a conversa, descreve algum pormenor fisiognómico, faz um comentário biotipológico, na intenção de mostrar que, embora mais interessado pela psicologia, não se esqueceu da antropologia.

À medida que o escritor descreve as personagens, anotando os movimentos voluntários dos braços e os movimentos involuntários das mãos, a inclinação do tronco quando se sentam e quando se levantam, enfim, o modo de andar tão significativo para a caracterização das idades, vai o leitor reconhecendo as tendências individuais para as várias doenças, e das doenças para a morte. Conforme predominar a verticalidade ou a horizontalidade na configuração do corpo humano, assim a personagem tenderá para o tipo asténico ou para o tipo artrítico, segundo as classificações da biotipologia. Será principalmente pelos actos, que o escritor lhes for atribuindo, que imaginaremos as particularidades fisiológicas das personagens, e assim saberemos se nelas predomina o sistema locomotor, ou o sistema digestivo, ou o sistema circulatório e respiratório (1).

Certo é, porém, que da antropologia ao romancista mais interessa a psicologia, e assim verificamos que ele prefere compor o seu romance por dialogação, movido por três razões: porque o desenho das personagens vai resultando das frases, porque com o diálogo preencherá tipograficamente maior número de páginas, e ainda porque a simples conversa prende sem cansaço a atenção do leitor. O diálogo é fácil porque não obriga a artifícios, ao aprofundamento do idioma, já que o escritor realista, inimigo da imaginação, exige que as falas das personagens aparentem naturalidade, quer dizer, sejam mera transcrição de prosa alheia, e às vezes de lugares-comuns. As almas falam simplesmente, mas o logos da psique, ou psicologia, está longe de representar toda a verdade do composto humano.

A palavra assume particular importância no romance, porque é palavra que humaniza a vida erótica para a transformar em vida de amor. O ritual, por intermédio do mito, daquilo que se diz, vai até à porta do indizível, ou do mistério, e assim ascende à dignidade da liturgia. Sem palavras valorativas de bondade, de beleza e de verdade não pode haver linguagem comunicativa de graça entre os homens.

A narrativa literária, que entre nós é designada por romance, obedece a um esquema pouco variável que pode ser actualizado por indefinidas variantes de tempo e de espaço, de oportunidade e de circunstâncias. O essencial deste tipo de obra de arte literária define-se no momento em que uma personagem toma consciência, por emoção, sentimento ou paixão, de que o egoísmo se transmutou em altruísmo, isto é, no momento em que o romancista produz a prova de que para cada liberdade existe um destino sobre-humano e transcendente. Sem este elemento de ordem filosófica, sem o simbolismo próprio da cosmologia, a que o prosador haja ascendido por mediação cultural ou por directa intuição, a obra literária não será digna do qualificativo de romance, antes merece ser classificada entre vulgares produtos de profanação.

Intermediário entre a antropologia e a cosmologia, o amor tende para a configuração edénica, mas não vai além da configuração idílica, porque se perde na penumbra discreta dos quadros da Natureza. É de uso, entre as pessoas cultas, lembrar a propósito deste naturalismo o nome de Jean-Jacques Rousseau. A verdade, porém, é que a admiração perante a paisagem, que é uma contemplação de ordem estética, não deve ser confundida com o chamado sentimento da Natureza.


A distinção equivale à diferença entre o belo e o sublime, superiormente elaborada por Kant (2). Já são raros os momentos em que o homem atinge a consciência de estar vibrando em uníssono com a Natureza, porque são muitos os obstáculos interpostos pela Civilização. A arte literária vai perdendo assim a possibilidade de descrever a integração do finito no infinito, prefere exprimir a contradição entre estes dois termos, conforme se verifica na estética da ironia.

As descrições de belas paisagens, tão frequentes nas obras de escritores românticos, que assim exprimiam a emoção, o sentimento ou a paixão da Natureza, podem ser substituídas por descrições de ambientes urbanos ou de interiores domésticos, desde que o artista não se esqueça de que em qualquer parte do mundo está o elemento simbólico da cosmologia. Variável também, segundo o arbítrio do escritor, é a ordem dos factores que hão-de constituir a intriga romanesca. Sabido que os romancistas são mais ou menos memorialistas, na medida em que lhes falta imaginação, não estranhemos que geralmente comecem por descrever o encantamento do varão pela beleza da mulher, segundo paradigmas de autobiografia.

Muitos romances são primeiramente escritos na forma de confissão autobiográfica, para em segunda redacção serem transladados da primeira pessoa gramatical para a terceira, segundo um artifício de estilo que não ilude nem encanta o leitor avisado. A permanência da identificação do autor, ou do narrador, com a personagem mais simpática lá está para denunciar a falta de imaginação psicológica. O escritor de talento, pelo contrário, começará por apresentar uma das personagens menos simpáticas, parecendo identificá-la com o narrador, para assim adoptar o ponto de vista mais propício à dramaticidade indispensável na obra de ilusão artística.

A arte de amar, ensinada por vários tratadistas que se limitavam a explicar o que é explicável, não preceitua mais do que exercício incessante da imaginação. Quem pela primeira vez declara o amor, por palavras bem ou mal inspiradas, assume o compromisso de repetir diariamente essa declaração, mas obriga-se também a inventar processos sempre diferentes de manifestar a fidelidade e a lealdade ao ente amado. Fazer voto de amor, por qualquer fórmula de juramento, é devoção que logo se transforma em obrigação.

Toda a arte do homem está em saber louvar a mulher amada, em evitar a repetição que mecaniza, banaliza e adormece a vida sentimental, em reconhecer a gradação subtil dos diferentes vínculos de amor. A graciosidade da linguagem do adolescente que perpassa na dialéctica dos amantes, o ideal de fidelidade electiva que enobrece e sublima os mútuos juramentos, o encanto sentimental que se corporiza no apogeu da volúpia, constituem graus de uma fenomenalidade que só o escritor de génio pode exprimir sem banalidade, estultícia ou profanação. Torna-se patente a inépcia do romancista que se demora no descritivo e no narrativo, por preconceitos naturalistas ou realistas, quando seria o momento literário de vencer o empirismo pelo raciocínio e o realismo pela imaginação.

Na penumbra propícia a um ritual sagrado existem segredos naturais que o literato vulgar não sabe descrever. Quem não os respeita, reverencia e venera, quem sobre eles se propõe projectar a cruenta luz meridiana, confessa por isso não compreender a analogia profunda da morte com o amor, patenteia ignorar a significação da palavra metamorfose. Confessa assim, e também, que ainda não soube atribuir significado religioso aos actos habituais da vida quotidiana.

Túmulo de D. Inês de Castro (Mosteiro de Alcobaça).



Conhece talvez o literato a antiquíssima comparação do sono com a morte, mas não aproveita, antes despreza, essa comparação que a literatura tornou banal. Nunca meditou, porém, na analogia do cerrar dos olhos com o cerração da noite, do leito com o túmulo, dos brancos lençóis como os alvos mármores. Ao despir-se, ao deitar-se, o homem desenvolve-se das roupas que o aquecem, protegem ou mascaram; goza um prazer que não é mais do que alívio do sofrimento inconsciente que lhe deu a canseira do trabalho quotidiano; não repara, porém, que no acto prefigura o despir das faculdades vigilantes que a alma há-de perder para atingir a nudez esotérica.

O artista que não respeita o ritual da desnudação é artista que não compreende o nascimento, o amor e a morte; não sabe distinguir a verdade nua da verdade revelada; tenderá sempre a descrever o encontro dos amantes em termos de pornografia ou, seja, de profanação. Não compreenderá, por isso, o significado mítico da mútua dádiva de duas vidas, conforme é celebrado no sacramento do matrimónio. Não compreenderá a beleza secreta da palavra sacrifício, nem, portanto, o encanto eloquente da renascença ou, que o mesmo é dizer, da ressurreição (in A Razão Animada, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009, pp. 233-39).


Notas:

(1) Álvaro de Caires, Biotipologia, O Conhecimento da Pesonalidade, Lisboa, 1942, 2.ª ed., revista pelo autor.

(2) Immanuel Kant, Kritik der Urteilskraft, 1790.

Continua


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