domingo, 25 de junho de 2023

"As nações marítimas aprenderam na escola náutica de Portugal, cuja ciência constituiu a base fundamental da expansão da hegemonia da Europa" (i)

Escrito por Franco Nogueira



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«(...) a cada grande viragem da história nacional, produz-se uma sistemática destruição de elites; e depois o processo de reconstituição demora duas a três gerações (entendendo-se que cada geração corresponde a cerca de dez anos). E na viragem do século XIV para o século XV foi patente o fenómeno. Grande foi o mérito de D. João I, de João das Regras, e dos seus partidários em terem sabido assentar as bases da criação de novas elites. E passados que foram vinte ou trinta anos, nós vemos as novas classes dirigentes e o novo escol – tanto a nobreza como o alto clero, tanto os legistas como os mercadores – inteiramente à altura das circunstâncias e defensores lúcidos dos altos interesses nacionais. Tinham-se afeito à nação. E foi a epopeia das navegações e descobrimentos: é que o fenómeno ultramarino passava a fazer parte integrante da consciência da nação e da vida portuguesa: e as novas elites, saídas da revolução, cumpriam o imperativo (cf. Jaime Cortezão, A Expansão dos Portugueses no período henriquino). Temos alguns exemplos que ficaram por símbolos supremos. No topo da pirâmide, como é evidente, está D. João II, talvez o maior génio político de toda a história de Portugal. Quando se põe o problema da entrega de Ceuta contra a libertação do Infante D. Fernando do seu cativeiro de Fez, há hesitação entre alguns círculos da Corte e entre alguns procuradores de concelhos. Mas o arcebispo de Braga e o conde de Arraiolos opõem-se tenazmente à entrega da praça de Ceuta: o Infante devia ser imolado aos altos interesses nacionais: e assim acabou por ser deliberado. E Portugal transmite então o “retrato singular e prodigioso de uma nação organizada, em que diversos grupos sociais figuram por direito próprio à volta do rei” (António José Saraiva, Para a história da cultura em Portugal, II, 263).

Mas com D. Manuel e sobretudo com D. João III entra-se em novo declínio que leva à grande crise de 1580-1640. Conta-nos Queiroz Veloso: a nobreza estava reduzida a serventuários do Paço e o povo perdera a altiva consciência do seu valor colectivo (Q. V., D. Sebastião, 22). Alcácer Quibir sorveu e destroçou a grande aristocracia; a culpa fora de todos, dizia num sermão o padre jesuíta Luís Álvares; e lamentava que não tivesse havido em Lisboa um outro tanoeiro, como dois séculos atrás, que soubesse ter “mão na rédea” a nobres e burgueses. À notícia de Alcácer Quibir, Filipe de Espanha compreende lucidamente a situação e actua com rapidez. Reúne de pronto o Conselho de Estado e manda a Lisboa um emissário especial: para os Portugueses, o lugubremente célebre Cristovão de Moura. E então Portugal escreveu, através das suas elites e da alta-roda da sociedade portuguesa, uma das páginas mais amarguradas da sua história. Cristovão de Moura seduziu, aliciou, insinuou-se, subornou. Diga-se a palavra: comprou a elite portuguesa».

Franco Nogueira («Juízo Final»).


«Não é possível operar eficazmente sem partir da realidade terra e povo português. Terra com povo; povo com terra. Em coordenadas geográficas e humanas muito próprias, de terra e povo quais são. Isto parece verdade trivialíssima, no entanto sacrificam-na os economismos abstractos, os planeamentos feitos no espaço, pouco cientes das realidades geográficas, geo-humanas e psicológicas, os espiritualismos que se esquecem das carências materiais impostas pelo crescimento demográfico e a época, ou aliados aos teóricos do tipo anterior.

O erro dos “seareiros”, dos anti-românticos e “desmistificadores” obcecados – tem estado em postular que os elementos sentimentais, míticos e místicos são incompatíveis com a solução prática dos problemas, o progresso e a eficiência técnicas. Daí pressupõem uma alternativa que em abstracto parece válida (como eles dizem) mas que os factos em especial os culminantes, invalidam estrondosamente, provando que essas duas ordens de elementos são associáveis e até susceptíveis de se reforçarem uma à outra para obtenção de resultados excepcionais.

A história portuguesa abona essa aliança, tanto nos períodos áureos como nos de abatimento colectivo, para lhe fugir. Os calculistas de 1640, porque inteligentes, nada opuseram à imagem do Bandarra no altar da Sé de Lisboa.

Escandalosa demonstração de quanto a vivência ideal é convergente com a técnica, a ciência e a economia e do que podem alcançar correlatos na paz como na guerra, acaba de ser dada ao mundo pelos israelitas, desmentindo com evidências lancinantes o racionalismo de certos filósofos e a pseudo-ciência de historiadores em voga. Sem essa vivência ideal uma nação tão pequena de modo algum poderia ter conseguido os seus prodigiosos êxitos, quer no campo educativo, quer no económico e militar. Tampouco lograria aguentar-se na borda de água de um solo exíguo e sáfaro entre os árabes hostis.

(...) Nada justifica subordinarmos o nosso espírito, a nossa concepção de vida, o nosso estilo e gostos a figurinos estrangeiros, tampouco a orgânica escolar ou o planeamento económico, cujas bases outras não podem ser que as impostas pelas condições naturais e humanas do meio que nos é próprio.»

Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).



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Fortaleza de Sagres


"As nações marítimas aprenderam na escola náutica de Portugal, cuja ciência constituiu a base fundamental da expansão da hegemonia da Europa"


Estão as descobertas plasticamente retratadas nos painéis de Nuno Gonçalves. São os marinheiros, os pescadores, os negociantes, os capitães do mar, os nobres, os letrados, os frades, o alto clero, os cavaleiros: homens rudes mas de fé: de uma serenidade interior firmada na altivez das certezas: e seguros de que prosseguiam um ideal comum, que a todos pertencia e interessava, e que por isso merecia todos os sacrifícios. Do conjunto anónimo do povo emergiram os grandes navegadores, desde Vasco da Gama e Cabral até Bartolomeu Dias e Gil Eanes; e os grandes governadores, a um tempo gente de mar, de guerra e de governo, desde Francisco Almeida até João de Castro; e grandes narradores das viagens, de Álvaro Velho a Pero Vaz de Caminha; e os mártires e missionários como Frei Henrique de Coimbra; e exploradores como Raposo Tavares e Pedro Teixeira. Foi um multiplicar de homens de primeira grandeza, proeminentes ou obscuros, e cujo recrutamento só foi possível porque a massa estava impregnada dos mesmos sentimentos e do mesmo espírito e da mesma decisão. Mas no imenso fresco humano das navegações e descobertas, entre todas as demais, avultam três figuras: o infante de Sagres, D. João II, Afonso de Albuquerque.

Painéis de Nuno Gonçalves


Painel dos Frades

Painel dos Pescadores

Painel do Infante

Painel do Arcebispo

Painel dos Cavaleiros

Painel da Relíquia

Dos retratos do infante D. Henrique, em particular de Nuno Gonçalves, projecta-se alguém que dá uma sensação de força interior, de fé, de disciplina, de dureza austera, de entrega a um ideal, de subordinação a valores que transcendem cada homem. São toscos e ásperos os seus traços; é desapiedada e fria a sua expressão; tem a serenidade tranquila daqueles a quem nada surpreende ou excita e que, a todo o instante, estão preparados para enfrentar riscos supremos e recomeçar se preciso; e o seu olhar tem a melancolia dos que se alheiam de tudo para prosseguirem sonhos e certezas íntimas que não são abaladas por nenhum poder ou argumento. Era a sua estatura de «compassada medida e de largos e fortes membros»; e fazia um «pouco temeroso» aquele que se abeirava da sua pessoa pela primeira vez. Disponha de energia física aparentemente ilimitada; tinha a coragem dos que são indiferentes perante a morte, porque os domina a humildade da fé, como perante a vida, porque esta só lhes vale para serviço de ideias e princípios; e foi temerário no comando da primeira vaga que se lançou ao assalto de Ceuta. Inspirava sossego o seu vulto, e tinha «a palavra mansa e constante no que dizia». Em trabalhos e crises, era «mui sofrido e senhor de si»; e encarava com equanimidade a fortuna vária. Estava sempre embrenhado em «pensamentos de altas empresas e obras de generoso ânimo» [1]; trabalhava sem descanso e em muitas noites os seus olhos não conheciam sono. Foi um cruzado pela sua fé e ardor militar; e um homem de Estado pela sua frieza e sentido prático. Não suportava a agitação da corte, nem as intrigas dos grandes; e sem ser sábio preocupava-se com a ciência e a cultura como elementos do bem comum e do acrescentamento do reino. Afirmam o seu interesse pelos estudos os que mais privaram da sua existência; e dedicava-se aos problemas da astronomia, da cartografia, das artes de navegar. Reuniu em torno de si e teve a seu serviço mestres cartógrafos e peritos de marear: alemães, genoveses, flamengos, venezianos, etíopes, índios, mouros. No seu retiro algarvio foi organizador, impulsionador, animador: tinha uma política e um plano: e foi executor sistemático de uma e outro. Vivia para o seu desígnio, e apoiava-o nos interesses da nação e no sentimento colectivo: as pequenas discussões dos senhores da corte e as teses e dúvidas dos cépticos e prudentes não o afectavam. Sofria pelo cativeiro do seu irmão em Marrocos: mas recomendava o seu sacrifício supremo: porque era impensável subordinar razões de Estado e interesses nacionais à vida de um homem. Tratava-se de prosseguir sistematicamente uma empresa: nenhum desvio era lícito consentir; e nada poderia ficar dependente do acaso ou de uma vicissitude. Alcançar o Oriente e a Índia era o objectivo último: para disseminar a Cristandade, para firmar o reino em apoios exteriores, para investigar as rotas marítimas e novas terras para fazer comércio. Este foi o instinto de um povo consciente: o Infante de Sagres foi escravo dessa consciência: e por mandato deste desbravou e iniciou os caminhos de uma realização nacional preparada de longe [2].


Montante do Infante D. Henrique







Por 1460 morria Henrique de Sagres, e deixava atrás de si os fundamentos de uma obra nacional. Cinco anos antes, em 1455, nascia o que viria a ser o Príncipe Perfeito. D. João II não foi perfeito no sentido se não ter sombras nem limitações: mas no sentido de ser uma personalidade completa e um acabado homem de Estado. Não era alto, mas de meia estatura, e seco; e inspirava tanta «gravidade e autoridade que entre todos era logo conhecido por rei» [3]. Era inflexível na justiça, e não distinguia entre categorias; e não permitia que a vontade ou desejos pessoais interferissem na aplicação daquela. Constituía-se em fonte exclusiva da lei: mas uma vez formulada, cumpria-a tão perfeitamente como se fosse seu escravo. Proibiu os luxos e alguns jogos. Era vagaroso no despacho dos negócios do Estado, para os considerar com minúcia; mas era metódico e pontual nos conselhos com os seus desembargadores, vedores e escrivães. Seu prestígio e fama passaram fronteiras; no reino era acatado e temido; e só com o olhar emendava qualquer pessoa que falava ou estava como não devia. Era calmo, seguro e constante; não fazia promessas mas não faltava às que fizesse, por maiores que fossem; e só com a sua palavra iam os homens tão contentes como se já levassem em mão os despachos feitos [4]. Quando havia de se vestir ricamente, para festas, prevenia os que deviam assistir para que trajassem por igual. Convidava para a sua mesa grandes letrados, e teólogos, e homens de mérito, e seguia atento as suas boas práticas e até disputas [Garcia de Resende, ob. cit., prólogo]. Foi muito católico, e temente a Deus, e afirmava-se que fazia as suas orações com os joelhos nus em terra. Sentia-se encarnação do Estado, da coroa, do reino e dos interesses do povo. Tinha viva e rápida memória; era claro e profundo o seu juízo; e nas suas falas e sentenças havia verdade, agudeza e autoridade. Possuía largueza de ânimo, e concebia empresas estranhas e em grande [5]. Não se dava por íntimo a ninguém: «foi o príncipe do seu tempo mais privado de privados» [6]. Não aceitava favores, e ficou sempre livre de qualquer repreensão: sendo «Senhor de Senhores nunca quis ser, nem parecer, servo dos servidores» [7]. Para João II, era suprema a razão de Estado: por maior que fosse a mágoa causada, tudo havia que subordinar àquela. Surpreendeu o duque de Bragança, Fernando, em conspiração contra a coroa e em práticas e inteligência com Castela. Foi implacável na sentença: suplício em cadafalso público na cidade de Évora. Proibiu que na corte alguém se vestisse de negro; mas o rei, por ser senhor dos duques e chefe de Estado, tomou luto; e por três dias não saiu, vestindo «sempre de panos de lã pretos, e de capuzes cerrados» [8]. Em obediência às razões de Estado, por suas mãos apunhalou o duque de Viseu, e declarou perante testemunhas e em auto os motivos do seu acto. Na altura logo mandou prender outros conjurados: o bispo de Évora; D. Guterres Coutinho, comendador de Sesimbra; e D. Fernando de Meneses e Pêro de Albuquerque, e D. Pedro de Ataíde, e outros: e todos em pouco faleciam de morte que, segundo fama, não fora natural mas artificial [9]. Alguns conspiradores – conde de Penamacor e elementos da nobreza – passaram a Castela e outros reinos; e aí intrigaram e agiram contra o seu rei e o seu país. Era de grandeza a visão do monarca, e apoiava-a com uma vontade inquebrantável. Em seu filho, o príncipe Afonso, via o detentor de uma monarquia imensa, que abrangesse as Espanhas e parte de Itália, e ainda os reinos longínquos de Prestes João. Um acidente – queda de um cavalo quando corria montes – matou o príncipe Afonso. Sentiu-se o rei esmagado pela dor, e viu desfeitos os seus maiores sonhos.  Mas não se lhe entibiou o ânimo, nem a vontade. A empresa do ultramar prosseguiu com o mesmo vigor; e tão ocupado e solícito o trazia este negócio que não lhe repousava o espírito [10]. Os reinos de Prestes João podiam e deviam ser conquistados. Mandou fundar o Castelo de S. Jorge da Mina; e impulsionou sem descanso a actividade descobridora. Diogo Cão achou o Zaire e o reino do Congo; foram alcançadas as paragens de Benim; e Bartolomeu Dias atingiu e passou o Cabo das Tormentas ou da Boa Esperança. Por terra, os portugueses chegavam ao Cairo, à Etiópia, a Adem. Era a realização do plano do infante, era a florescência de tudo para quanto o reino se preparara: depois de Ceuta, pouco mais de setenta anos haviam decorrido. E era já vasto o espaço português: para sanar dúvida, e acaso evitar atritos com Castela, D. João II assentou em Tordesilhas o que pertencia a uma coroa e à outra. Seguro por este lado, e continuando as ligações com Inglaterra, propôs-se o rei cometer o passo final: a Índia. Ainda iniciou a preparação da frota. Mas por 1495, na idade de 40 anos somente e após catorze de reinado apenas, morreu D. João II. Fora depositário da coroa, o fiel zelador dos interesses do reino, a encarnação viva do Estado, e o realizador de um pensamento histórico caracterizadamente português.

Reino do Preste João

Estava reservado a um contemporâneo do rei, e que lhe sobreviveu por duas décadas, construir o império das Índias: Afonso de Albuquerque. Era este de boa estirpe, filho de senhores de terras e neto de Atouguias. Frequentou a corte, e acompanhou de perto o Príncipe Perfeito, de quem foi estribeiro-mor. Decerto recolheu de João II a noção de Estado e do seu serviço, e os princípios de governo em que o bem comum e o interesse do reino constituíam prioridade absoluta. Não era Albuquerque homem de imponente estatura física; mas tinha aspecto grave; e com a idade dava-lhe «grande veneração» a sua barba branca. Era por vezes de graças, e até de motejos; mas ficava triste quando se indignava. «Falava e escrevia muito bem, ajudado de algumas letras latinas que tinha» [11]. Possuía sagacidade, agudeza, e era ardiloso nos negócios, conformando as coisas ao seu propósito; e para todos, consoante a estação de cada um, tinha um provérbio ou máxima a dizer. Dispunha de vontade e ânimo indomáveis, e dos seus subordinados exigia esforço até à exaustão. Foi para a Índia ao serviço de D. Manuel, oito anos depois de Vasco da Gama ali haver aportado, e quando já se havia organizado aquela em Vice-Reino, sendo D. Francisco de Almeida o seu primeiro Vice- Rei. Era o ano de 1505, e Albuquerque, embarcado na armada de Tristão da Cunha, chegava às paragens do Oriente por 1506 [12]. Durante uma longa década ali trabalhou e combateu, e não tornaria ao reino. Revelou-se então Albuquerque em toda a sua plenitude de homem de pensamento e de acção. A uma concepção imperial do Estado, e a uma arguta visão de política em grande, aliou qualidades de estratega e de guerreiro. Concebeu um império índico; soube identificar, por aquele instinto divinatório que nos homens de génio supre a experiência ou o conhecimento, quais as posições geográficas fundamentais em que a construção política desse império tinha de se apoiar; e na sua conquista pôs um ânimo resoluto, uma bravura aguerrida, uma obstinação sem quebra, que arrastavam todos ao combate e destruíam no inimigo a vontade de lutar e resistir. Estava longe e só; eram precárias e deficientes as cartas daquelas paragens, e vagas e muitas vezes enganadoras as informações locais; e eram escassos os meios materiais e militares ao seu dispor. Sem embargo, Albuquerque compreendeu que, para navegar livremente no Índico e manter-se na Índia, era indispensável assenhorear-se dos estreitos de Ormuz e de Adem, dominar posições-chave na costa indostânica, assegurar-se de Ceilão, garantir a Malásia. Era inteiramente novo na época este quadro estratégico; e tão rigoroso que, não obstante as modificações nas técnicas de guerra, continuou a ser verdadeiro pelos séculos. Foram quase incessantes os combates travados; e ao mesmo tempo não eram descuradas as providências de governo. De Goa fez Albuquerque o centro irradiador de portuguesismo, de ocidente e de Cristianismo. Procurou erguer sempre bem alto o prestígio do seu rei; e para serviço deste, e em obediência à razão de Estado, era implacável na punição de faltas. Mas os rigores de Albuquerque, e a sua pertinácia e fé, se construíam um império, não estavam à medida dos homens. A autoridade, a fama, a figura legendária eram corroídas na corte de Lisboa; e foi nesta que se demoliu passo a passo a construção de Albuquerque. Este não quis «mentir ao seu rei»; e sofreu por isso intrigas da corte. Retirou o monarca a confiança ao capitão-mor; para o substituir enviou à Índia o seu mais tenaz inimigo, Lopo Soares de Albergaria; e com este foram Diogo Pereira e Diogo Mendes, que Albuquerque havia feito regressar sob prisão ao reino. Ficou então o guerreiro terrível «de mal com os homens por amor del-rei, e de mal com el-rei por amor dos homens». E «com soluços de morte» escreveu a derradeira carta ao seu rei. Albuquerque teve a percepção de que ia começar o derruir da sua obra: viu inutilizados dez anos de trabalhos: e rasgado por homens sem estatura o sonho que erguera. Por uma inconfidência de um capitão de Lopo Soares soube «coisas que para a sua saúde foram veneno, e para a quietação do seu espírito muito danosas; porque, vendo ele os que el-rei ordenara para o governo da Índia, tão contrários ao que ele entendia que deviam ser, e do que lhe tinha escrito, foram para ele uma abreviação para a morte» [13]. Por isso, na sua última carta para Lisboa, não disse mais uma palavra: nem procurou exaltar a sua obra passada, nem fez sugestões quanto ao futuro, nem mostrou ressaibo de ofensa ou ressentimento. Cingiu-se a recomendar ao soberano o seu filho Brás de Albuquerque; e «quanto às coisas da Índia, ela falará por si e por mim» [14]. Por uma madrugada de Dezembro, à entrada da barra de Goa que era sua, e depois de praticar com Frei Domingos, «das coisas de sua alma», morreu Afonso de Albuquerque. Completara 63 anos. Estava-se em 1513.


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Naquele ano cumpria o reino quase quatro séculos de existência. Na sua crónica avultavam já homens que marcam gerações porque fazem épocas. De Afonso Henriques a Nuno Álvares, de Álvaro Pais a João das Regras, de D. Dinis a D. João II, de Henrique de Sagres a Afonso de Albuquerque fora longo, doloroso e heróico o caminho andado: e também fora consciente, ordenado e sistemático: eram quatro séculos de experiência que dá a maturidade. Mas sem aquelas figuras não seria o reino o que era em 1515.

(In Franco Nogueira, As Crises e os Homens, Livraria Civilização Editora, 2.ª edição, 2000, pp. 72-78).



[1] Citações extraídas do retrato do Infante de Sagres, por João de Barros. Décadas da Ásia, I, págs 65 e 66, ed. de 1945.

[2] Apoiados nos cronistas e fontes históricas, são unânimes neste sentido os especialistas portugueses, desde Jaime Cortezão a Damião Peres. Duarte Leite, porém, embora reconheça o Infante como alta figura na luzida falange das celebridades universais, põe limites à sua acção e nega a Escola de Sagres. História dos Descobrimentos, I, 96 e segs. No mesmo sentido, Magalhães Godinho, Ensaios, II, 67 e segs. Em sentido contrário, Armando Cortesão, História da Cartografia Portuguesa, II, 1971.

[3] Garcia de Resende, Crónica de D. João II, prólogo.

[4] Garcia de Resende, ob. citada, prólogo.

[5] Rui de Pina, Crónica de D. João II, cap. LXXXII.

[6] Rui de Pina, ob. cit., cap. LXXXII.

[7] Rui de Pina, Crónica de D. João II, cap. LXXXII.

[8] Rui de Pina, ob. citada, cap. XIV.

[9] Rui de Pina, ob. citada, cap. XVIII.

[10] João de Barros, Décadas, I, cap. XII.

[11] João de Barros, Décadas, II, cap. VIII.

[12] Apenas em 1510, com a partida de Francisco de Almeida, foi Albuquerque feito governador da Índia. Nunca chegou a ser nomeado Vice-Rei.

[13] João de Barros, Décadas, II, pág. 460.

[14] João de Barros, Décadas, II, pág. 460; D. Jerónimo Osório, Da vida e feitos de el-rei D. Manuel, II, pág. 171; Manuel de Faria e Sousa, Ásia Portuguesa, I, pág. 356.

Continua


Monumento a Afonso de Albuquerque (Belém).

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