quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Juízo Final (vi)

Entrevista a Franco Nogueira




25 de Abril de 1974


Por último, seguem-se alguns trechos de uma entrevista com Nuno Rogeiro, em Londres. Foi publicada no jornal O Dia, em 12 e 13 de Agosto de 1981.

- Alguém disse um dia que as revoluções que falham têm significado penal, e as que triunfam têm significado constitucional. Assim, a legitimidade revolucionária depende sempre do seu êxito. Nesta perspectiva, perguntar-lhe-ia se o movimento militar do 25 de Abril (e não vamos aqui discutir se se tratou ou não de uma revolução), para além do sucesso na contagem das baionetas, assentou a sua «legitimidade» em outros factores. Veio o 25 de Abril defender uma escala determinada de valores positivos, ou tratou-se apenas de um movimento hedonista?

- Há um ditado que sob aspecto jocoso encerra uma profunda verdade, e é produto de grande sabedoria: em política nada há mais bem sucedido do que o sucesso. Os que triunfam passam a ter a força, que se converte em razão, e esta por seu turno converte-se em direito. Mas a sua pergunta, se bem a interpreto, implica ou supõe dois aspectos. Primeiro: havia antes do 25 de Abril um estado de coisas que impusesse uma vasta reforma e que, no caso de esta não ser feita, poderia levar a uma situação revolucionária? Segundo: o movimento do 25 de Abril obedeceu a uma ideologia, possuía uma doutrina, actuou em nome de um projecto político de interesse nacional para bem dos Portugueses? Por mim, responderia afirmativamente à primeira pergunta e negativamente à segunda. Se quiser, explicar-me-ei em breves palavras. Ao cabo de quase cinquenta anos, era inevitável que o regime saído do 28 de Maio de 1926, apresentasse graves defeitos, e tinha-os na verdade. Muito havia a manter; muito havia a melhorar e a ampliar; mas muito havia também a corrigir, a substituir, a inovar, a rasgar. Para agravar este último aspecto, fora nos últimos anos destruída a mística nacional; a sociedade portuguesa, desprovida de mecanismos de defesa, entregou-se à sua própria destruição, ludibriada e enredada num logro colossal. A política, a sociologia, a história, dizem-nos que uma revolução, como meio de reforma, representa sempre para o povo um atraso, um regresso de dez ou quinze anos. Receio que para Portugal esse período seja muito mais longo. E isto nos conduz ao segundo plano da sua pergunta: que espécie de revolução foi a nossa? Será ainda cedo para uma resposta cabal, ou pelo menos eu não a sei dar. Mas julgo justo e exacto afirmar: a revolução começou por ter um âmbito muito restrito quanto à sua origem e objectivos, que se diriam quase disciplinares e de grupo; dado o estado em que se encontrava a sociedade portuguesa, todavia, forças políticas e ideológicas exteriores logo compreenderam a oportunidade que podiam aproveitar ou provocar, e tomaram em mão um processo que foi rapidamente conduzido sem que a massa do povo português se apercebesse do que se passava.






- Apesar das redes de silêncio, já se vão conhecendo melhor os subterrâneos cadaverosos da descolonização. Quais lhe parecem ter sido os motivos da celeridade do processo? E quais as implicações externas e geoestratégicas do mesmo?

- A celeridade do processo obedeceu a motivos que parecem hoje bem claros. Fundamentalmente, tratava-se de abandonar o Ultramar «antes» que o povo português da metrópole e até mesmo sectores dos habitantes ultramarinos se apercebessem dos objectivos reais que se prosseguiam, e antes que as potências ocidentais pudessem acaso concertar-se e dizer uma palavra na matéria. Quando a realidade surgiu à luz do dia, já tudo estava consumado, e de forma irrevogável. Quanto às implicações externas e geoestratégicas, foram da mais alta importância e gravidade. De repente, o equilíbrio político e militar em todo o Atlântico Sul, e em grande parte do Índico, foi alterado, como o foi na África Central e Austral. Acha pouco? Repare: porque Portugal estava em África, todo o Atlântico era um lago ocidental e estava seguro; esse Atlântico constituía um «veículo» de comunicação e ajuda entre as duas margens; hoje, sobretudo ao sul, poderá bem ser uma barreira. Há mais: toda a rota marítima pelo Cabo da Boa Esperança estava segura para todos, e hoje há aí uma ameaça para todos. E ainda: estava seguro o acesso ao Índico e à Costa oriental africana. Por fim: com a segurança dos oceanos circundantes, vinha naturalmente a segurança dos territórios banhados por esses mares e os seus «hinterlands». E já não falo dos portos, dos aeroportos, dos caminhos-de-ferro, das matérias-primas, etc. Pode afirmar-se que a revolução portuguesa, e a maneira por que foi abandonado o Ultramar, veio modificar os dados estratégicos mundiais e alterar os planos dos Estados-Maiores das grandes potências e, para algumas, torná-los mais difíceis. Note: nada disto tem que ver com o fenómeno da independência das antigas províncias ultramarinas, nem me estou a colocar num terreno de expressão imperial ou colonialista. São planos inteiramente diversos. Podia conceber-se aquela independência, em termos reais, sem que por esse facto devessem os territórios cair sob a alçada de poderosas esferas de influência, e sem que fossem usados para objectivos que no fundo não são os desses territórios e dos seus povos. Se ao menos houvessem sido asseguradas a continuação do progresso económico, a aceleração do desenvolvimento material e espiritual, a crescente afirmação da personalidade colectiva, a felicidade, em suma, desses países, então teríamos aspectos positivos no que se fez. Mas é isto que se fez? Infelizmente, não parece. E o que sucede agora, ante os nossos olhos, é que parece constituir verdadeiro imperialismo.

À direita: os três implicados na destruição do Ultramar Português: Álvaro Cunhal, Melo Antunes e Mário Soares.


- Ainda neste ponto, o que pensa sobre as várias teorias de intervenção estrangeira na «descolonização»? Portugal saiu de África sob o chicote das grandes potências ou foi simplesmente vencido porque desistiu de lutar?

- No plano dos factos e da história, penso que a intervenção estrangeira, ou as tentativas dessa intervenção, são bem anteriores à «descolonização» . Procuravam intervir as grandes potências, no desejo de conquistar posições e as boas graças do «terceito mundo»; procuravam intervir as grandes forças económicas e financeiras, na busca de mercados e matérias-primas; procuravam interferir forças ideológicas, em obediência a ideias messiânicas, que reciprocamente se excluíam; e procuravam intervir as Nações Unidas, como reflexo e caixa de ressonância de todas aquelas forças e correntes. Perante a barreira da resistência portuguesa, foram essas forças desistindo a pouco e pouco; e, por virtude da natureza das coisas e da própria evolução do mundo, muitos círculos internacionais começaram mesmo a compreender as virtualidades da política portuguesa, para além dos simples interesses portugueses. Foi a viragem. Por 1970, já estava geralmente aceite que não se podia nem devia contar com uma alteração profunda da política africana de Portugal, em termos radicais e bruscos. Depois, houve um lento escorregar, um deslizar que abalou aquela convicção. Eu não creio, todavia, que na altura em que foi feita a descolonização estivesse ainda em acção, pelo menos de forma brutal como antes, o «chicote» das grandes potências. Isto equivale a dizer que fomos vencidos porque desistimos, nos entregámos, nos rendemos, deixámos de «querer» como povo.

(...) - Em «As crises e os Homens», que foi livro de cabeceira de gerações descontentes, o senhor exprimiu a tese do divórcio entre a dinâmica popular, patriótica e abnegada, e a estagnação das elites, geralmente antinacionais e desvitalizantes. Quer aplicar essa linha de raciocínio, gerada pelo 25 de Abril?

- Essa pergunta também implicaria um volume ou um longo ensaio para que se pudesse dar uma resposta razoavelmente satisfatória. Numa síntese muito tosca, penso que é exacto dizer o seguinte: ao longo da História de Portugal, em ocasiões de grave crise, algumas elites portuguesas, sem embargo da sua cultura e do seu talento, apresentam-se sem autonomia mental, sem coragem intelectual, sem independência criadora, sem julgamento crítico, sem verdades interiores próprias, sem ligação com o sistema de segredos e de certezas colectivas que constitui uma nação; por este motivo, são facilmente influenciáveis, impressionáveis, volúveis; por esse mesmo motivo, inconscientemente, insensivelmente, ficam à mercê das ideias alheias, dos princípios estrangeiros, dos interesses de estrangeiros, das novas verdades que os outros lançam pelo mundo para cobertura dos seus objectivos; finalmente, sempre pelo mesmo motivo, passam a ter do país e dos seus interesses uma visão, um conceito, uma ideia, uma concepção que os leva a alinhar com o estrangeiro contra Portugal. Não é que sejam deliberadamente, premeditadamente antinacionais, ou que o sejam até por interesse ou lucro próprio. Há casos desses, decerto, como ficou patente, por exemplo, nas crises de 1380, 1580, 1820. Mas não é a esses que me refiro. Refiro-me àqueles que o fazem por convicção, sinceramente, embora erradamente. Houve excepções eminentes, decerto, e de homens de todos os quadrantes. Mas eu desejaria ficar por aqui nesta matéria. (in Juízo Final, pp. 36-38 e 43).






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