segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A Arte de Continuar Português (ii)

Escrito por António Quadros












O nariz de Cleópatra


A primeira revolta de carácter emancipalista contra a administração portuguesa em África efectuou-se em Luanda, em Março de 1961. Em Dezembro do mesmo ano consumava-se a invasão e a ocupação de Goa, Damão e Diu, pondo termo à presença quatro vezes secular de Portugal na Índia.

Principiava um repto e desencadeava-se uma guerra em diversas frentes, para que no fim de contas o país não estava moralmente preparado.

Tal se tornava já patente, mesmo antes da doença de Salazar e da sua sucessão por Marcello Caetano.

É que, quanto ao nível das cúpulas políticas e militares, se continuava incansavelmente, mas com gradual perda de convicção, a propor o nacionalismo e o tradicionalismo, e enquanto o conceito unitário na nação pluri-racial e pluri-continental figurava ainda como doutrina oficial do Estado português e era defendida tanto no discurso interno do poder como nos areópagos internacionais, ia-se dando ao mesmo tempo a revolução invisível da Universidade docente e discente, atraída por outras formas de pensamento e outras ideologias; das novas gerações convertendo-se ao marxismo comunista, ao socialismo interancionalista ou ao catolicismo progressista de simpatias marxistas; de muitos jovens oficiais das Forças Armadas saturados da guerra e trabalhados pela ideia em crescendo da descolonização e pelos exemplos da França, da Inglaterra e da Bélgica; dos próprios colonos portugueses descontentes ou bloqueados pelos impecilhos burocráticos da autocracia lisboeta; e enfim dos movimentos emancipalistas crescentemente doutrinados, subsidiados e armados pelas potências que almejavam acima de tudo a substituição do poder português em Àfrica pelo seu próprio domínio ideológico ou pela sua influência económica irrestrita.

Circula nalguns meios a tese de que a guerra de África não estava de modo nenhum perdida, antes pelo contrário; de que a Marcello Caetano só faltaram a firmeza e por outro lado a humildade para continuar a política de Salazar; enfim de que, não fora a inabilidade marcellista para resolver o problema administrativo que originou o Movimento dos Capitães, este não teria crescido ao ponto de se tornar um Movimento revolucionário e de desencadear os golpes de 16 de Março e depois do 25 de Abril.

É a anedota do nariz de Cleópatra!


Os homens velhos e os homens novos


Na realidade, eram cada vez menos e estavam cada vez mais velhos os incondicionais da visão salazarista; a classe política já não podia reflectir o pensamento nacionalista e católico-integrista que presidira à ascensão política do grupo de Coimbra, do Estado Novo e do seu Chefe; após os anos cinquenta, os governos isolavam-se cada vez mais dentro de um país em evolução e aliás tinham de abrir-se à nova vaga dos tecnocratas e dos europeístas que não atacavam frontalmente a política ultramarina, mas também não tinham por ela qualquer entusiasmo ou mesmo interesse, se é que não a criticavam ou minavam nos bastidores.


Face à evolução geral do país e do mundo, que não podia ser ignorada, Salazar recusou-se a rever o projecto nacional, não só por temer que mudanças substanciais viessem a significar politicamente cedências, provas de fraqueza, acelerações de um processo finalmente dissolutório, mas também porque as autoridades e as ditaduras nunca podem renovar-se por dentro.

Tão-pouco o seu sucessor, que era mais novo e que teve nas mãos a oportunidade, foi capaz de apresentar um novo projecto convincente e coerente, refugiando-se nas alterações semânticas e num discurso só aparentemente renovador.

A história de uma nação faz-se com os homens que tem e com as ideias, as crenças e os mitos que os dirigem espiritualmente.

O 25 de Abril foi ao nível político a consequência necessária da erosão do regime, cujos erros, mormente após os anos cinquenta, se agravaram e repercutiram em ondas desde o centro lisboeta às periferias ultramarinas.

Mas, sendo o nível filosófico e cultural sempre mais profundo do que o político, importa mostrar como todos os vícios ideológicos de que o Movimento das Forças Armadas, estava contaminado, como todas as tendências negativas de que o sector «progressista» das nossas elites estava possuído, como todas as aspirações mitológico-utopistas e totalitárias que cresciam cancerigenamente na sociedade portuguesa, dando ao golpe do 25 de Abril, a breve trecho, um cariz revolucionário marxista-leninista à procura de uma nova ditadura (do proletariado), um carácter desagregante e dissolvente, uma total irresponsabilidade, senão uma criminosa intenção na abordagem de problemas tão vitais para o país como o do Ultramar e o da economia, foram além de tudo o mais a expressão do fracasso educativo, cultural e político do sistema anterior.

Fracasso de um ensino universitário (estrangeirado e escolástico), que não soube preparar e defender intelectualmente as elites portuguesas, deixando-as por conseguinte passivas e permeáveis perante o fascínio de ideologias «científicas» que chegavam até nós aureoladas pela fortíssima capa onírica dos mitos da Idade do Oiro e do Paraíso Perdido, ou perante o prestígio de teorias e doutrinas recebidas de fora sem crítica, sem reelaboração e sem recriação pessoal, sem sequer um repensá-las de raiz, a partir da nossa estrutura cultural e do nosso país real.

Deu-se pois a progressiva substituição dos homens velhos de um regime em degenerescência, pelos seus homens novos, novos em idade, mas infelizmente formados ou deformados por esta Universidade descaracterizadora, entre de um lado as imagens estereotipadas de um nacionalismo gasto e «carreirista», e de outro lado as fórmulas por contraste mais atraentes de um internacionalismo generalista ou de um ideologismo totalitário que, progressistas mas extrínsecos e imitativos, senão dogmáticos, não podiam, como depois se viu claramente, nem fomentar patriotismo, nem garantir a defesa dos interesses portugueses, nem descobrir uma solução de continuidade nacional renovada que, para além das transformações necessárias, não nos afastasse da nossa identidade como povo original, livre e soberano (in ob. cit., pp. 24-26).






Continua


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