terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A Arte de Continuar Português (iii)

Escrito por António Quadros





Oliveira Salazar



Da plutocracia ao marxismo


Nestas condições, não admira que o ideário de Salazar e do Estado Novo, apesar de continuamente reafirmado com mais demagogia do que sinceridade, se tenha pouco a pouco tornado como numa carapaça formal que encobria as verdadeiras forças em ascensão: a plutocracia e o marxismo.

Na luta mortal que entre si travaram, o Estado Novo desgastado da fase final, com o seu corporativismo desacreditado, com os seus velhos cabos cansados, com o seu frouxo evolucionismo semântico-marcellista, com a sua tímida cobertura dos grupos de liberais e de tecnocratas da nova geração, pouco mais foi de que a testemunha impotente e estática. Por seu turno a plutocracia portuguesa mostrou-se de uma inferioridade total, acabando por justificar-se a sua derrota em todos os terrenos: especulando e acumulando capitais, não soubera realizar uma política de desenvolvimento e uma política de justiça, deste modo contribuindo para o fortalecimento dos sectores adversos.

Depois dos anos sessenta, as ideologias socialistas e marxistas levavam vantagem doutrinária e psicológica sobre o vazio que se ia fazendo do outro lado, alastrando por conseguinte a sua influência nas mesmas instituições que quarenta anos antes tinham sido os pilares da Revolução Nacional de 28 de Maio: a Universidade, a Igreja e as Forças Armadas.


Da Situação à Oposição


É oportuno lembrar que, ao declarar-se esta crise nacional de então incalculáveis consequências, apenas o pequeno grupo de pensadores e de escritores que, assumindo a herança intelectual de Bruno, de Pascoaes, de Leonardo Coimbra e da «Renascença Portuguesa», se reunia em volta de revistas como «Acto», «57», ou «Espiral», teve plena consciência do problema e procurou lutar contra o caminho degenerativo e desagregante para que o país estava a ser levado pela obstinação cega de uns e pela irresponsabilidade ou pela militância internacionalista dos outros. Um dia se compreenderá como os colóquios sobre «O Ideal Português», que organizou na Casa da Imprensa em 1961, constituíram um marco histórico.

Encontrávamo-nos então situados, do ponto de vista político, entre uma situação imobilista e uma oposição progressista. E um dos aspectos mais lamentáveis da tragédia, era que nem uma nem outra manifestava a mínima capacidade criativa, imaginativa e intelectual. A Situação, já sem outra doutrina que não fosse a da conservação do «statu quo», ia fazendo todas as concessões possíveis até ao ponto de não ver destruído o seu aparelho; e a oposição unida pelo ódio ao capitalismo e à ditadura, não queria mais do que derrubar, entregando-se completamente ao pronto-a-vestir das ideologias importadas da União Soviética.

As elites portuguesas cedo tinham aderido naturalmente à Oposição em nome da liberdade, o que era certo e justo; mas deixaram-se manipular, não souberam desenvolver um pensamento político adequado à realidade nacional e cederam demais. Poucos meses após o 25 de Abril, com excepção dos escritores militantemente obedientes às ordens do seu Partido, estavam outra vez na Oposição!

Deste fenómeno dá, por exemplo, testemunho o poeta Miguel Torga, no seu «Diário XII», com data de 15 de Julho de 1974: «Tem sido do caixão à cova!» Quatro dias depois: «A pátria assiste pasmada, com a epiderme coberta de chavões, a esta orgia verbal, a ver cada um apenas ocupado em conferir o seu radicalismo pelo do vizinho. Quem se desvia do rigor sumário da cartilha fica logo excomungado». E, em 19 de Março de 1975 (o gonçalvismo instalara-se no poder uma semana antes): «Apetece fugir, deixar de vez esta pátria que mais ninguém sabe reconhecer gramatical, cívica e humanamente...»



Miguel Torga




Tudo o que de catastrófico sucedeu depois do 25 de Abril era contudo de prever, porque não se pode melhorar qualitativamente um país por uma revolução com cravos mas sem ideias, ou apenas (o que é o mesmo) com ideias feitas, convencionais, com ideias que não nasceram livre e espontaneamente do próprio povo, no sentido lato da palavra, isto é, que não promanaram da sua língua e da sua cultura, da sua história, e da sua problemática concreta, da criatividade e da actividade mental dos seus filósofos, escritores e artistas.

Não sendo possível a acção política sem pensamento político e não havendo entre nós, ao nível das classes dominantes e da universidade, nem pensamento político, nem pensamento filosófico capaz de o fundamentar, o resultado inevitável tinha de ser, ou a entrega do país e quem pensasse por ele (o que veio a suceder logo após o 28 de Setembro com o acesso de Vasco Gonçalves e com o domínio crescente do aparelho comunista) ou a proliferação de um pseudo-pensamento de cartilha, que, através dos diversos activismos grande ou pequeno-partidários, outra coisa não tinha ao seu alcance fazer do que tentar reproduzir no Portugal de hoje os seus diversos cenários de eleição: a Rússia dos anos 20, a França dos anos 30, a Jugoslávia dos anos 40, a Argélia dos anos 50, a China dos anos 60, etc., etc., etc., ou seja, anacronismos dentro de anatopismos, que não podem levar a perte nenhuma.

A própria «descolonização» que viemos a fazer para mal dos nossos pecados não foi mais do que um ersatz trafulha dos cenários das descolonizações inglesa ou francesa, com a diferença de que a Inglaterra ou a França souberam construir, ao mesmo tempo, a Commonwealth e a Union Française, enquanto nós tudo abandonámos sem contrapartida e sem honra, permitindo o êxodo vergonhoso de um milhão de portugueses metropolitanos, africanos ou timorenses.

Eis porque a grande batalha, para esse pequeno grupo isolado e marginalizado dentro da sociedade portuguesa, reduzido a editar revistas depressa falidas ou a publicar livros à sua própria custa, tinha sido a do pensamento, muito mais do que a do activismo político, que lhe aparecia viciada de origem. Que os portugueses aprendessem ou reaprendessem a pensar por si próprios, que conhecessem e assumissem a filosofia implícita e explícita na sua língua e na sua cultura, que formulassem os seus próprios ideais e projectos desde a raiz e não de fora para dentro, que fossem actuais e progressivos, sim, mas no acordo com a sua personalidade e com os valores da sua estrutura cultural, eis algumas das linhas mestras de um movimento, aliás plurifacetado, a que ficam principalmente ligados, quer os discípulos de Leonardo Coimbra, nomeadamente Álvaro Ribeiro e José Marinho, ou ainda (com certa distância) Agostinho da Silva, Sant'Anna Dionísio ou Delfim Santos, quer personalidades afins como a de Cunha Leão, quer pensadores das duas gerações que se lhes seguiram, como Orlando Vitorino, Afonso Botelho, António Telmo, Francisco Sottomayor, Avelino Abrantes, Dalila Pereira da Costa, António Braz Teixeira, Fernando Morgado, Fernando Sylvan ou Pinharanda Gomes, sem esquecer o núcleo brasileiro a que se ligaram José Santiago Naud, Almir Brunetti, Pedro Agostinho, etc...



Agostinho da Silva




Tratando-se contudo de um grupo vário e heterodoxo que pela sua própria natureza não podia ter quaisquer apoios políticos nem audiência pública num meio hostil, a realidade da vida nacional no período subsequente era basicamente a de uma Administração cada vez mais esclerosada e descrente, de uma Universidade cada vez mais estrangeirada e marxizante, de uma Igreja cada vez menos autêntica e vigorosa nos seus princípios ético-políticos e de umas Forças Armadas incomodadas com o prolongamento da guerra e infiltradas de elementos comunistas de obediência soviética a vários escalões da hierarquia, como é hoje do domínio público.

De modo que se tornara irreal e sem substância o poder que em 24 de Abril de 1974 regia a política portuguesa na metrópole e nos territórios ultramarinos; era agora um poder apenas administrativo, burocrático e policial, e por isso exterior e ilusório, tão ilusório quanto fora o poder monárquico em 4 de Outubro de 1910 ou o poder democrático em 27 de Maio de 1926.

Os acontecimentos não foram influenciados pelo nariz de Cleópatra. O 25 de Abril tinha de suceder, mais tarde ou mais cedo, pois se tornara inevitável pela força das coisas.

O 25 de Abril era o que estava destinado a este grande-pequeno-povo, traído pela sua classe política e pelas elites intelectuais dominantes. Um 25 de Abril com todas as marcas da doença nacional, reflectindo a erosão e as contradições que herdava do passado recente (ob. cit., pp. 26-30).

Continua


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