terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Juízo Final (v)

Entrevista a Franco Nogueira




Batalha de Aljubarrota


Seguem-se alguns trechos de «uma entrevista também feita em Londres, para o jornal O Tempo, pelo jornalista Alves Fernandes, no ano de 1979».

- Como encara a presente conjuntura portuguesa e vê a sua evolução próxima futura?

- Por estar longe, não estou bem informado, mas reajo como qualquer português, ao que suponho: com a maior amargura e apreensão. Julgo que Portugal não atravessou, depois de 1580, uma crise mais grave. Talvez a de hoje seja ainda mais séria porque os nossos recursos são agora infinitamente mais pobres. Do ponto de vista económico e financeiro, penso haver, unanimidade em classificar a situação de catastrófica. É hoje tão pesada a dívida externa, e desbarataram-se tantos haveres nacionais que bem se pode afirmar ter o país perdido a sua autonomia de decisão. Quantas gerações serão precisas para pagar o que devemos e reabilitar o país? Do ponto de vista político, e tanto quanto posso acompanhar a situação, julgo que atingimos um caos que nos avilta. O debate político e partidário não se processa em torno de ideias ou de princípios, mas em torno de homens ou de grupos; e a luta que estes travam orienta-se por ambições pessoais, por despeito ou ressentimento, por intrigas, até por birras. Trata-se de saber como ultrapassar o rival ou adversário em astúcia, em capacidade de manobra, desferindo golpes de surpresa, negociando combinações, procurando alianças que se fazem ou desfazem, e tudo isto com base na clientela, no compadrio e não no desejo de resolver problemas nacionais. Hoje [refere-se a 1978/1979], a filiação num partido não se determina por afinidades ideológicas ou de princípios, mas pelo oportunismo, ou pela esperança de auferir benefícios, geralmente de ordem material - um lugar, um negócio, uma comissão, qualquer coisa. Outros filiaram-se de boa-fé e sentem-se traídos. Por isso creio ser imensa a multidão dos desiludidos, dos frustrados. E o mais grave é ainda a indiferença, o alheamento, a apatia em que o povo português parece mergulhado: não acredita nos homens, não acredita nas instituições, dir-se-ia duvidar de si próprio. Por isso todo o esforço é havido por inútil, nada parece valer a pena, nada parece ser possível tentar. Para quê trabalhar se não há incentivos? Para quê tomar iniciativas se estas são cerceadas? Para quê tentar fazer mais e melhor se a recompensa é idêntica à do que fizer menos e pior? Além de uma crise económica e de uma crise política, há assim uma profunda crise moral. Quanto à evolução, próxima ou futura, julgo que ninguém, seriamente e com sentido de responsabilidade, pode fazer previsões. Tudo pode acontecer. E tudo a meu ver depende da ressurreição da consciência nacional. Mas não podemos ou devemos perder a esperança.

- Portugal está ou não a caminhar para uma colectivização da sociedade portuguesa?


Mário Soares e Álvaro Cunhal


Suavemente? Eu diria, ao contrário, que essa colectivização se processa velozmente. E desastrosamente para o país, acrescentarei. Em harmonia com um plano concebido de longa data, realizaram-se as nacionalizações de Março de 1975; foi um golpe apressado e atrabiliário que era preciso vibrar na economia portuguesa, para a destruir, antes da institucionalização da revolução. E bem vê: os actos políticos e os sistemas têm a sua lógica interna e a sua dinâmica própria. De posse dos meios facultados por aquelas nacionalizações, os mesmos passaram a ser utilizados, não em favor da Nação mas em favor da oligarquia política, e não para investimentos ou expansão de empresas; depois, as empresas, tanto públicas como privadas, passaram a ser administradas de harmonia com critérios políticos, e os créditos passaram a cobrir os deficits da má exploração. Sobre uma produção e uma produtividade que baixaram, foi aumentada a carga fiscal; mas como a matéria colectável vai decrescendo, uma incidência tributária altíssima vai produzindo cada vez menos receitas. Quero dizer, pagam-se cada vez mais impostos sobre rendimentos cada vez menores em termos reais. Daqui resulta o atrofiamento de toda a actividade, de toda a iniciativa. Põe-se como limite ao trabalho não a capacidade de cada um mas o que vale a pena trabalhar, isto é, para além de certo limite não importa trabalhar porque tudo será absorvido pelo imposto. Há assim um incitamento à ociosidade. Em Portugal, o imposto não tem hoje [refere-se a 1978/1979] um carácter social e de justiça correctiva, mas de extorsão aflitiva de recursos. E é a esta colectivização que tem sido conduzido o país: é a socialização pela miséria. Pode dizer-se com verdade, e com tristeza, que Portugal é um país do quarto mundo. Mais dramático do que tudo, é isto: da parte de alguns, são estes os resultados que precisamente se pretendem»

(...) - Além da alternativa do Mercado Comum, poder-se-iam encarar outros aspectos, outras soluções. Por exemplo: futuro arranjo da Península; Portugal a desempenhar um papel na esfera internacional (designadamente na forma de envio de tropas para África ou outras regiões, ao serviço da ONU e da países estrangeiros); Portugal protectorado ou colónia de qualquer potência. Que pensa destas hipóteses, aliás já levantadas por alguns sectores?

Margarida Marante e Freitas do Amaral (1.º à esq.), Francisco Pinto Balsemão, Mário Soares e Álvaro Cunhal (1982).


- Veja até onde a revolução de Abril e o desânimo e o desespero já conduziram os Portugueses! Certamente faz-me estas perguntas como reflexo de interrogações que andam no ar em Portugal. Pergunto-lhe eu: antes do 25 de Abril sentiria necessidade de formular tais interrogações? Penso bem que não. Mas não sei o que hei-de entender por arranjo peninsular. Se se trata de boas relações de vizinhança, dentro de absoluto respeito mútuo, ou de cooperação independente no que for de interesse recíproco, creio que nisso todos estaremos de acordo. Se se trata de qualquer outra coisa, não vejo que construção política ou económica se possa fazer que respeite e garanta a independência e a soberania de Portugal. Quererá referir-se ao iberismo? Quererá aludir às teses de federação ou integração peninsular? Mas todas essas teses são simplesmente suicidas. Não sejamos ingénuos. Não acreditemos que o iberismo seja solução para qualquer problema português, salvo se quisermos perder a independência. Quanto aos outros aspectos que toca, parece-me o seguinte. Desempenharemos no mundo o papel que um povo de dez milhões, diferenciado e dotado de vontade própria, quiser desempenhar, condicionado decerto pelos seus recursos, mas aproveitando-os até ao limite máximo. Isto exclui a ideia de qualquer hipótese de protectorado ou colónia. Eu sei, nós sabemos que Portugal é um país em crise. Mas então essa crise vai ao ponto de se haver esgotado todo o patriotismo, todo o brio, todo o amor-próprio nacional? Já não há corações portugueses? A juventude já não vibra com Portugal? Somos mercenários de interesses alheios? Julgo que isso repugna à sensibilidade do Povo Português. Para os Portugueses não há sucedâneo ou alternativa para a independência.

- Tem-se pretendido definir a política enterna portuguesa anterior ao «25 de Abril» como uma sucessão de malogros e infelicidades em relação aos verdadeiros interesses nacionais. Parece-lhe justa a asserção e merecido o anátema que se tem lançado sobre a diplomacia portuguesa anterior à revolução?

- Repito-lhe a observação que fiz quanto à pergunta anterior: uma política julga-se em função dos objectivos que se propõe e dos resultados que alcança. Toda a política implica riscos e sacrifícios. E uma política é boa quando os benefícios obtidos são superiores aos prejuízos sofridos. Ora qual era o objectivo da política externa portuguesa antes do 25 de Abril? Em síntese grosseira, era manter o Ultramar na Nação Portuguesa; evitar a formação de uma coligação de forças hostis que fosse invencível; obter o maior número possível de auxílios que nos ajudassem a defender-nos. Eu penso que os resultados foram alcançados. Ou não foram? a ideia dos malogros, das infelicidades, e do anátema que é agora lançado tem outras razões, que se filiam no que parece ser uma velha e desgraçada ideia, e que é esta: só está certo e corresponde aos interesses portugueses o que tiver o aplauso dos estrangeiros. E não se vê que os outros apenas nos aplaudem quando fazemos o que convém aos seus interesses; porque dos nossos interesses ninguém cuida, se nós não o fizermos. Por que se critica a política externa naquele período? Porque suscitava a hostilidade de muitos círculos internacionais, porque éramos condenados pelas Nações Unidas, porque tínhamos relações difíceis com países importantes, etc. Isto é verdade. Mas o problema parece dever pôr-se de outra forma. E a pergunta que importa fazer penso ser esta: era mais importante para Portugal manter o Ultramar ou evitar a condenação das Nações Unidas? Bem vê: a ONU, inteiramente manipulada pelas grandes forças imperiais, exigia a entrega do Ultramar, sem transigências e negociações; não satisfazer essa exigência implicava a condenação sob a forma de uma resolução aprovada por grande maioria; e portanto não era viável ao mesmo tempo manter o Ultramar e obter o aplauso da ONU. Entre o aplauso de Nova Iorque e a integridade da Nação, que se deveria escolher? O caso de Goa demonstra precisamente que não havia então uma terceira alternativa: a União Indiana queria Goa - e o conflito apenas se evitava entregando Goa. Da parte das elites portuguesas, perante situações semelhantes, surge logo a ideia de transigir, de negociar, de recorrer a habilidades e expedientes, com o intuito de mistificar os outros, como se os outros fossem ingénuos. Tudo foi oferecido à União Indiana: acordos de fronteiras, acordos de segurança, privilégios em Goa, etc. - mas o que aquela queria era Goa. Deveria ser-lhe entregue? Se o fizéssemos, de facto não haveria conflito; mas também não haveria Goa. O que não se teria dito do Governo de então se houvesse entregue Goa?! Às vezes tenho a sensação de que algumas elites portuguesas raciocinam assim: o ourives não tem o direito de exibir jóias na montra porque está a provocar o ladrão e para evitar o roubo é preferível entregar as jóias. Esta é uma imagem simplista, mas que tem muito de verdade. Então, porque uma política pode vir a falhar (repito: é da essência de qualquer política poder vir a falhar) deixa-se logo à partida de executar essa política que se considera preferível? Nenhuma política seria jamais possível se não fosse tentada. Decerto: não se deve tentar uma política sobre que tenhamos a certeza antecipada de que falhará. Era esse o caso? Evidentemente, não. Em suma, para as elites porrtuguesas apenas é boa uma política que não imponha sacrifícios, nem riscos, e que seja de resultados seguros. Não sei de qualquer política com essas características. Ou então parece existir às vezes uma outra ideia: conseguir ao mesmo tempo os benefícios de uma política e os benefícios da política que lhe seja contrária. O ideal teria sido, neste contexto, manter o Ultramar, não fazer sacrifícios, não haver luta, obter o aplauso de todo o mundo. Ninguém sugeriu, que eu saiba, como se conseguia esse milagre. Mas também neste caso o melhor é deixar à História o julgamento. Não vale a pena afadigar-nos: a História não se deixará iludir. Só direi mais que Portugal era atacado, condenado, porque na defesa dos seus interesses se opunha aos de outros, e por isso era respeitado e ouvido, e acatado na solução de importantes problemas internacionais. Também o é hoje? (in Juízo Final, pp. 28-30 e 32-34).

Continua


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