Segmento de uma conferência proferida no Porto por Teixeira de Pascoaes
Euclides na Scuola di Atene, por Rafael Sanzio. «O imaginário de um povo é irredutível à precisão cronológica e à evidência matemática.» António Quadros («Portugal, Razão e Mistério. O Cálice da Última
Tule», III Volume). |
(...) O
aperfeiçoamento individual resulta do culto da Beleza ou da Poesia. A Poesia é
a flor da vida, a vida em flor, ou antes de ser fruto. O fruto é a ciência. Sim,
a ciência é um fruto; e a poesia é ciência na sua aurora, ou anunciação
esplendorosa. A filosofia dum Heraclito ou dum Platão, a aritmética dum
Pitágoras, são verdadeiros Poemas, como a geometria de Euclides é uma
verdadeira Poética. Isto que eu afirmo, exprimiu-o, diante de mim, o nosso
muito ilustre Gomes Teixeira, nesta frase lapidar: A Matemática é o esqueleto da Poesia.
Ai da vida sem
beleza! É apenas existência biológica, conservação e reprodução... O ser
humano, por isso que é ou deve ser humano, não cabe na zoologia. Mas a aranha
cabe na geometria, por que a conhece, ao tecer a teia, como qualquer Euclides.
E conhece a Fisiologia como qualquer médico. Fere a vítima no local próprio
para a imobilizar imediatamente. A ciência pertence a todos os bichos, desde as
abelhas na posse da T. S. F. aos pombos correios conhecedores das ondas
electro-magnéticas, aos morcegos criadores do radar e às andorinhas que têm um telescópio
nos olhos, como os cães uma corneta acústica nos ouvidos e ouvem os sons
infinitamente pequenos; ouvem o próprio silêncio da noite, os últimos acordes
da música celeste, que só, além dos cães, ouviu Platão... Quanto à música da
luz entende-a a cotovia. E, se Guerra Junqueiro cantou, ou, antes, rezou à luz
uma oração, digna de figurar nos Evangelhos, é que tinha uns ouvidos de
cotovia, como os tinha de mocho o Soares de Passos, quando compôs o Noivado do Sepulcro.
(...) O economista francês João Baptista
de Say declara que só as margens do Amazonas alimentariam a Europa inteira. E
todavia quem navegar no célebre rio apenas avista, nas suas margens, árvores,
macacos e begónias nascidas dos troncos apodrecidos. Os sábios que se entretêm
a desintegrar a matéria, a explorar criminosamente a sua origem, que se
dediquem à descoberta de processos de salubrisar essas regiões fecundas do
Planeta, em vez de se horrorizarem perante o aumento da população mundial! Ao princípio de Malthus que leva à apologia da guerra, peste e fome, devemos
preferir o de Moysés, que nos conduz à paz e ao trabalho: Crescei e multiplicai-vos.
O aumento e a
conservação da vida humana é o que interessa ao belo sexo, isto é, o amor e a
paz. Que era o fogo sagrado que as Vestais conservaram aceso, dia e noite? Era
o fogo do amor a irradiar a luz da vida. As mulheres são as Vestais desse fogo
sagrado... sagrado ou maldito, se atendermos à opinião do autor do Apocalipse e aos autores da bomba atómica, todos da
mesma força destruidora. Mas, para um poeta, embora no extremo da velhice, o
fogo da vida é sagrado, pois toda a cabeça de poeta é ventre de mulher! Nas mulheres
o verbo se faz carne, e nos poetas é a carne que se faz verbo. Entre elas e
eles percebe-se um parentesco fecundo e criador.
Sim, o fogo da vida é sagrado, dá calor e luz ao próprio sol, como dá flores à Primavera. Sim, vale a pena viver. Só a humana criatura pode ter consciência do Universo, e contemplar as maravilhas que o formam, desde os lírios, às estrelas, desde os pertos deslumbrantes aos longes fabulosos, lá onde tudo é possível, o próprio Deus... Um Deus, para ter autêntica existência, precisa de quem nele creia. E é preciso que Deus seja como protótipo do homem do futuro; e esse futuro já bem representado pelas mulheres que ocupam o primeiro lugar na guerra à guerra. Só da guerra à guerra poderá resultar a paz, destinada, até hoje, por trágica ironia do Destino, a ser o prólogo e o epílogo da guerra! A paz não será a guerra volvida contra si? E o mal volvido contra si é o bem. Um princípio da mecânica psíquica, a verdadeira mecânica ondulatória, consiste em cada força no sentido AB incluir um movimento no sentido BA. O sim provoca o não, e vice-versa. E somando-se dão talvez, a probabilidade. Trabalhemos a favor da paz, embora tenhamos o número 1 pacífico contra o número 2 já belicoso. Onde houver dois galos num poleiro... Ora, os homens devem ser como um só homem, e cada um a própria Humanidade. Viva a vida, e morra a morte! Eis o nosso grito. Queremos uma paz viva, e não morta, isto é, o fim da luta que leva os corpos para a cova; mas não fim da acção intelectual das almas que as renova e aperfeiçoa! A luta das ideias é divina, a dos corpos é demoníaca. Se a luta dos corpos é a morte, esse esqueleto de gadanha em punho, a ceifar o trigo ainda verde, a luta das ideias é a própria imagem da vida a semear a terra, e a da Aurora a afugentar a noite, com o seu facho esplendoroso.
(In PRO PAZ, Conferência proferida no Porto no dia 1 de Junho de 1950, na Sede da «A. F. P. P.», ao Clube Fenianos Portuenses / ortografia e pontuação do Autor).
Solar de Gatão (Casa de Pascoaes). |
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