segunda-feira, 16 de março de 2020

A Posição de Portugal perante os ataques nas Nações Unidas

Escrito por Franco Nogueira








Prelúdio


Não há margem para qualquer dúvida de que se encontra profundamente instalada uma, quase diríamos, surpreendente quão generalizada ignorância do que, na sua essência menos visível para o público ignaro, caracteriza sobremodo a Organização das Nações Unidas enquanto plataforma mundialista basicamente destinada ao concertado ataque e à subversão sistemática de toda a concepção cristã intimamente ligada à cultura greco-romana e, nessa medida, pedra angular da civilização ocidental. Ora, dito isto, não faltará seguramente por esse mundo soturno das academias bem-pensantes quem, por demais atreito a enfiar a carapuça da presumível "autoridade científica", ou a dar-se por inteiro à concomitante ostentação e bazófia das insígnias doutorais, tão logo persista em definir e consagrar a ONU sob a luz mortiça e enganosa dos chamados "direitos humanos", da "manutenção da paz" e do "progresso social", ou quando muito particularmente se empenhe em associar uma tal organização à ficção artificiosa do "desenvolvimento económico sustentável", senão mesmo ao já deveras repisado "auxílio humanitário" ante o flagelo da fome, dos desastres naturais e dos conflitos armados. Porém, uma vez sabido que Portugal se pudera efectivamente constituir, até um período relativamente recente da nossa História, como uma Nação euro-atlântica, euro-africana e euro-asiática, tal é o que fundamentalmente explica e justifica o sentido e o porquê de toda uma experimentada vivência de constante sacrifício, heróica e sustentada resistência e contra-ataque perante o terrorismo internacional, bem como ante os infindáveis ardis, iniquidades e prepotências político-diplomáticas imediatamente traduzidas num falso universalismo instigado e propagado segundo os auspícios de uma organização supranacional votada ao domínio mundial.

Eis por que agora nos cabe assim trazer à colação todo um conjunto significativo de trechos, segmentos ou fragmentos que, curialmente extraídos do sexto volume da ímpar biografia de Oliveira Salazar, redigida por Franco Nogueira, atestam, confirmam e justamente comprovam o internacionalismo perpetrado e veiculado por uma organização largamente responsável por todo um rol de perfídias, atropelos e mal dissimuladas ingerências em matéria de soberania alheia, nomeadamente no que a Portugal especialmente respeita. Note-se, contudo, que a transcrição aqui operada de numerosos passos relativos aos ataques insidiosos na ONU contra a existência una, pluricontinental e multirracial de Portugal - e a que paralelamente não escapam outros factores não menos incisivos e assaz comprometedores tais como o necessariamente atinente ao avanço do progressismo nos meios católicos e estudantis -, não traduz decerto o intento de exaurir toda a incrível densidade de um assunto merecedor da mais lata e estreme consideração, mas tão-só aferir da sua razão de ser até hoje obnubilada pelo sistema oligárquico dominante. Enfim, tudo isso de alguma forma ademais se explica e clarifica tomando agora como ponto de incontornável e ponderada reflexão o que em contexto próprio mais importa nas pertinentes e límpidas palavras de Franco Nogueira:

«Dentro do regime, é data de marca: em 27 de Abril de 1968 acabam-se quarenta anos sobre o dia em que Oliveira Salazar, ao tomar pela segunda vez o encargo das Finanças, entrou definitivamente para o governo. Quatro décadas atrás, enquanto discutia os termos da sua colaboração, escrevia ao seu amigo Dinis da Fonseca: "Jogo tudo por tudo, e exijo as condições de máxima liberdade de acção, de escolha e de direcção". Aposta numa carta só, e ganha. Depois, no acto de posse, não tergiversa ao proclamar: "sei muito bem o que quero e para onde vou". Mas agora, corrido tempo tão duro e longo, caberá perguntar se sente que ainda pode fazer a mesma afirmação. Foi áspera a estrada, e tumultuosa, e a erosão dos homens e das coisas tem diluído, se não alisado, as pegadas e obliterado os marcos deixados. Quantos recordam do levantamento financeiro e económico do país? Quem avalia a ressurreição da consciência nacional, a reforma do Estado, e o revigoramento da independência portuguesa? Acaso há quem se recorde e saiba medir os perigos afrontados hora a hora durante os nove anos da guerra de Espanha e da Segunda Guerra Mundial? E quem está apto a encarar numa perspectiva da História a defesa e a resistência do Ultramar? Fugaz sempre é a memória dos homens e dos povos para o que seja positivo, e que lhes parece fácil; e isso tem-no por natural e quase espontâneo; e subsistem e vivem mais as lembranças dos erros, das injustiças, das sombras. E assim, ao espírito dos homens de hoje, acodem sobretudo as faltas cometidas, as insuficiências sofridas, as ofensas feitas, as injúrias não reparadas, as liberdades políticas restringidas, a censura do que é havido por obra-prima, os talentos não reconhecidos a uns, os méritos não aproveitados em outros. De tudo está Oliveira Salazar consciente, e não se acanha de afirmar que já não se entende com isto, nem com as pessoas: é um ser que está para além das coisas e dos outros homens de superfície.» (Franco Nogueira, «Salazar. O Último Combate - 1964-1970», VI, Livraria Civilização Editora, 1985, p. 339).




A Posição de Portugal perante os ataques nas Nações Unidas


« - Todos sabem que Portugal sem as províncias ultramarinas tem vida difícil e de problemática recuperação. Com o dr. Salazar, e a sua intransigência política nacionalista, era completamente impossível o domínio da África Austral. Salazar era temido pelas grandes potências, pela sua superior visão dos problemas mundiais. Só fomentando uma mudança de regime seria possível vencer o nacionalismo português.

(…) Hoje, queiram ou não, o mundo ocidental já entendeu que a política do dr. Salazar estava certa. O maior derrotado, para além da infeliz Nação Lusitana, foi o Ocidente!»

Pierre de Villemarest («Autópsia do "25 de Abril"»).



«(…) desce Salazar ao terreiro do momento político. É perturbada a época que se vive, porque se romperam os equilíbrios sociais e aqueles por que se norteavam as relações entre Estados. Hitler prometia a paz para mil anos; perdeu; e a promessa é agora reiterada pela ONU, que não consegue cumpri-la, e no mundo quase não há lugar sem guerra ou conflito. Apesar da técnica, alastra a pobreza; repetem-se sem descanso os apelos à democracia, à liberdade e à igualdade, à soberania do povo, à omnipotência justiceira e criadora do voto; mas por toda a parte se conclui que após milénios o homem não sabe nem pode governar-se sem autoridade e justiça; e da trilogia revolucionária de 1789 até a fraternidade - "que parecia realizável na sua plenitude" - tem sido "sacrificada ao egoísmo dos homens e ao materialismo da vida". Por outro lado, criou-se a ideia de que a economia deve ou pode dirigir a política, e comandá-la: pensa-se que o desenvolvimento económico começa pela industrialização, e que todos os povos a podem atingir em grau igual; que são ilimitados os créditos ou capitais disponíveis; que uma economia não tem de basear-se no trabalho ou na técnica própria, mas na generosidade alheia; e está provado que tudo isto é erro. Se a economia tende a dirigir a política indispensável ao governo dos povos, e não sendo a técnica em si mesma uma política, tem de entender-se que a política deve definir prioridades e a técnica cingir-se a ensinar como se podem conseguir. De outro modo, o homem transforma-se numa engrenagem da própria técnica. "Tem de salvar-se o homem da tentação do abismo". De tudo resulta uma outra crise: a do direito internacional. Alargou-se a comunidade de nações a países sem preparação; e as Nações Unidas têm agravado a situação. E hoje o princípio é: a lei internacional é para cada Estado a que serve o seu interesse, sem respeito pelo direito alheio.





Neste clima, não se pode esquecer a "África em fogo". Aí, é completo o caos: não confiam nos Árabes os da África Negra; estes, por seu turno, não se entendem entre si; e alguns pretendem uma revolução africana não apenas para conquista da independência mas que leve à adopção de uma política sustentada pelo bloco comunista. Como o comunismo não pode ser implantado na África Negra, no estado actual, o apoio soviético "representará sobretudo a substituição das posições ocidentais" e "um perigo para a independência" daquele continente; e por tudo isso tem sido estimulado um racismo negro que, por ser antibranco e não representando desagravo ou desforço, é também uma operação económica pelo enfraquecimento que a expulsão do branco traz às economias locais que colaboram com o Ocidente. E Portugal em África? Elementos subversivos vindos do Tanganica romperam em Moçambique, tentando repetir o que outros fizeram na Guiné e em Angola; mas não puderam, ao menos com intensidade comparável, "porque nos encontraram preparados e atentos". Também como noutros casos, é achado legítimo o auxílio de outros países ao terrorismo; em compensação, vai sendo aceite pelas potências a ideia de defesa contra ataques protegidos pelos países de onde partem. É "dentro deste quadro que havemos de defender os territórios nacionais". É pena que sejam gastos anualmente com a defesa três milhões e meio de contos, e os milhares que as províncias despendem, quando poderiam ser aplicados em obras públicas e fomento. Serão mal empregadas estas importâncias? "O problema não pode pôr-se-nos assim, mas só em face da imperiosidade do dever político e das possibilidades nacionais. O cumprimento do dever não tem de ser contabilizado; as possibilidades são as do nosso trabalho que, se tiver de ser mais penoso e longo, o será sem hesitações". Decerto o inimigo instila em espíritos fracos um veneno subtil, afirmando que estes problemas não têm solução militar, mas só política; e que o prolongamento da luta, além de ruinoso, é inútil. Mas o terrorismo não é explosão de um sentimento nacional, que os portugueses procurem abafar; constitui agressão instigada por estranhos; e por isso, "a tal solução política, se não prevê a desintegração nacional (que todos fingem repelir), não se encontra em nós próprios mas nos países vizinhos", que têm o dever de cessar os ataques. E Oliveira Salazar pergunta: "Vamos em quatro anos de luta, e ganhou-se alguma coisa com o dinheiro do povo, o sangue dos soldados, as lágrimas das mães? Pois atrevo-me a responder que sim". Ganhou-se no plano internacional, pois se reconhece hoje que Portugal, além de defender um direito seu, se bate também pelo Ocidente; e ganhou-se no plano africano, porque se apontou ao continente negro um certo número de soluções para problemas que os dirigentes não sabem como resolver, além de se haver estabelecido melhor a realidade das províncias portuguesas. "Eis o ganho positivo desta batalha em que - os portugueses europeus e africanos - combatemos sem espectáculo e sem alianças, orgulhosamente sós". (Esta expressão "orgulhosamente sós" logo se transformou num estribilho ou bordão político, invocado por uns como título de nobreza e coragem nacional, por outros como indicativo de isolamento perante o mundo. Mas a expressão não queria dizer que Portugal estivesse só, isolado, sem ajudas. Queria dizer que Portugal estava só na interpretação que dava ao quadro africano e mundial; e às conclusões políticas que tirava)».

Idem, ibidem, pp. 6-8.


«"Um povo que toma, diante de si mesmo e à face dos imperativos da sua história, a decisão viril de resistir, porque sabe que precisa de resistir para sobreviver, há-de tirar desta mesma decisão as forças necessárias para enfrentar as dificuldades". Milhares e milhares de homens que nas fileiras se arriscaram já nos mares e na selva, e jogaram a vida pela Pátria, "viram no Ultramar projectada a Nação na sua verdadeira grandeza". E o chefe do governo pergunta: "que podem significar para estes homens umas oposições que conspiram com o comunismo em Paris ou em Argel para lhe entregar Portugal, ou aquelas, mais moderadas embora, que se limitam a ver se podem conquistar o poder, sabendo todos, pela imprecisão da sua linguagem, que perder a batalha aqui ou lá é tudo a mesma coisa? E não estaremos nós à altura dos que se batem não só por eles e por nós mas pela justiça que nos assiste e pelo bem dos povos a que nos devotamos?" Quando a União Indiana se apossou de Goa, todos no mundo concluíram que se havia apoderado de ricas minas de ferro e de um porto como não havia outro nas suas costas; mas a poucos acudiu que em Goa havia também uma alma e uma cultura indo-portuguesa; e por isso nunca houve tantos portugueses e tanto patriotismo num território que a hipocrisia alheia diz liberto da opressão portuguesa. "Esta lição que o mundo agora colhe do nosso sofrimento, não queremos que levianamente a tire dos outros territórios que constituem a Nação portuguesa". E por isso importa conhecer bem "as razões da nossa luta nacional". Daqui a necessidade imperiosa de uma doutrinação que os governos e a União Nacional têm descurado.»

Idem, ibidem, pp. 9-10.


«Ao outro dia, 27 de Abril, cumprem-se trinta e sete anos ininterruptos sobre a entrada de Oliveira Salazar para o governo. Na manhã daquele dia, e enviado por Ploncard D'Assac, recebe o texto preparado por Saint-Paulien sobre a entrevista de há semanas, e que este destina à Revue des Deux Mondes. Quer Salazar alguma alteração? Não. Que disse o chefe do governo ao jornalista francês? Sintetiza ideias e conceitos há muito expressos e repisados: fala-se muito do Ocidente mas são os próprios ocidentais que o estão a destruir, e a minar os fundamentos da civilização cristã; a África em fogo constitui o mais grave dos males; perante a demissão ocidental, Portugal mantém a Europa na África; Goa, libertada pela União Indiana com a anuência do mundo, é hoje uma ruína abandonada, e a isso chama-se progresso; em África, com as independências prematuras, verifica-se a morte na economia, no comércio, na vida social; e o socialismo africano é um "ultracolonialismo" baseado na espoliação, no aniquilamento dos meios de trabalho e das empresas. E percorrido este texto, Salazar dedica-se a um dia normal de trabalho.»

Idem, ibidem, p. 36.









«Mas as atenções da opinião pública portuguesa, e as do mundo, convergem para Nova Iorque por outro motivo: em 4 de Outubro de 1965, Paulo VI, chegado nessa madrugada, discursa perante a Assembleia Geral das Nações Unidas. Que diz o papa? Afirma que traz à ONU uma saudação especial do Concílio, e que fala como homem e irmão independente, detentor de uma soberania minúscula; pretende estabelecer um colóquio com os homens através da ONU, que os povos olham no desejo de uma coexistência pacífica que garanta a sua personalidade internacional; na vida das nações devem prevalecer a razão, a justiça, o direito, a negociação e jamais a força, a violência, a guerra, o ludíbrio; e foi sábia a ONU em abrir as suas portas aos povos jovens, e nisso está o génio da instituição. Continua o pontífice: na ordem temporal, as Nações Unidas representam o que na ordem espiritual representa a Igreja, no duplo sentido de que ambas são únicas e universais e fazem iguais os povos e os homens ainda que o não sejam: os perigos e os conflitos têm sido produto de uma política de predomínio e de prestígio, do colonialismo, do egoísmo, e por isso apela para que os homens nunca mais - mas nunca mais - lutem entre si; este é objectivo e forma a glória da ONU, que aponta à civilização moderna e à paz um caminho obrigatório; e assim o organismo constitui uma "aula magna" da paz e os delegados são os "arquitectos que construíram a paz", num prenúncio de autoridade mundial. E o Santo Padre conclui: como linhas de acção futura têm de prevalecer o desarmamento e o desenvolvimento económico que, sem limitar a natalidade, permitiriam que "todos fossem convivas no banquete da vida": e para tanto há que repensar o homem, com fé em Deus, ainda que seja o Deus desconhecido de quem fala S. Paulo.

Pelo mundo, em muitos círculos há entusiasmo, arrebatamento: fora um "grande dia" para a ONU, o papa pronunciara um "grande discurso". Outros não julgam que as palavras pontifícias frisem com as circunstâncias, nem lhe descobrem ideia-força que influencie ou modifique acontecimentos. Que pensa Salazar em Lisboa? Diz o chefe do governo: "Não duvido de que nos próximos meses a ONU procure alimentar-se do prestígio trazido à instituição pelas teses defendidas no discurso e se apresente ao mundo aureolada de todos os ditirambos generosamente espargidos por toda a oração". É cáustico: "a ONU e sua missão receberam a bênção papal". Mas não crê que, apesar de tudo, tais "intentos e apelos tenham força bastante e possibilidade de converter-se em realidades operantes". Que riscos antevê, todavia? Afigura-se-lhe indispensável que os países mais responsáveis não permitam à ONU enveredar por caminhos que, não consolidando a paz, ainda "criem conflitos e difundam guerras"; e sobretudo impõe-se "dissuadir a instituição da ideia de criar forças próprias e de intervir na solução de conflitos nacionais ou internos, como os movimentos subversivos, com a alegação de constituírem perigos para a paz". E a alusão do Santo Padre ao colonialismo? (Segundo António de Faria apurara em Roma, a palavra não figurava no texto elaborado no Vaticano, e terá sido introduzida para satisfazer pressões afro-asiáticas). Comenta Oliveira Salazar: "Embora o colonialismo possa revestir diversas formas e a palavra assuma os mais diversos significados, a inserção do termo na passagem em que se encontra permite aos povos africanos a exploração de que a nós se dirige e traduz condenação da nossa política ultramarina. Bem vistas as coisas, é à obra colonial que se deve a paz em África no último século e à descolonização que se devem as guerras actuais e as que nos aguardam no tempo presente e nos próximos". Depois, o chefe do governo é irónico: "Certamente o Santo Padre não pretendeu apresentar tese histórica mais do que duvidosa, mas aproveitar circunstâncias para perfilhar teses agradáveis aos povos africanos na sequência da política que temos acompanhado e que infelizmente temos sentido afirmar-se contra os nossos interesses e até os interesses da Igreja". E para Portugal que resultados antevê Salazar? "Neste ponto, temos de lamentar que o discurso tenha vindo interpor-se como obstáculo, embora vencível, à lenta evolução que se estava verificando de compreensão mais realista dos acontecimentos dos últimos vinte anos, com as suas naturais e benéficas consequências". Conclui o chefe do governo. "Quanto ao mais, escusado será termos grandes receios e Deus providebit".

Para além da excitação que por um momento varre as Nações Unidas, e mesmo Nova Iorque, permanecem os problemas, os interesses, os conflitos entre as potências: e neste particular não surte efeito a visita papal. Justamente, por virtude desta visita e para exporem os seus pontos de vista perante a Assembleia Geral, encontram-se na ONU os ministros dos Estrangeiros de quase todos os países. Está presente o de Portugal, que se dirige à Assembleia uma semana depois da partida do papa. Após uma análise das frustrações da ONU, renova a oferta de cooperação com os países africanos: "se não podemos concordar de momento em alguns problemas políticos, nada deve obstar a uma estreita cooperação noutros domínios". E conclui: "Não podemos comprar paz com desprezo pela lei: essa política fracassaria: e a humanidade poderia sofrer o infortúnio de ser arrastada a uma guerra mundial por uma organização destinada a defender a paz mundial. Constitui imperativo que a todos devia impor-se procurar evitar que as Nações Unidas se tornem uma organização traída"».

Idem, ibidem, pp. 74-77.


«Em Conselho de Ministros, a 21 de Outubro de 1965, o governo aprecia a situação internacional, em particular os últimos acontecimentos que tocam a Portugal de perto: discurso do papa na Assembleia Geral, a Rodésia, a sessão da ONU em curso. Oliveira Salazar tem na sua frente um exemplar da revista Match com uma larga fotografia de Paulo VI quando pronunciava a sua mensagem à Assembleia das Nações Unidas. E o chefe do governo circula a fotografia pelos ministros, que a passam de mão em mão, e diz: "Isto é horroroso"».

Idem, ibidem, p. 83.








«Justamente quando se realizam as eleições gerais em Portugal, reúne-se enfim em Nova Iorque, por empenho dos afro-asiáticos e após sucessivos adiamentos provocados pela questão de Caxemira, o Conselho de Segurança das Nações Unidas. De novo os países africanos - sempre representados pelos ministros dos Estrangeiros da Libéria, Tunísia, Serra Leoa e Madagáscar - se aprestam a atacar a política ultramarina do governo de Lisboa. Comparece por Portugal o seu ministro dos Estrangeiros. Sentem-se nesta altura possessos de cólera os Estados de África. Com efeito, havendo submetido ao plenário da Assembleia um projecto de resolução que intima o Reino Unido a usar a força das armas contra a Rodésia se esta declarar unilateralmente a independência, os afro-asiáticos viram esse projecto aprovado, decerto, mas com os votos contrários de vinte e sete países, destacando-se entre estes os Estados Unidos, o Canadá, os escandinavos, alguns latino-americanos. Portugal figurou entre os que se pronunciaram contra o projecto. De importância real é o voto norte-americano por significar que, se posto o problema ao Conselho de Segurança, os Estados Unidos oporiam aí o seu veto ao envio de um contingente militar para subjugar a Rodésia. Avança desde logo o ministro liberiano com o libelo de uso, e é seguido pelos da Tunísia, Madagáscar e Serra Leoa. São os acusadores de rotina: repressão sanguinária, opressão dos povos, câmaras de tortura, milhões de perseguidos, massacres, genocídio: e, como resultado de tudo, o governo de Lisboa constitui uma ameaça à paz e à segurança internacionais. São sublinhadas algumas alegações: Portugal recusa-se a cooperar com as Nações Unidas, Portugal revelara absoluta intransigência nas conversas luso-africanas de Outubro de 1963, Portugal tem uma aliança ímpia com a Rodésia e a África do Sul: e está sendo auxiliado, militar e financeiramente, pela NATO, pelos Estados Unidos, pela Alemanha, pela França, por outros países ainda. E os países africanos exigem que Portugal obedeça às resoluções aprovadas em dez anos consecutivos, e que cessem os auxílios, e que lhe sejam aplicadas sanções económicas e financeiras. Há que pôr termo a uma "política diabólica". Mas a tudo responde no mesmo tom o delegado português: repudia todas as alegações, salienta o paradoxo de os governos africanos acusarem com fundamento em dados falsos que depois, quando a oportunidade lhes é oferecida, se furtam a investigar; recorda uma longa lista de propostas, sugestões, convites, formulados por Lisboa, e que foram sistematicamente recusados; cita vasta documentação comprovativa da ajuda estrangeira ao terrorismo; invoca testemunhos favoráveis de nomes autorizados, de fama mundial, que visitaram Angola e Moçambique; exige que o Conselho aponte os verdadeiros agressores; e propõe que o Conselho designe uma subcomissão, que deverá incluir um membro português e outro africano, para investigar dentro e fora das fronteiras portuguesas as ameaças à paz. E depois, no dia 9 de Novembro de 1965, generaliza-se o debate. Não tolera a Jordânia que Portugal escape à lei geral; a Costa do Marfim lamenta que não haja na política portuguesa um "novo ponto de partida" e recorda, para que seja aplicada à África portuguesa, a apóstrofe de Catão contra Cartago; o delegado britânico, que é figura eminente no socialismo do seu país, declara-se satisfeito porque o seu governo não ajuda Portugal a prosseguir a sua política, nem fornece qualquer armamento para uso em África, pensando entretanto que seriam úteis novas conversas luso-africanas; a Malásia lembra que Portugal não cumpre o artigo 73 da Carta; e por último o delegado holandês afirma que o seu governo "não aceita a constituição portuguesa", nem dá assistência militar a Portugal. Ao outro dia, 10 de Novembro, há uma réplica portuguesa: são repisados os argumentos, refutadas as alegações, e a Inglaterra e a Holanda são tratadas com sarcasmo: na realidade estes dois países em nada auxiliam Portugal porque, além do mais, Portugal não lhes solicitou o menor auxílio. Por seu turno, o delegado soviético, numa fala longa e exaustiva, acusa a NATO, e os Estados Unidos, e a Inglaterra, e outros, de apoiarem Portugal, e pede sanções políticas e económicas contra o governo de Lisboa; e a Tunísia, a Malásia e a Costa do Marfim repetem os seus argumentos anteriores. Entra-se em novo dia de debate: está-se a 11 de Novembro. São agora os Estados Unidos que negam as acusações soviéticas e se, com sobriedade, reafirmam o seu apoio à autodeterminação e o seu repúdio pelo uso da violência, também advogam novas conversas luso-africanas, na base de resoluções anteriores e da aceitação daquele princípio, com todas as opções e escolhas que o mesmo comporta; é a China que intervém para vincar aspectos positivos da obra portuguesa em África; é o Uruguai que defende o princípio de a África para os Africanos, mas considera que interessa ao Conselho e ao mundo a palavra de Portugal na matéria, e por isso aceita a proposta portuguesa de se constituir uma subcomissão. Em novo contra-ataque português, são feitas réplicas a pontos de debate, e às insinuações soviéticas.»

Idem, ibidem, pp. 92-94.


«Pelo país, entre os homens da cultura celebram-se o V centenário do nascimento de Gil Vicente e o II centenário do nascimento de Bocage. Pelo estrangeiro, para além dos governos, há homens que compreendem o papel de Portugal em África. No Rivarol, escreve Saint-Paulien: "a política ultramarina de Portugal deve ser continuada pelos seus sucessores; se o não for, Portugal desaparecerá numa agonia mais ou menos longa; e toda a tentativa de estruturação económica da África Negra se tornará absurda"».

Idem, ibidem, p. 103.


«Para além da Rodésia, outros acontecimentos anuviam uma atmosfera que se reflecte na situação rodesiana. Na Havana, Fidel Castro promove uma Conferência de Solidariedade dos povos da América Latina, da África e da Ásia, logo conhecida pela Conferência Tricontinental. De novo, em termos virulentos, são fustigados o colonialismo, o imperialismo, o neocolonialismo, o revisionismo, o oportunismo. Portugal não é esquecido, e é vítima das habituais acusações. Mas aos Estados Unidos pertence o quinhão maior: sem embargo da sua política de captação das nações afro-asiáticas, o governo de Washington foi o alvo maior e quase único das ameaças, das reivindicações, e das acusações de culpa e responsabilidade pela crise mundial. Mas a Conferência Tricontinental é importante por outra razão: pela primeira vez a América Latina aparece desligada do Ocidente e do Mundo Livre para se identificar com o Terceiro Mundo. Tenta-se assim ampliar este, ou alargar o seu conceito: não abrangeria somente raças não brancas, nem povos dependentes em regime colonial, nem países não alinhados: pretende agora englobar tudo isto e ainda povos de raiz latina, de valores ocidentais, de tradição cristã. Depois, a reunião de Havana efectua-se sob um signo genérico: o de um socialismo que se não apresenta como sistema político e económico mas como arma de ataque ao Ocidente, entendendo-se por este o conjunto de países desenvolvidos. Proclama-se uma cruzada sem quartel contra o que se classifica de imperialismo norte-americano. Concertam-se neste quadro os chefes guerrilheiros que se congregam na conferência: não só os de África e Ásia como os de toda a América Latina. E lançam-se novas fórmulas doutrinárias: "a luta armada é a arma política por excelência"; "a violência politizada é um instrumento legítimo de acção política"; e ainda outras. Paralelamente, em Lagos, capital da Nigéria, está reunida uma outra conferência, e tem por tema: como levar à Rodésia a estabilidade, a democracia, o governo da maioria. Também aí o extremismo se afirma: a Uganda e a Serra Leoa exigem a guerra. Tem-se por irrelevante que a situação, sendo pacífica, seja política, e deva excluir por isso o uso de meios militares. Participa o primeiro-ministro britânico, Harold Wilson, que se opõe com energia ao uso da violência; e se nessa atitude é apoiado pelos moderados, não deixam os extremistas de o injuriar e de o acusar de conivente com Ian Smith. Mas não se dispensa a conferência de considerar indispensável impor na Rodésia um governo de maioria negra, e isso para que a situação não deslize para uma ameaça à paz e à segurança internacionais. E algumas horas após o encerramento da reunião de Lagos, é vibrado na Nigéria um golpe dramático: é torturado e assassinado o primeiro-ministro, são assassinados outros membros do governo central e de governos regionais: e o exército toma conta do poder, instituindo uma ditadura militar, salvo na região norte, onde se organiza uma guerrilha rebelde. Pelo mundo, conclui-se que às recomendações de Lagos falta pelo menos autoridade moral.»

Idem, ibidem, pp. 115-116.









Primeiro-ministro britânico Harold Wilson



Gibraltar: lugar onde tiveram lugar as conversações entre Ian Smith e Harold Wilson entre 1966 e 1968.







«Há pouco fora o golpe de Estado na Nigéria, com a destruição das instituições democráticas e o assassinato dos chefes políticos. E agora, nestes fins de Fevereiro de 1966, há outra revolução, desta vez na República do Ghana: enquanto o presidente Kwame Nkrumah se encontra em Pequim, numa visita oficial, o seu regime é violentamente derrubado em Accra, os ministros são assassinados ou presos, e uma ditadura militar é instaurada. Nruhmah é um déspota, era sangrento o seu governo; mas criara para si o carisma dos apóstolos da liberdade, o seu nome identificara-se perante o mundo com a independência de África; e com a sua eliminação política é vibrado um golpe duro no Pan-africanismo, de que o ditador do Ghana era paladino audacioso, e por isso acarinhado nas capitais do Ocidente. (Deu-se então uma farsa política internacional. Sekou Touré, presidente guineense, declara que "oferece" a Nkrumah o cargo de "co-presidente" da Guiné. Mas cai no ridículo o gesto, que os próprios Estados Unidos classificam de "ópera cómica"). Causam regozijo na opinião pública portuguesa os acontecimentos do Ghana: desaparecera um dos mais brutais inimigos de Portugal: e está em plena crise a Organização da Unidade Africana.»

Idem, ibidem, p. 126.


«Desde 1961 que Oliveira Salazar não se dirige ao The New York Times, e agora, nesta primeira quinzena de Março de 1966, encontra-se em Lisboa o seu jornalista internacional Tad Szulc, que pretende uma entrevista com o chefe do governo. Szulc avista-se com Salazar, e submete-lhe as suas perguntas. Qual o teor global do que declara o presidente do Conselho? Traça um quadro dos quarenta anos do regime, da Revolução Nacional: "Sofremos reflexos desfavoráveis da crise mundial dos anos 30; fomos profundamente afectados pela guerra civil de Espanha, certamente mais do que nenhum outro país; não obstante a neutralidade, que pudemos manter sem prejuízo dos compromissos da Nação, fomos também sacudidos pela guerra mundial de 1939-1945, que exigiu pesados encargos para a guarda dos dispersos territórios portugueses e impôs à nossa economia e ao nosso desenvolvimento as mais graves limitações; não ficámos isentos da crise geral europeia que se seguiu à guerra e houvemos de enfrentar quase sós, pois dispensámos no primeiro ano a ajuda do Plano Marshall e só fomos depois beneficiados com auxílios irrelevantes; e quando parecia justo que nos permitissem trabalhar em paz, vimos sofrendo desde 1956 com violência crescente os ataques internacionais e mais recentemente as agressões do Ultramar, de todas conhecidas". Depois Salazar sintetiza a evolução da metrópole, e traça um quadro do progresso do ultramar. (Salazar dá a Szulc alguns números: "Nesse espaço de tempo, as receitas públicas metropolitanas subiram de 1 400 000 contos em 1926 para 4 400 000 em 1946 e para 17 000 000 em 1966; o analfabetismo, que era de quase 70%, foi anulado quanto a toda a população em idade escolar; o nível de vida triplicou; o produto nacional bruto, a preços constantes, elevou-se de 65% nos últimos dez anos; a produção industrial subiu de 9 milhões de contos em 1938 para 44 milhões em 1965, e desenvolveu-se, para só citar os últimos anos de 1959 a 1964, à taxa média de 11,7%; a produção de electricidade passou de 187 milhões de KW / hora em 1926 para 4800 milhões em 1966; expandiram-se os editoriais de livros e revistas; cresceu a circulação de jornais; e a população metropolitana aumentou de seis para cerca de 10 milhões". (…) Também faz para Szulc um sumário: "No Ultramar erradicaram-se as grandes doenças, como reconheceu, em relatório publicado após visita aos territórios, a Organização Mundial de Saúde; tem-se intensificado e ampliado a participação dos seus habitantes, todos cidadãos de pleno direito, na vida política e administrativa da Nação; fundaram-se duas Universidades; multiplicaram-se as escolas primárias; cresceu o número de liceus e de escolas técnicas; e a população conjunta de Angola e Moçambique aumentou de cerca de dois milhões e meio. A população total da Nação portuguesa, com necessidades acrescidas, ultrapassa hoje os vinte e um milhões de habitantes"). Depois, o repórter do New York Times aborda a actualidade, e apresenta toda a sorte de perguntas: em relação com a NATO? com as pressões sobre Angola, Moçambique, Guiné? qual a situação presente e futura? e a Rodésia? que relações tem com os Estados Unidos, França, Alemanha? e com os países comunistas, em particular Cuba? Responde o chefe do governo em síntese. Concebida em 1947, para uma ameaça contra uma área concreta, a NATO está ultrapassada, e por isso a maioria dos seus membros vê a aliança dar cobertura a uma política que passa ao lado dos seus interesses. Queixam-se os Estados Unidos de que são obrigados ao papel de gendarmes mundiais; pode ser-se compreensivo para essa queixa; mas assim acabaria por acontecer desde que os Estados Unidos têm abandonado e até hostilizado os seus aliados, que seriam os outros gendarmes indicados; e os Americanos não deveriam surpreender-se de que lhes seja inviável contribuir para a destruição das posições dos aliados do mundo e simultaneamente esperar destes apoio a essa política americana de defesa e expansão dos interesses próprios e destruição dos alheios, mesmo amigos. Este quadro está aliás na origem das pressões em torno de Angola, Moçambique e Guiné, a que não foi estranha a política americana praticada desde 1961. E de facto trata-se de pressões exteriores, e não de levantamentos internos, como se pretende na ONU e noutros círculos. Não se vê por que se há-de considerar garantida a cooperação portuguesa com qualquer país apenas porque esse país é ocidental; e Portugal colabora com quem está disposto a colaborar com ele. Quanto à África Austral, a política portuguesa não pretende constituir um bloco branco mas procura uma colaboração leal entre vizinhos para o bem comum; o Congo, o Malawi, a Zâmbia começam a tirar vantagens dessa política; e a mesma cordialidade existe com a Rodésia e a África do Sul. Mantém Portugal relações diplomáticas e comerciais normais com Cuba, e não deve o facto causar estranheza em Washington, que advoga e pratica uma política de estreito intercâmbio comercial e até de auxílio aos países do bloco socialista. De resto, os negócios emancipam-se dos sentimentos: não é certo que quarenta e oito horas após a conquista de Goa pela Índia, o Departamento de Estado declarava que o auxílio americano à União Indiana e as relações entre os dois países não seriam afectados? Mas Szulc formula ainda outras perguntas: qual a evolução do sistema político português? qual o desenvolvimento económico de Portugal? e está florescente a cultura portuguesa? Decerto, responde Salazar, nada há imutável, e é natural que assim seja, e não deve constituir motivo de estranheza. Não vai o povo americano adaptando sempre a sua lei fundamental? Sem dúvida o povo português saberá fazer o mesmo, com serenidade, segundo as suas próprias exigências, e sem pressões nem influências externas. Sim: a economia portuguesa continuará a expandir-se, não em torrentes caudalosas de prosperidade, engrossadas por meios artificiais, mas com uma riqueza que emane do trabalho nacional. E em matéria de cultura muito tem sido feito. Trabalhos portugueses, num Congresso de Genebra, foram premiados em terceiro lugar, logo após a União Soviética e os Estados Unidos; já houve um prémio Nobel da medicina atribuído a um português; e o Laboratório Nacional de Engenharia Civil é um autêntico exportador de cultura portuguesa para cerca de 40 países. Mas não se fez ainda bastante: "a criação espiritual é sempre e por toda a parte mais lenta e difícil que a multiplicação das riquezas materiais". (…) E a imprensa portuguesa assinala a data de 16 de Março de 1966: cumprem-se cinco anos de luta contra o terrorismo em África."








Embarque de tropas portuguesas no Niassa (1961).



Luanda (Angola).





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Justamente: e em África? No primeiro trimestre daquele ano de 1966, pode dizer-se que continua estabilizada a situação. Em Angola, mantém-se a guerrilha decerto; mas a sua área, além de exígua quanto ao território, está delimitada com clareza. Há uma faixa afectada, ao Norte, ao longo da fronteira com a República do Zaire, até ao ponto em que inflecte para o sul; e outra zona a leste, de Vila Luso para oriente, quase confinada ao extremo do saliente do Cazombo. Mesmo nessas zonas, as autoridades administrativas e as forças militares têm liberdade de itinerário, desde que assim o resolvam; as povoações e cidades fazem a sua vida normal e têm garantidas as comunicações; e em toda a restante vasta área da província há segurança, e a actividade prossegue com um ritmo que faz esquecer as zonas atingidas. Entre forças militares metropolitanas e outras recrutadas localmente (tropas negras, na sua quase totalidade), estão empenhados cerca de 60 000 homens em Angola. Está nitidamente cansada a guerrilha, dilacerada por conflitos internos, roída de facções, esmagada por um sentimento de impotência e de derrotismo. É semelhante a situação em Moçambique.






Também aqui a área afectada se cinge a uma faixa ao Norte, na fronteira com o Tanganica, ao longo do Rovuma e até ao planalto dos Macondes; e a algumas manchas dispersas do distrito de Tete, de pouco significado. Mas a delimitação da guerrilha não é tão clara como em Angola: produzem-se por vezes infiltrações isoladas para o sul, há actos esporádicos de sabotagem e violência. Nem por isso, todavia, deixam as autoridades militares e civis de praticar os itinerários necessários, quando o entendem; e nem está alterada a normalidade no resto do território. Está empenhado um efectivo de cerca de 25 000 homens. E tanto em Angola como em Moçambique, é feito o tráfego rodoviário sem inibições e circulam os comboios nos seus horários de uso, sendo raros os incidentes. E na Guiné?





Aí é diversa a situação. Dada a exiguidade do território e a extensão das fronteiras terrestres a norte e a sul, as infiltrações terroristas oscilam constantemente; e se não se fixam numa zona precisa, podem por outro lado surgir em qualquer ponto. Militarmente, por conseguinte, é mais fluido o quadro que a província apresenta, e os efectivos em acção - de 19 000 homens - são proporcionalmente muito superiores aos de Angola e Moçambique, e demonstram a complexidade da defesa. Mas do ponto de vista da metrópole, tudo entrara, no plano militar, numa sequência de rotina. De parte dos departamentos militares - ministérios do Exército e da Marinha e Secretaria de Estado da Força Aérea - estão organizados os aspectos logísticos; e a máquina funciona no ritmo necessário à sustentação de um efectivo de mais de cem mil homens em operações, em territórios dispersos e separados por milhares de quilómetros, com uma das mais extensas fronteiras militares de todos os tempos. Transportes marítimos, rendição de unidades, envio de rações, fornecimento de uniformes e artigos pessoais, efectuam-se com habitualidade; o fabrico de material de guerra indispensável está assegurado; e para o que tem de ser importado estão organizadas as correntes de abastecimento sem obstáculo de monta. Com o tempo, porém, surgem na opinião as críticas: são excessivas as despesas, a guerra poderia ser feita de forma muito mais barata se fosse coordenado o aproveitamento dos recursos; nalgumas unidades os oficiais estão instalados com luxo exagerado; há oficiais que têm sido obrigados a várias comissões de serviço no decurso destes cinco anos de luta, com prejuízo da sua vida privada; há corrupção em alguns sectores das Forças Armadas, que vendem ao público artigos fornecidos para uso militar; há proteccionismo na mobilização de oficiais milicianos, ficando isentos alguns por dinheiro ou porque pertencem a famílias influentes; e os comunicados oficiais diários emitidos pelo Departamento da Defesa ou pelo Estado-Maior-General das Forças Armadas não reflectiriam com rigor as baixas havidas. (Não era procedente esta última crítica: todas as baixas eram rigorosamente assinaladas e publicadas). Todos estes pontos, decerto, são aproveitados pelos círculos oposicionistas, e em muitos casos são deformados, e ampliados. No conjunto da vida nacional portuguesa, no entanto, não afectam na superfície o esforço de defesa.

Se no plano militar a situação se apresenta nítida, sem embargo de problemas e dificuldades, no plano da política externa a posição portuguesa atinge um grau supremo de complexidade. Com as Nações Unidas, sem dúvida, há de momento uma rotina harmoniosa. U Thant pergunta mais uma vez, e em notas sucessivas, que se propõe fazer Portugal quanto à resolução aprovada em fins de 1965. Lisboa repete sempre as suas reservas e a sua abertura a novas conversas com os países africanos, e de novo vinca essa atitude em nota de 21 de Março de 1966. Mas é no plano territorial e de relações bilaterais que a posição portuguesa frisa com a de uma grande potência. Portugal partilha de fronteiras políticas com treze países (China, Indonésia, Tanzânia, Malawi, Congo (Léopoldville), Congo (Brazzaville), Zâmbia, Rodésia, República da Guiné, Senegal, África do Sul, Suazilândia e Espanha). Nada do que se passa nesses países lhe pode ser indiferente. Estabilidade do poder político em Pequim, manutenção do presidente Sukarno na Indonésia, infiltrações extremistas na Tanzânia, continuação dos presidentes Kaunda e Banda na Zâmbia e no Malawi, evolução dos Congos, problemas internos da África do Sul, regime monárquico na Suazilândia, estado de espírito de Léopold Senghor no Senegal ou de Sekou Touré na República da Guiné, sobrevivência da Rodésia, relações cautelosas com a Espanha - são os aspectos que constituem para o governo de Lisboa preocupações de todos os dias, de todas as horas. Há que seguir, quanto àqueles países, não só a sua política interna como a sua política externa, e saber que forças ou pressões sujeitam cada um, que papel representa no jogo dessas forças, que objectivos prossegue, que interesses permanentes são os seus. Além dos países que fazem fronteiras, há todos os demais com que Portugal mantém contactos políticos. Antes de tudo, as grandes potências mundiais: à parte os gestos aparentes, que política real prosseguem os Estados Unidos e quais os seus propósitos a longo prazo? e aquelas que pertencem às coordenadas geopolíticas de Portugal, como o Vaticano e o Brasil? E os problemas são em avalanche: qual o extremo limite a que Portugal pode ir, sem que desencadeie brutalmente contra si a força militar e económica de uma grande potência? como usar uma força alheia em seu favor? que conluios ou coligações de forças em que se possa apoiar? como evitar que se formem contra Portugal essas coligações? como salvaguardar os interesses portugueses entre coligações contrárias, e caminhar entre umas e outras, ou jogar umas contra as outras? que concessões há a fazer e que concessões há a solicitar em troca? Todas estas interrogações traduzem um enredo de factores, e este é acrescido quando visto no quadro de organismos multilaterais. Então importa a Portugal avaliar a política que cada país, entre os que contam no mundo, segue nesses organismos. Quem domina a Assembleia Geral da ONU? E o Conselho de Segurança? Que interesses levam uma grande potência, como os Estados Unidos ou a Inglaterra, a votar desta ou daquela maneira perante este ou aquele problema? quantos votos de outros países pode mobilizar uma orientação definida por uma potência mundial? Para apoiar Portugal, e desde que tenham de divergir de grandes potências, até onde podem ir potências médias ou menores cujos interesses estejam ligados ou dependam dos de potências maiores? e que meios têm estas de exercer pressão sobre as potências menores? que princípios doutrinários estão envolvidos em problemas alheios e que possam afectar os princípios que escudam a política portuguesa? E estes mesmos problemas, na escala própria, surgem em outras organizações, como o Conselho da NATO, ou nas agências especializadas da ONU, ou em conferências promovidas por esta para se ocuparem de assuntos determinados (Por exemplo, conferência sobre a Lei do Mar, ou sobre o Comércio e Desenvolvimento Mundial, etc.).



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Em correspondência com toda esta complexidade, ressalta para Portugal uma contrapartida: poucos problemas se discutem e se resolvem no oceano Atlântico, na África Central e Austral, e no Índico Sul sem a voz de Portugal: e a sua intervenção é efectiva, e decisiva algumas vezes. Portugal tem em armas o maior exército do continente africano ao sul do Sara, e o de maior experiência em luta de guerrilha. Ocupa posições geoestratégicas de primeira importância: pelas ilhas atlânticas está nas rotas norte-sul e leste-oeste do oceano Atlântico; as costas de Angola e Moçambique lançam no Atlântico e no Índico a sua sombra estratégica; e as duas províncias, na ilharga dos países interiores, dominam o acesso destes ao mar, e por este facto controlam as suas comunicações, os seus abastecimentos, a sua vida no essencial. Nos planos políticos dos governos, nos planos dos estados-maiores das grandes potências, nos planos de segurança dos países interiores, a posição portuguesa entra em linha de conta como factor de relevo. De Dacar para o sul e em torno de África até ao Rovuma, Portugal é uma força de consequência, combatida decerto, mas respeitada também, e a sua afirmação de que está para ficar ganha apoio junto dos países, para que não há uma alternativa à cooperação portuguesa.»

Idem, ibidem, pp. 130-137.


«(...) Pergunta depois o jornalista [do Chicago Tribune] pela situação de Goa. Salazar traça o quadro: "é de miséria e ruína. Foi ali introduzido o sistema de castas e a discriminação racial; pratica-se a perseguição religiosa entre cristãos; a polícia e o funcionalismo são exclusivamente indianos quando, antes da agressão, eram na sua totalidade goeses; as riquezas de Goa são transferidas para a União Indiana; a ordem pública, a segurança individual, os direitos humanos não são respeitados; Nova Deli governa Goa pelo arbítrio e pela repressão policial. São cerca de 700 000 almas que estão encerradas num vasto campo de concentração. É a isto que a ONU chama a autodeterminação de Goa"».

Idem, ibidem, p. 153.


«(...) As nossas ideias acerca do fenómeno da descolonização africana estão sucintamente expressas num pequeno discurso com que há dias agradeci uma homenagem das populações de Angola e junto tenho a honra de oferecer a Vossa Excelência. No trecho referente às novas independências africanas houve a intenção de expor o que nos separa das nações europeias soberanas que precipitadamente entregaram todos os poderes às populações locais, pode dizer-se que com a total exclusividade dos brancos. Mas também se entrevê aí o que pode separar-nos da Rodésia no caso de esta, na sua evolução futura, desejar aproximar-se mais do tipo sul-africano que do tipo multirracial da acção portuguesa e da nossa ideia de constituição de nações africanas.»

Carta pessoal de Oliveira Salazar para o presidente brasileiro Castelo Branco (1966). Cf. Franco Nogueira, ibidem, p. 167.


«Sem embargo da sua serenidade e aparente boa disposição, Salazar está preocupado a mais não poder. Que caminhos se abrem a Portugal? Ceder à Inglaterra e às Nações Unidas? É a instalação de um governo só negro na Rodésia e a abertura da fronteira ocidental de Moçambique ao terrorismo; é o colapso de toda a construção política de Portugal na África Central e Austral; é o desprestígio perante a Zâmbia e o Malawi e a inutilização de quanto está feito com estes dois países. Resistir? Mas irá a Inglaterra, como as aparências indicam, para um golpe militar? Talvez o faça, se sentir apoio internacional e julgar que é fácil o terreno; não o fará se estiver segura de que encontra uma resistência decidida.»

Idem, ibidem, pp. 168-169.


«[O Presidente do Conselho recebe] o Presidente da República da Nicarágua, Renée Schick, que declara à saída: "nos poucos minutos que estive com Salazar, aprendi mais do que em muitos anos de vida política"».

Idem, ibidem, p. 188.


«No âmbito do governo, todavia, continuam a sobrepor-se às demais as preocupações de África. E é agora a República do Congo (de Brazzaville) que por um momento ocupa a atenção de Lisboa. Em 11 de Junho de 1966, o governo daquele país queixa-se no Conselho de Segurança de que, em 8, aviões portugueses haveriam sobrevoado aldeias congolesas, e bombardeado populações civis. Menos de uma semana mais tarde, o governo de Lisboa nega a acusação, e rejeita-a. Escreve a nota portuguesa: "desde que se alega que os aviões voavam a baixa altitude, o Governo português convida o governo congolês a indicar o tipo de aparelhos, a sua velocidade, a sua direcção, e o tipo de bombas lançadas, e a produzir as demais provas que certamente teria em seu poder se fossem verdadeiros os factos alegados". Não tem o assunto importância, todavia, e morre por si.»

Idem, ibidem, p. 191.


«Parece haver no plano externo uma nova acalmia: dir-se-ia existir de momento mais um armistício nas hostilidades contra Portugal. Decerto: é recebida uma queixa da República da Zâmbia, entregue na ONU, que alega haver sido bombardeada por forças portuguesas uma aldeia zambiana junto à fronteira de Angola. Lisboa investiga a acusação, e não lhe acha fundamento; e ao repudiá-la, observa com ironia a pouca serenidade de que se afigura possuído o governo de Lusaka e pergunta "se acaso a República da Zâmbia tem interesse em continuar a utilizar os serviços portugueses". Com esta mal disfarçada ameaça, morre o incidente.»

Idem, ibidem, p. 203.





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«[Oliveira Salazar] não abandona o projecto de "implantar a estátua de Nuno Álvares, com a frente para a estrada e ao longo da fachada lateral [do Mosteiro da Batalha], como se cavalgasse ao lado do Rei e da ínclita geração". Mas Salazar visitara também a igreja e "aí francamente não gostei da transformação conciliar operada" (Refere-se Salazar ao abandono do culto no altar-mor, com o sacerdote de frente para o mesmo, e ao novo estilo de celebração da missa, consoante o Concílio Vaticano II, em uma mesa de altar, com o sacerdote de frente para os fiéis)».

Idem, ibidem, p. 204.


«Na manhã de 24 de Setembro de 1966, chegam a Lisboa notícias que emocionam os portugueses: a embaixada de Portugal no Congo (Kinshasa) fora assaltada com violência e invadida, o encarregado de negócios fora ferido e raptado (na altura, António Eduardo Ressano Garcia), o arquivo saqueado e roubado, e do demais pessoal português não se conhecia o paradeiro. Sabe-se, por outro lado, que as autoridades congolesas estão coniventes com os assaltantes; estes, na sua maioria, são elementos dos grupos terroristas que atacam Angola; e a polícia congolesa assistiu a tudo passivamente, sem esboçar uma intervenção. Em Lisboa há cuidado pela segurança dos funcionários portugueses, e até da numerosa colónia portuguesa há muito estabelecida no Congo; e, ao mesmo tempo, procura-se explorar a fundo, contra o Congo, a situação por este criada.»

Idem, ibidem, p. 213.


«(...) Deixei para o fim o caso dos mercenários que o Congo nos acusa de treinarmos em Angola e parece terem entrado em número de uma centena ou pouco mais ontem ou anteontem no território congolês. Sabe como a República Democrática do Congo se tem comportado para connosco, com a plena indiferença de umas potências e o aberto apoio de outras. Ali se instalaram os terroristas de Holden Roberto, ali se treinam e se armam, dali partem para incursões em Angola - vão já uns seis anos e meio - e ali se acolhem e repousam. Apesar de tudo isto, porque ainda cremos em certos princípios de ordem internacional e temos presente a falta de maturidade daquele país e dos seus dirigentes, temos mantido para com eles a maior correcção. Mais: temo-los ajudado na medida do que nos é possível, ou fornecendo alimentos ou deixando abertas as comunicações pelo Lobito, visto que pelo menos as riquezas de Catanga se estiolariam, dada a insuficiência das comunicações. Penso que o Congo não tem a menor noção dos nossos serviços, visto que deixou assaltar a Embaixada de Portugal, cortou todas as relações e expulsou os nossos representantes. Temos ali uma dúzia ou mais de milhares de portugueses que têm sofrido nos seus interesses pela regressão económica do país, mas não têm sido molestados, porque o seu comércio é indispensável ao Congo e as populações têm no assunto critério diverso do do governo. Temos assistido à crescente anarquia da administração e da economia, florescentes no tempo dos belgas, e no fundo continuamos a esperar por um pouco mais de estabilidade e de ordem, e por que o Congo não vá arrastado pelas paixões da OUA [Organização da Unidade Africana] para a derrocada final. Em harmonia com esta posição não há em território português, como sabe existirem noutros países, escritórios de recrutamento de mercenários. Nenhuma autorização foi dada nunca a qualquer pessoa para se inscrever em tais actividades e creio por isso não se encontrar nenhum português (salvo algum extraviado) no grupo de Bukavu ou no grupo que se infiltrou agora no Congo. Temos sido acusados de ter campos de treino para mercenários em Angola, mas nem o Senhor U Thant nem o próprio governo congolês aceitaram o convite, repetidamente feito por nós, para visitarem a Província e verificarem o que aí se passava àquele respeito. Que alguns mercenários tenham estado em Angola, não o podemos negar. Recrutam-se mercenários na Bélgica, recrutam-se em França, recrutam-se na África do Sul e não sei onde mais. Apresentam-se em Angola, com passaportes válidos sem qualquer designação de actividade. É impossível, em face das convenções que temos, impedir-lhes a entrada e segui-los. Se uma centena pode por ali ou pela Zâmbia entrar no Congo, clandestinamente, pois não o podemos evitar. Seria mais fácil a República Congolesa evitar a entrada em Angola dos milhares de terroristas que ali somos obrigados a combater e não o fez, porque julga do seu direito e do seu dever impulsionar guerrilhas em território alheio.»

Carta de Oliveira Salazar para André de Staercke, embaixador belga na NATO. Cf. Franco Nogueira, ibidem, pp. 217-218).


«Entretanto, num parêntesis, apura-se que a outra República do Congo (Brazzaville) lançara contra Cabinda um ataque de bombas e morteiros, sem significado militar; mas o governo de Lisboa não deixa de se queixar ao Conselho de Segurança.»

Idem, ibidem, p. 221.


«(...) E a África nascida da descolonização? Tudo aí parece ter falhado: os direitos humanos, o progresso, a estabilidade, os interesses dos africanos e os do Ocidente: e não parece que haja a felicitar os responsáveis, em particular a ONU. "Mas nós somos acusados de não ver com exactidão o que se passa em África, embora cada acontecimento nos dê sempre mais razão do que o anterior… pelo que me ficarei por aqui"».

Sobre a entrevista de Oliveira Salazar a Guillemé Brulon, do "Le Figaro". Cf. Franco Nogueira, ibidem, p. 222.


«Justamente, produz-se nesta ocasião um ataque de vulto a território angolano: no dia de Natal de 1966, mais de quinhentos guerrilheiros atravessam a fronteira de Leste e caem sobre a cidade raiana de Teixeira de Sousa. Estão bem armados, é aguerrida a sua combatividade. Mas as forças portuguesas não se deixam surpreender: os ataques são repelidos, fogem, e abandonam no terreno cerca de trezentos mortos. Quase não há baixas do lado português. É uma espectacular vitória. Contra o ataque, Portugal protesta junto do Conselho de Segurança, e dirige o seu protesto contra a Zâmbia em particular. E em Nova Iorque concluem-se os trabalhos da XII Assembleia Geral da ONU. Não se eximem as Nações Unidas à aprovação das resoluções habituais contra Portugal. Mas o facto de salientar é outro: votaram em favor de Portugal a Austrália, Áustria, Brasil, Bélgica, Canadá, Espanha, Estados Unidos, Holanda, Inglaterra, África do Sul; e nenhum país da NATO ou latino-americano votou contra Portugal, tendo preferido abster-se. Todos os conservadores concluem que se trata de uma vitória de Portugal, e assim o consideram também, com relutância, os meios afro-asiáticos.

Chega a seu termo o ano de 1966, e a 29 de Dezembro, em sessão especial, a Assembleia Nacional proclama o encerramento das comemorações do 40.º aniversário do 28 de Maio. Está o presidente Thomaz, Oliveira Salazar e todo o governo. Exprimem os sentimentos da Câmara os deputados José Hermano Saraiva, Melo e Castro e Rebelo de Sousa. Fazem o elogio do regime; mas sobressai Melo e Castro que põe expressamente o problema do abandono da cena política por parte do presidente do Conselho. Há uma sensação de surpresa, e de constrangimento. Salazar é ovacionado; e parece admirado com os aplausos. Depois, na Sala Dourada, demora-se em conversa com Américo Thomaz e Mário de Figueiredo. E que pensa do que se passou há dias em Teixeira de Sousa? Responde o chefe do governo: "um magnífico presente de Natal!"».

Idem, ibidem, pp. 238-239.



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«Mais importante, porém, é o estado de espírito que parece ser o de alguns sectores das Forças Armadas. Dentro de pouco, cumprem-se seis anos sobre o início da luta no Ultramar. Nos termos e com os seus objectivos iniciais, foi o terrorismo frustrado em Angola, contido em Moçambique, controlado na Guiné. Militarmente, não há para as forças portuguesas a perspectiva da derrota, ou desaire, salvo pela intervenção de meios internacionais poderosos, ou de uma grande potência; mas as duas possibilidades têm de ser havidas como remotas. E no entanto transpira dos círculos militares um mal-estar, um sentimento de insatisfação que não se define com nitidez. Alguns oficiais do quadro fizeram já várias comissões em África, com todos os incómodos e problemas pessoais e familiares que o facto acarreta; e consideram que uma carreira de longo serviço activo se torna desconfortável. Por outro lado, e pela escassez de quadros, tem de ser cada vez maior o recurso à mobilização de oficiais milicianos, recrutados entre os estudantes universitários ou jovens recém-formados, que assim têm os seus estudos ou estágios suspensos por algum tempo. E em alguns meios da juventude há um novo fervilhar de ideias. Do entusiasmo ou pelo menos da naturalidade inicial com que era encarado o serviço militar, passou-se a uma relutância que está conduzindo ao repúdio dos próprios motivos que impõem a mobilização. Para este estado de espírito convergem factores vários: a intensificação da propaganda pacifista nas escolas, feita por elementos oposicionistas de esquerda, e apoiada pelas potências estrangeiras que em seu proveito pretendem o colapso da política portuguesa; a difusão dos princípios do Concílio Vaticano II, ou que lhe são atribuídos, e a que é dado um conteúdo que não possuem mas que permite apresentá-los como reprovando toda a guerra, ainda que defensiva, e condenando, por velharias, as noções de pátria e de nacionalismo; a alegação de que a guerra movida a Portugal em África é consequência apenas do carácter autoritário do governo de Lisboa, cessando logo que este seja democratizado; a atribuição de algumas dificuldades na metrópole às despesas com a luta em África, e cujas cifras circulam exageradas; a arguição de que Portugal é autor, e o único autor, de crimes contra a humanidade e de que a ONU é um tribunal com os portugueses no banco dos réus por não acatarem obedientemente as resoluções da organização (esta arguição é tradicionalmente muito comum na história de Portugal. Aparece sempre invocada por espíritos débeis, ou enfeudados ao estrangeiro, e em épocas de política mole. Ela supõe esta ideia: a de que os interesses nacionais se devem subordinar a leis internacionais, elaboradas por outros, difundidas por outros, para defesa e protecção dos seus interesses, e não dos interesses portugueses); o argumento derrotista de que para a luta só cabe uma solução política, dando-se à frase o sentido de paz nos termos exigidos pelo adversário ou seja a entrega do ultramar, e não o sentido da busca de uma fórmula para o manter português por meios não militares; e finalmente a descrença, a tibieza de ânimo, a ilusão de algumas classes da sociedade portuguesa, convencidas de que a África tem importância de somenos ou de que os negócios se continuam a fazer, ou até se fazem com mais lucros depois de abandonado o ultramar, acreditando que uma vez quebrados os vínculos políticos se podem manter os demais. Estas são as ideias difundidas por mil modos e organizações: os progressistas, alguns elementos da Acção Católica, as Igrejas protestantes, muitos intelectuais e artistas, alguns círculos económicos e financeiros, os crentes do mundo novo e melhor, os apóstolos da fraternidade universal, os paladinos de uma nova civilização em marcha, os arautos do amor entre os homens para substituir a guerra entre os homens, os defensores da abolição das fronteiras e das pátrias, os mensageiros do homem que só pode ser livre se for rico e não tiver passado, outros ainda. Estudantes universitários e jovens licenciados sucumbem à barragem da propaganda; e, mobilizados como milicianos, transportam-na, e reproduzem-na pelas unidades, quartéis, salas de oficiais. E de tudo provêm o mal-estar, a inquietação, a atitude crítica que está permeando alguns sectores militares, sobretudo na metrópole. Está consciente do facto o ministro da Defesa, Gomes de Araújo; intensifica a doutrinação e o esclarecimento entre os oficiais de carreira; mas as influências são exteriores, e são essas que importaria eliminar ou corrigir. É todo um problema de pedagogia da sociedade civil que está posto. "Que querem os senhores?", pergunta Salazar, e explica: "Deixamos invadir o Ministério da Educação pelo progressismo, pelo internacionalismo, pela anti-nação. Era novo, era avançado, era estar em linha com as grandes teses dos novos génios. Muito bem. Mas agora não nos queixemos!" Então não se deve fazer nada? Não se deve voltar a ensinar Portugal nas escolas portuguesas? "Sim, decerto, mas a única pessoa do meu conhecimento que está preocupada com o problema é a Infanta D. Filipa. Não sei de mais ninguém". Por detrás de tudo, há uma vasta paisagem humana, há todo um povo miúdo que constitui a poderosa reserva moral da nação, e nesse não se percebem os mesmos sintomas, e os seus descontentamentos não se apresentam ligados às lutas de África.»

Idem, ibidem, pp. 245-247.


«Noutro âmbito, uma notícia causa satisfação ao chefe do governo: num plebiscito efectuado em Goa, Damão e Diu pelo gabinete de Nova Deli, é perguntado aos goeses se aceitam ou rejeitam a integração na Grande Índia. Apuram-se os resultados: 138 170 votos a favor da integração, 172 191 contra: e os números são interpretados pelos observadores como prova de um sentimento maioritário pró-português. Em 18 de Janeiro de 1967, o ministério dos Estrangeiros publica uma nota oficiosa. São verberados os propósitos da União Indiana: com a integração pretende-se "o extermínio político de Goa e sua população" e o facto "constitui um caso típico de genocídio cultural e sociológico": e por isso o governo português, seguro de interpretar os sentimentos da esmagadora maioria dos goeses, "denuncia perante a opinião pública mundial todo um procedimento, adoptado pelo governo indiano, que se destina a aniquilar um pequeno povo cuja personalidade bem vincada e antiga autonomia corre graves riscos, e apela para as instâncias internacionais para que defendam Goa da destruição". Dias depois, o governo de Lisboa leva esta nota ao conhecimento da ONU e recorre para o secretário-geral U Thant. Diz a este: Goa é território que expressamente consta da resolução 1542 (XU), aprovada pelas Nações Unidas em 15 de Janeiro de 1960, pelo que lhes cabem responsabilidades muito explícitas, em particular, nos termos de convenções internacionais, quanto à protecção de minorias, sua língua e cultura, sua religião e nacionalidade; a União Indiana tem o dever de permitir ao povo de Goa uma escolha entre a submissão directa e um estatuto que corresponde às suas aspirações; e para este efeito, "afigura-se que se impõe uma intervenção do secretário-geral da ONU". É altamente embaraçosa para U Thant e para as Nações Unidas esta nota portuguesa, e a delegação indiana em Nova Iorque não oculta a sua cólera: mas a comunidade internacional, para não desagradar a Nova Deli, não tem uma reacção.»

Idem, ibidem, p. 251.


A Basílica do Bom Jesus de Goa: uma das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo. Ver aqui




Altar-mor da Basílica



«Mas entra a primeira quinzena de Março de 1967. Cumprem-se seis anos sobre o início da luta em África. Continuam a não ser perceptíveis na massa popular sintomas vivos de rejeição da política ultramarina; e nos matos e nas picadas de África o soldado bate-se como sempre. Mas desde o princípio do ano parece agravar-se o estado de espírito do escol social e político, tanto governamental como oposicionista. Em 1960, a geração nova, atingida pelo deflagrar da luta, mergulha na mística colectiva e sente-se motivada pela aventura africana; mas é outro o estado de espírito da geração de hoje; e na verdade o ambiente familiar e social que os novos jovens encontram é também diverso. Elementos da alta burguesia, famílias tradicionais, homens da finança e da economia, figuras da alta-roda política, têm sido partidários incondicionais da defesa de África; mas agora, ao cabo destes seis anos, os seus filhos atingem a idade militar, são mobilizados, têm de seguir para o ultramar; e então, salvo excepções, revelam uma clara mudança de atitude. Com a típica e estreita mentalidade burguesa, de visão do imediato, as grandes elites são em favor de todos os sacrifícios, se outros os suportarem; mostram-se fervorosos patriotas se o patriotismo for gratuito; e os grandes valores nacionais e a integridade territorial são para defender, decerto, contanto que essa defesa não comporte perigo para a vida própria, ou mesmo risco para um negócio ou prejuízo para um investimento. E então estas elites sucumbem à influência das ideias lançadas no Mundo, deixam-se subjugar pela dúvida, abrem o espírito às razões do adversário, e tudo que seja opção fácil, transigência, ilusão, recebe favor e aplauso. Surgem as perguntas: mas quanto tempo durará a luta? então durará indefinidamente? então os representantes dos guerrilheiros não afirmam que respeitarão os interesses portugueses? não será possível um entendimento? então as potências amigas não se mostram ansiosas de ajudar Portugal a conceder a autodeterminação ao ultramar? não se estarão a despender no ultramar somas consideráveis que seriam melhor empregues no fomento da metrópole, que assim se está a prejudicar e a atrasar? não será a luta em África a grande responsável por alguns aumentos de preços ou dificuldades de vida? Estas e mil outras questões circulam de boca em boca, em surdina quase sempre, às vezes já em voz audível. E no escol que apoia o governo, levanta-se um estado de apatia, de desinteresse, de derrotismo e resignação. E idêntica se diria ser a evolução dos oposicionistas democráticos tradicionais. Acérrimos defensores do ultramar durante a I República, mantiveram depois a mesma atitude; e em 1961, nos alvores da guerrilha em Angola, eram partidários confessos e declarados da resistência, da defesa a todo o preço, "Até à exaustão se necessário", escrevia Cunha Leal a Salazar. Mas agora é igualmente diversa a sua posição política e ideológica. São múltiplas as razões que influem nos oposicionistas: pressão da extrema-esquerda, e o seu desejo de se não deixarem ultrapassar por esta; partilha de novas ideias e conceitos, na convicção de que importa segui-los porque são o caminho de um futuro sem regresso; pendor nacional para a crítica pela crítica; opinião muito sincera em alguns de que está em erro o governo; tibieza habitual perante o clamor do terceiro mundo, da ONU, de uma parte da grande imprensa internacional; influência de partidos políticos e governos estrangeiros; inconsciência dos resultados inevitáveis das soluções que recomendam e que, se aplicadas, conduziriam a realidades que não previam nem desejavam; e a necessidade política, no plano interno, de manter viva a oposição a Oliveira Salazar e ao regime.»

Idem, ibidem, pp. 264-266.


«(…) principia a ser divulgada em Portugal a última encíclica papal: a Populorum Progressio. Salazar debruça-se atentamente sobre o documento, e considera-o deplorável. Classifica-o de demagógico, e de perigoso no terreno político. Afigura-se-lhe que o pontífice condena o nacionalismo, sem que o defina, e isso poderá ser trágico; mas quando o papa advoga o pluralismo das organizações profissionais e sindicais, ao chefe do governo parece o facto "admissível e até certo ponto útil". Em matéria de violência e subversão, Salazar julga que a Encíclica aceita "com bastante ligeireza ou compreensão a revolta", ainda que se façam "algumas restrições à validade ou mérito da insurreição revolucionária". Pelo que respeita ao repúdio do racismo, "nada há a objectar"; e a proclamação de que todos os povos devem ser artífices do seu destino pode ser aceite se não forem esquecidas ou ignoradas as condições próprias de cada um, o que impõe a diversidade de soluções consoante os casos. Afirma o papa que a civilização e as civilizações nascem e morrem; mas não as caracteriza; e Salazar pergunta: "portanto, também a civilização cristã?" Defende o pontífice uma autoridade mundial, "em condições", comenta Salazar, "de agir eficazmente no plano jurídico e político"; estes são problemas, todavia, em que o papa se cinge a reflectir os documentos já emanados do Concílio. Mas o chefe do governo pensa que a Populorum Progressio vem suscitar falsas esperanças, demonstra ingenuidade do Santo Padre, e contribui para adensar a confusão dentro da Igreja. Diz Salazar: "eu não estou muito aflito porque a morte breve evitará que tenha de me adaptar"».

Idem, ibidem, pp. 271-272.


«E em Londres, na Câmara dos Comuns, um deputado retoma a questão da Rodésia, e pergunta ao governo britânico: que nacionalidade têm os petroleiros que, em Lourenço Marques, descarregam gasolina e petróleo para aquele país? Por escrito, responde o representante do governo inglês: não sabe, o assunto é complexo; não é possível identificar os navios; o bloqueio naval apenas se aplica à Beira; qualquer extensão a Lourenço Marques depende da decisão do Conselho de Segurança. Então, com mal oculta ironia, publica uma nota oficiosa o Ministério português dos Estrangeiros: "Perante a falta de informações com que luta o governo de Sua Majestade, o governo português está em posição de esclarecer (o deputado) que entre Abril de 1966 e Maio de 1967 entraram no porto de Lourenço Marques 169 navios petroleiros, dos quais 58 (cinquenta e oito) eram de nacionalidade britânica e ao serviço de companhias britânicas"; e nenhum dos 169 petroleiros "era de nacionalidade portuguesa nem estava ao serviço de qualquer companhia portuguesa". Compreende-se pelo mundo já bem claramente que na violação das resoluções do Conselho de Segurança, respeitantes à Rodésia, não cabe a Portugal o maior quinhão.»

Idem, ibidem, p. 290.


«(…) O presidente Johnson, dos Estados Unidos, afirma em discurso público que a América tipifica uma imagem do paraíso e que 94% dos habitantes do mundo têm inveja dos americanos, e quereriam ser americanos. Comenta Salazar: "Nós pertencemos aos restantes 6%"».

Idem, ibidem, p. 294.


«Em repetidas notas entregues ao Conselho de Segurança, e em semanas sucessivas, o governo congolês acusa Portugal, e agora também a Bélgica e a Espanha, de interferir no Congo e ajudar os mercenários. Formula alegações concretas: oficiais mercenários estariam em Angola, no território português existiriam concentrações de mercenários e bases logísticas, os mercenários haveriam lançado ultimatos a Mobutu, ainda outras. Tudo é refutado por Lisboa de forma terminante, e áspera. (Vale a pena transcrever alguns períodos finais da refutação portuguesa: "Neste particular, o Governo Português recorda que em 3 de Outubro de 1966 propôs formalmente ao Conselho de Segurança a realização de um inquérito ou investigação sobre bases de mercenários em Angola, sob condição da República Democrática do Congo autorizar uma prévia investigação e inquérito às bases militares existentes no seu território contra Angola. O Governo Congolês admite oficialmente a existência, no seu território, de bases militares contra Angola, como se de facto acaso fosse legítimo e o Governo Congolês reconhecerá não ter qualquer autoridade moral para acusar terceiros países. Finalmente, o Governo Português não pode eximir-se a comentar que o Governo Congolês está sendo vítima do clima de violência que suscitou e tem autorizado contra terceiros e que agora atinge o próprio Congo, que sendo o maior e mais rico país de África está transformado no mais infeliz e caótico país de todo o continente." Da nota tornada pública em 23 de Agosto de 1967)».

Idem, ibidem, pp. 296-297.


«(…) em Lisboa há conhecimento de que o secretário-geral da ONU se propõe justamente deslocar-se ao Congo para uma reunião da Organização da Unidade Africana. Logo é aproveitada a notícia para martelar U Thant com mais um convite: "dada a contiguidade da Província de Angola e a rapidez e facilidade de trajecto entre esta e o Congo, pensa o Governo Português que, imediatamente antes ou depois da mesma reunião, poderia V. Ex.ª aproveitar o ensejo para se deslocar a Angola (e a Moçambique se assim o desejasse) e aí investigar se, como repetidamente tem sido alegado no Conselho de Segurança e noutros órgãos da ONU, Portugal constitui ameaça à paz e segurança internacionais e para a boa vizinhança com os territórios limítrofes. Afigura-se ao Governo Português que o valor e a importância que uma visita do Secretário-Geral tem para o esclarecimento da ONU poderiam talvez compensar os breves dias despendidos em território português. No caso de V. Ex.ª resolver aceitar este convite, o Governo Português tomará as medidas adequadas à sua deslocação e da sua comitiva a todos os locais que V. Ex.ª, a seu exclusivo critério, queira observar". (Da carta de 7 de Setembro de 1967 endereçada ao secretário-geral da ONU). Pouco após, em 9 de Setembro, mais uma vez se escusa o secretário-geral: não pode, não dispõe de tempo, talvez mais tarde, e no contexto das resoluções pertinentes aprovadas pelas Nações Unidas. Comenta o ministério dos Estrangeiros em Lisboa: o secretário-geral não se atreve a romper o círculo vicioso em que a ONU o encerra: acusar sem investigar, não investigar para poder continuar a acusar.»

Idem, ibidem, pp. 297-298.











«Nos últimos dias de Outubro de 1967, pela imprensa do mundo, e nos corredores da ONU, circulam notícias sobre novas convulsões sangrentas no Congo, e ao abrir do mês de Novembro aparecem envolvidos o governo de Lisboa e Angola. Numas versões, tropas portuguesas, ou tropas estrangeiras estacionadas em Angola, haveriam invadido a República do Congo, apoiadas por artilharia e aviões; e em outros relatos, grupos de mercenários, dispondo de bases no interior daquela província portuguesa, teriam atravessado a fronteira e penetrado em território congolês. Sem perda de tempo, Lisboa refuta as alegações: a República do Congo "não foi invadida, ou ameaçada, ou atacada por quaisquer tropas ou outras forças portuguesas, nem por tropas ou outras forças estrangeiras que se encontrassem em Angola"; e também não existem em território português quaisquer bases ao serviço de mercenários, nem grupos armados atravessaram a fronteira em direcção ao Congo; e apenas por uma questão de escrúpulos vão as autoridades investigar se na linha da extensa fronteira se teriam verificado infiltrações além das que o Congo consente contra Angola. Para mais, segundo o Congo, esses mercenários seriam em número de cem; e isso não parece justificar o alarme do governo congolês e a perturbação mundial. É do conhecimento de todos, aliás, que pelo Congo lavra o desassossego; mas não é correcto, para o explicar, atribuir responsabilidades a Portugal. E neste contexto o governo de Lisboa quer recordar os numerosos convites que já dirigiu ao secretário-geral da ONU para visitar Angola, e ao governo congolês para investigar, a título de reciprocidade, as bases de mercenários cuja existência em Angola é alegada. Mas as acusações prosseguem, o Congo mais uma vez se queixa ao Conselho de Segurança; este marca uma reunião; e o governo português pede para participar. Entretanto, dias mais tarde, Angola aparece ainda mais envolvida no problema: pela fronteira do Catanga entram em território português cerca de quinhentos indivíduos, divididos em dois grupos; muitos são de nacionalidade belga, italiana, grega; é congolesa a maioria; os que assim desejaram, seguem para os seus destinos; e são desarmados os portadores de armas. Todos estes elementos são publicados pelo governo de Lisboa. Mas nem por isso deixa de se efectuar a reunião do Conselho de Segurança. Alegações não comprovadas são produzidas pelos delegados congoleses; tudo é negado e repudiado pelo representante português (Nesta reunião do C. S., Portugal foi representado por Francisco da Piedade Miranda, director dos Serviços de Informação e Imprensa do MNE, e membro da delegação à Assembleia Geral da ONU); e no debate são seguidas as linhas habituais de crítica à política ultramarina portuguesa.»

Idem, ibidem, pp. 302-303.


«Por causa do Congo agitam-se os norte-americanos, e em Lisboa e junto da embaixada de Portugal em Washington praticam diligências prementes: querem que Portugal não interfira nos negócios internos daquele país: e exprimem a sua "grande preocupação". Lisboa repete quanto já dissera em nota oficiosa e perante o Conselho de Segurança. Mas acrescenta algumas considerações: o Congo é um país independente - ou não é? - e deverá falar por si; não consta que o governo dos Estados Unidos tivesse sido incumbido de proteger no estrangeiro os interesses congoleses ou pelo menos esse encargo não lhe fora confiado junto do governo de Lisboa; parece assim que à diligência americana escasseia legitimidade; e em qualquer caso seria de saber se o governo de Washington exprimiu na capital congolesa a sua "grande preocupação" pelas bases onde se treinam os terroristas contra Angola e pelas infiltrações destes na fronteira norte da província. Compreende Washington como é precária a sua posição; e não insiste. E tudo se esbate no caos que é a política de África, e no seu constante fluir e refluir. Em Nova Iorque, no seu eterno clamor, a Assembleia Geral da ONU aprova, em 21 de Novembro de 1967, mais uma extensa resolução contra Portugal: reitera quanto resolveu desde 1960: e agora mais uma vez se confessa "profundamente perturbada" e "gravemente preocupada" pela política portuguesa que "condena vigorosamente". Não se impressiona o governo de Lisboa, nem a opinião pública tão-pouco. Para mais, votam contra a resolução, e portanto em favor de Portugal, os países que contam para este: Estados Unidos, Inglaterra, África do Sul, Espanha, outros ainda. Mais numerosos foram os que se abstiveram, definindo assim uma atitude de reprovação do bloco afro-asiático: Brasil, França, Itália, Noruega, Suécia, Canadá, Dinamarca, e mais uma larga dezena. Nos corredores da ONU, considerou-se como vitória portuguesa este resultado. No entanto, mais construtivo, e relevante, é outro aspecto: a República da Zâmbia, mais uma vez, indica o seu desejo de uma aproximação renovada e agora mais profunda com o governo português.

Por intermédio dos administradores ingleses da Companhia do Caminho-de-Ferro de Benguela, em particular Lord Colyton, é recebida uma mensagem do presidente Kenneth Kaunda: estaria pronto a acolher uma delegação portuguesa, de personalidades privadas mas de confiança do governo português, que se deslocasse a Lusaka a título informal e oficioso. Por outro lado, apresenta-se em Lisboa um súbdito britânico, Arthur Levin, que se diz agente secretíssimo de Kaunda; exibe credenciais e mostra conhecimentos que o acreditam nessa qualidade; e confirma a mensagem. E aceita a sugestão do chefe de Estado zambiano, e o administrador delegado da Companhia, Manuel Fernandes, da absoluta confiança do governo, parte para Lusaka (Trata-se da mesma individualidade que fora procurador à Câmara Corporativa e juiz português no Tribunal Internacional da Haia aquando da questão posta por Portugal contra a Índia depois que esta invadiu e ocupou os enclaves de Dadrá e Nagar Aveli). Aparentemente, desloca-se para tratar de questões de transportes e comunicações: o Caminho-de-Ferro de Benguela é via essencial de ligação da Zâmbia com o Atlântico. Manuel Fernandes transmite ao presidente Kaunda um memorandum, em que o governo de Lisboa define a sua política na África Austral. Que afirma o documento? No plano externo, o governo português guia-se por três princípios: cooperação internacional, respeito pela integridade territorial, soberania de todos os Estados. Apenas se podem resolver problemas comuns, ou cuja magnitude requeira conjunção de esforços, se se adoptar o primeiro princípio; no segundo, firmam-se relações de boa vizinhança e de intercâmbio pacífico; e o terceiro permite que a colaboração seja independente dos sistemas políticos ou económicos de cada um e que estes coexistam. Diversidade ou antagonismo não devem obstar à cooperação, que não deve ser tomada como endosso de políticas alheias. E é esta a conduta que o governo português procura seguir para com todos os seus vizinhos, e portanto também para com a República da Zâmbia. E além do respeito pelos princípios, o governo português "nada mais deseja ou espera" daquela. Mas na situação recíproca da Zâmbia e de Portugal, há que destacar um aspecto particular: a Zâmbia é um país interior: por território português passam as vias mais rápidas, seguras e económicas para ligação da Zâmbia com o mar: e isso tanto a leste como a oeste. Muitos outros países, na África Austral e no mundo, se encontram numa situação análoga. Não se está assim perante uma situação nova ou anormal. Aplicam-se-lhe as regras internacionais há muito definidas: o Estado interior tem o dever de respeitar o Estado ribeirinho e de ter com este boa vizinhança; o Estado ribeirinho tem iguais obrigações e ainda a de manter sempre aberto e sem discriminação o acesso dos Estados interiores ao mar. Acentua então o memorial português: "Foi no sentido acima que, desde há anos e por mais de uma vez, o governo da República da Zâmbia se dirigiu ao governo português solicitando deste último toda a cooperação não só para manter em funcionamento as linhas de comunicação da Zâmbia com o mar como para que a esta fossem concedidas facilidades especiais que auxiliassem a resolver situações de emergência. As reuniões tripartidas de Lourenço Marques e da Beira e os pedidos feitos quanto ao Caminho-de-Ferro do Lobito são exemplos frisantes do que precede". Mais ainda: "julga o governo português ser justo e exacto afirmar que sempre correspondeu às solicitações do governo de Lusaka com a maior presteza, isenção e boa vontade; e afigura-se-lhe lícito acrescentar que só a colaboração do governo português tem permitido a solução real e eficaz de problemas que não poderiam ser resolvidos por pontes aéreas, transportes a longa distância ou por outras alternativas apressadamente e espectacularmente sugeridas para fins demagógicos" (Alusão irónica às medidas que, por causa do bloqueio à Rodésia, o governo britânico tomou ou se propunha tomar: abastecer toda a Zâmbia em combustível transportando-o em aviões, ou organizar comboios de camiões para Dar-es-Salam, etc., etc.). Pois apesar de quanto fica dito, "não está o governo português seguro de que a sua atitude cordial e correcta tenha sido compreendida e correspondida pelo governo da República da Zâmbia". Quanto a este último aspecto, o governo de Lisboa "sente ter de relembrar" a situação consentida pela Zâmbia na fronteira de Angola: ataques a populações civis e propriedade privada; grupos de terroristas têm as suas sedes e campos militares na Zâmbia; ataques e sabotagem da linha do Lobito "com as desastrosas consequências que o governo da Zâmbia experimentou". Nada autoriza que se empreguem estes métodos; e ao governo português "têm-lhe escapado os benefícios resultantes para o governo e o povo zambianos". Nestes termos, e pelo que toca a este ponto, "o governo português faltaria à lealdade e à correcção, que em todas as circunstâncias se impõem, se não dissesse muito amistosamente mas muito claramente ao governo da Zâmbia que uma tal situação não pode ser consentida indefinidamente, e que não pode aceitar que o equilíbrio indispensável, atrás salientado, seja alterado e abandonado em desfavor de Portugal". Decerto: o governo da Zâmbia, no choque de ambições e interesses alheios, enfrenta dificuldades políticas e outras, que se não desejam agravar; e também não se ignoram as preocupações causadas pela situação da Rodésia, de que o governo português aliás partilha. Quanto a este último ponto, e se Lusaka acaso receia atitudes agressivas ou hostis, e na "medida em que está informado dos sentimentos das autoridades rodesianas e tem a confiança destas, o governo português está convicto de que o governo de Salisbury não tem quaisquer atitudes agressivas ou hostis para com a Zâmbia, desejando pelo contrário estabelecer a mais leal e estreita cooperação. O governo português não tem dúvidas em dizer ao governo da Zâmbia que há pouco formulou em Salisbury uma pergunta concreta sobre o assunto e que recebeu a mais categórica resposta no sentido acima". No que importa à Rodésia, Lisboa reitera a sua política de neutralidade, e acrescenta: "deseja lealmente declarar que não aprova nem cumpre a política definida pelas Nações Unidas na matéria; mas deseja também afirmar categoricamente que em nada tem contribuído para a derrota da mesma política"; e a explicação desta terá de ser encontrada por outra forma. De tudo, o governo português tira as suas conclusões: para bem dos povos, a cooperação entre todos na África Austral parece indispensável; consegui-lo é dever dos governos responsáveis; "não é seu dever prestar-se ao jogo de interesses e forças alheias à África". E assim "afigura-se chegado o momento de se rever uma política que não tem decerto sido um êxito", e "a República da Zâmbia poderia desempenhar um papel decisivo neste contexto" (Por muito longo, é impossível transcrever na íntegra o memorandum português. Será todavia de interesse a citação de mais uma passagem: "Por outro lado, é geralmente reconhecido que a África Austral constitui uma área específica, com os seus problemas próprios, em nada ligados aos do resto do Continente. O governo português, interessado na estabilidade e progresso daquela área, está pronto a dar uma contribuição positiva, mas apenas se a mesma for desejada. No comércio, na economia, nas comunicações, nos transportes, na saúde, na assistência técnica, e em muitos outros campos não políticos se pode assentar uma cooperação frutuosa para benefício das populações". Este memorandum foi elaborado no MNE e aprovado por Salazar em 20.X.67; mas apenas entregue mais tarde). Deste modo, o governo português notifica o presidente zambiano de que a sua política hostil a Portugal, ou a sua anuência a que da Zâmbia se conduza uma política hostil a Portugal, tem de cessar; no caso negativo, toda a cooperação portuguesa será impossível, e a Zâmbia ver-se-á asfixiada como país interior; no caso afirmativo, as mais amplas perspectivas se podem abrir a todos. Portugal reafirma-se assim como condutor de uma grande política no Sul de África: como intermediário entre uma África negra e uma África branca; como impulsionador do progresso e desenvolvimento; e como garante político, e quase que militar, da integridade territorial dos países da zona. Manuel Fernandes é bem acolhido. Kaunda não oculta quanto o impressionam as atitudes de Lisboa. E quando em fins de Novembro de 1967, Fernandes regressa a Lisboa, é portador de uma carta pessoal do presidente zambiano para Salazar: compreendeu a situação em que se encontra, está pronto com a discrição necessária a um gradual estreitamento de relações com Portugal como potência africana.»

Idem, ibidem, pp. 304-308.






«Por outro lado, em Nova Iorque, o secretário-geral da ONU, na Comissão de Colonialismo, critica Portugal por se recusar a aplicar a autodeterminação aos seus territórios de África. Mas àquele alto funcionário responde Lisboa vivamente: o secretário-geral não pode aplaudir ou condenar as resoluções aprovadas nem emitir juízos de valor sobre a posição de cada governo; e teria sido preferível que se mantivesse silencioso enquanto se recusa a aceitar os numerosos convites que Portugal lhe tem dirigido para visitar a África portuguesa.»

Idem, ibidem, pp. 322-323.


«(…) é assinalada na imprensa da metrópole e do ultramar uma data de relevo: 15 de Março. Há sete anos volvidos foi o Norte de Angola invadido pelo terrorismo, e este, em dois ou três anos, ganhou a Guiné e o Norte de Moçambique; e o mundo dir-se-ia erguido em armas para destruir Portugal em África.»

Idem, ibidem, p. 329.


«Com efeito, nestes últimos dias de Março de 1968, de novo o bloco afro-asiático tenta reunir em Nova Iorque o Conselho de Segurança, e a situação rodesiana constituirá o ponto em debate. De algum modo, Lisboa antecipa-se, e em 20 daquele mês envia ao presidente daquele orgão da ONU mais uma nota. Que diz? Em comunicações precedentes, já se informara que, por virtude de medidas tomadas contra a Rodésia, a província de Moçambique sofrera prejuízos de cerca de quinze milhões de libras, até ao fim de Setembro de 1967. Desde então, novos danos foram infligidos, e somam mais de dois milhões de libras. Nestes termos, e até ao momento, a ONU deve a Moçambique mais de dezassete milhões de libras esterlinas: quando podem começar as conversações para se acordar na forma de pagamento? Não responde o Conselho, e nos meios que lhe são afectos têm virulência as discussões. Por parte  dos extremistas tudo é exigido: sanções contra Portugal e a África do Sul, guerra a Portugal ou à África do Sul, ou a ambos.»

Idem, ibidem, p. 330.


«Interpõe-se neste lance um incidente inusitado: um bimotor de fabrico russo, com matrícula da República da Guiné e ostentando as suas cores nacionais, aterra na Guiné portuguesa, e verifica-se que transporta uma delegação do Mali e dois tripulantes de nacionalidade guineense. É logo autorizada a seguir ao seu destino a missão maliana. Mas o avião e os seus tripulantes são internados. E o governo de Lisboa declara: terroristas vindos da República da Guiné capturaram em território português cinco militares portugueses, entre os quais o sargento António Lobato, da Força Aérea; o governo da República da Guiné tem consentido e é conivente na manutenção daqueles militares em território seu, em regime de cárcere privado; e assim o governo português apenas entregará o avião e os seus tripulantes quando forem libertados os cinco militares portugueses.

(…) Dirige-se ao gabinete de Lisboa o governo alemão e pede, em nome da República da Guiné, que sejam libertados os nacionais guineenses e devolvido o avião de fabrico russo. Logo após, é o presidente Sekou Touré que telegrafa pessoalmente a Salazar. Diz Touré: como a Guiné não está em guerra com Portugal, "é injustificável a posição assumida"; e por isso insiste pela libertação dos prisioneiros. Comenta Oliveira Salazar: exactamente porque a Guiné não está em guerra com Portugal, como justifica o presidente Touré a detenção, no seu território e há anos, de portugueses de que os terroristas se apoderaram em território português? Não entrega Lisboa os seus detidos; e confia ao governo de Bona uma possível mediação que conduza a uma troca.»

Idem, ibidem, pp. 335-336.


«Pelo mundo além há agitação inquieta. Entre os estudantes, antes de outros. Em Espanha, são encerradas três universidades; no Rio de Janeiro têm gravidade os recontros com a polícia, e há mortos e feridos; lavra a violência nas escolas peruanas; produzem-se choques brutais na Inglaterra e na Itália; e é sem mercê a luta na velha Universidade de Lovaina. É também virulenta a situação em muitas instituições de ensino superior nos Estados Unidos. E aos dos estudantes juntam-se naquele país os conflitos de raça. Na cidade norte-americana de Detroit, reúne-se um congresso negro que exige a independência de uma nova república, a formar com quatro ou cinco estados do Sul; e o congresso recomenda aos negros americanos que desçam à rua, abandonem a nacionalidade americana, e iniciem a luta pela independência por negociação, ou por secessão, ou por ambas. Precisamente, acaba de ser assassinado, na cidade norte-americana de Memphis, um dos mais destacados chefes espirituais dos negros americanos, Martin Luther King. Era eloquente orador, membro da Igreja Baptista; apresentava-se como paladino dos princípios de não-violência na conquista da igualdade racial; e recebera em 1964 o Prémio Nobel da Paz, atribuído como apaziguamento político. Pela mesma altura, o presidente Johnson, alquebrado pelo conflito do Vietname, declara que se não candidatará mais à Casa Branca. Parecem os Estados Unidos mergulhados assim em crise moral, e de valores. E em muitas cidades americanas há um surto de tumulto e destruição. Washington está em pé de guerra; e a Casa Branca tem de ser protegida por nichos de metralhadoras. Pelo mundo há luto à morte de King; e em homilia na Basílica de S. Pedro, o papa Paulo VI traça um paralelo entre o assassinato do pastor negro e a Paixão de Cristo. E no entanto, King, sob a aparência da legalidade e da paz, estava longe de ser um pacifista e um moderado. Comenta Oliveira Salazar: "se eu fosse assassinado, não haveria um telegrama, nem um padre-nosso"».

Idem, ibidem, pp. 334-335.


«Em Lisboa, a atitude isolada de um sacerdote assume proporções de escândalo público, e faz estremecer os meios católicos portugueses: o padre de Santa Maria de Belém, José Alves, numa carta que circula com larga difusão, contesta o papado, condena o clero, defende a completa laicização da sociedade civil, advoga a abolição da estrutura episcopal, nega o direito divino da hierarquia, denuncia o que tem por conluio entre os eclesiásticos e os poderosos do mundo (capitalistas, governantes, forças militares e policiais), reivindica uma justiça social que afirma só o poder resultar de uma "clara e completa socialização ou comunismo", e proclama em suma a necessidade de uma "revolução total", com "mutação (nalgumas versões em vez de mutação aparece a palavra destruição) rápida e total nas estruturas vigentes, jurídicas, económicas, sociais, políticas, culturais, e instauração de uma ordem radicalmente nova". É de ostensiva insubordinação contra o magistério e a disciplina da Igreja a atitude do sacerdote, e fica perturbado o cardeal Cerejeira, para mais seu amigo pessoal; mas antes de tomar medidas procura saber se aquele está pronto a uma explicação ou reconsideração; escreve ao pároco de Belém, que de momento se encontra em Paris, duas cartas que não lhe chegam às mãos, dadas as perturbações em França; o patriarca aproveita então como intermediário o bispo D. Manuel Falcão, que tem de se deslocar àquela cidade, e que se avista com o padre Alves; e este, além de rejeitar qualquer retratação e insistir nas suas teses, envia ao cardeal dois longos textos de ironia, de troça, mesmo de sarcasmo, em que se situa fora de toda a ordem hierárquica e atinge a pessoa do patriarca (Nas suas cartas, o padre Alves reclama julgamento num tribunal eclesiástico, repele o que classifica de repressão autoritária, recusa-se a pedir a demissão de pároco, e reivindica o direito de, como padre, se ocupar de assuntos políticos, desde os problemas de direitos humanos até às questões de África. Neste particular, diz: "o ponto crucial é o problema colonial" que classifica de "mito nacional"). É afastado de Belém o pároco. Exultam alguns círculos progressistas com a rebeldia do sacerdote, que além de tudo procura escudar-se em documentos do Concílio Vaticano II, interpretados a seu jeito; mas foi tão extremista e virulento que é quase geral, na massa dos fiéis católicos, o repúdio do seu comportamento e o apoio ao patriarca de Lisboa.»

Idem, ibidem, pp. 354-355.


«Decorre a este tempo em Portugal o XII Festival de Música, promovido pela Fundação Gulbenkian. Na noite de 6 de Junho de 1968, em grande espectáculo, o Coliseu de Lisboa tem esgotada a sua lotação: apresenta-se o bailado Romeu e Julieta, baseado na sinfonia de Berlioz, e posto no palco pelo Ballet du XXème Siècle, organizado e dirigido por Maurice Béjart. Para sublinhar o drama do amor e do ódio, e salientar o seu contraste, é vincada numa última cena do bailado um grito, um estribilho que se lança aos homens: façam amor, não façam guerra. E Béjart, num epílogo, põe locutores invisíveis a propagar, em diversos idiomas, notícias imaginadas de revoltas, guerras, lutas e tensões sociais; cita-se o conflito do Vietname; e tudo é enquadrado no mesmo repto: façam amor, não façam guerra. Rompe o público em aplauso, e Béjart vem à boca da cena. Indica que pretende pronunciar apenas algumas palavras, e diz: "Robert Kennedy foi assassinado hoje (como se assinalou, o atentado contra R. Kennedy, é de 4.VI.68, mas a sua morte apenas se verificou efectivamente em 6.VI.68), vítima da violência e do fascismo. Contra todas as formas de violência e de ditadura, peço-vos um minuto de silêncio". Respeita a assistência o silêncio requerido, e depois novos aplausos saúdam Béjart e o seu corpo de baile. Ao outro dia, a 7, pela manhã, Salazar é informado do que se passou no Coliseu. Considera que Béjart fez um apelo ao pacifismo, lançou um grito de derrotismo, e condenou a autoridade, ainda que esta actue em legítima defesa. Reunido nessa manhã com os seus colaboradores para esta matéria - o ministro do Interior, o subsecretário da Presidência do Conselho - o chefe do governo assenta na proibição de mais espectáculos e na imediata saída de Béjart do território nacional. Ao público é dada conta numa nota distribuída à imprensa pelo Secretariado Nacional de Informação: "foram dirigidas à juventude exortações derrotistas e tomadas atitudes de especulação política inteiramente estranhas ao próprio espectáculo. Perante a luta que temos de manter em defesa da integridade nacional, não pode consentir-se que uma companhia estrangeira aproveite, abusivamente, um palco português para contrariar objectivos nacionais". É no momento, e para este bailado, encerrado o Coliseu; e Béjart abandona Portugal. Há excitação nos meios da música e da arte; escritores, artistas, músicos, bailarinos não calam o seu protesto; e mostra-se particularmente magoado o presidente da Fundação Gulbenkian, Azeredo Perdigão. Justifica-se Salazar: "a autoridade tem de intervir logo, não pode hesitar, nem esperar por um segundo desafio" [Em 1998, o então presidente da República, o socialista Jorge Sampaio, teve o vil desplante de condecorar Maurice Béjart com o grau de grande oficial da Ordem do Infante D. Henrique]».

Idem, ibidem, pp. 355-356.







Maurice Béjart






























«Depois, troca de assunto o jornalista [da revista argentina Extra, em entrevista a Oliveira Salazar por este concedida a 27 de Abril de 1968, e entretanto publicada no seu número de Junho]: o mundo sente-se molestado porque Portugal insiste em manter a sua autoridade em Angola, Moçambique, Macau, e outros territórios: que diz neste particular o chefe do Governo? Replica Salazar: "O mundo? Não. Apenas os interesses de um certo mundo". E comenta: a má informação norte-americana leva a confundir as coisas; é estranho que um país, incapaz de integrar pretos e brancos na sua sociedade, seja partidário de uma autodeterminação em África numa atitude demagógica e irresponsável; e "não sei se um dia não acordaremos perante uma guerra civil nos Estados Unidos"».

Idem, ibidem, p. 368.


«Ao tempo em que se encontra em Portugal a delegação brasileira e é publicada a entrevista da Extra, a República do Congo mais uma vez se queixa contra Portugal ao Conselho de Segurança: soldados portugueses teriam de novo atravessado a fronteira de Angola e penetrado em território congolês: e algumas aldeias congolesas haveriam sido alvejadas por obuses portugueses. Nos primeiros dias de Julho de 1968, Lisboa repudia as alegações do governo de Kinshasa. E sublinha: o gabinete português declina qualquer responsabilidade, cabendo esta apenas ao governo congolês, que autoriza e auxilia a agressão contra Angola, e além do mais as queixas, por tão repetidas e sempre sem fundamento, não podem estar mais desprestigiadas. Mas tudo é já parte de uma rotina que não impressiona ninguém.»

Idem, ibidem, pp. 369-370.


«E recebe de Cunha Leal mais uma exposição sobre o regime português, a política de África, os erros e os vícios do governo. Para os seus colaboradores, comenta Salazar: "Lá recebi mais uma exposição do Cunha Leal dizendo que tudo quanto fazemos está errado, e que o que verdadeiramente corresponde aos interesses nacionais é fazer o que os estrangeiros recomendam". E sublinha com amargura: "Quando penso na minha retirada, pergunto-me o que vai ser o futuro. Depois de mim, vai ser uma confusão!!» Como em momentos anteriores repete entre sardónico e divertido: "Notem: por mim, não me importava de uma certa confusão, uma certa polémica, um certo diz tu, direi eu". E outra vez a sério: "Mas não podemos, temos problemas morais, o Ultramar a defender, não podemos permitir-nos o luxo do debate político permanente". Remata Salazar: "E tenho pena, tenho pena dos senhores. São muito novos, vão passar por uma grande confusão, muito vão sofrer"».

Idem, ibidem, p. 376.










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