quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Tóquio

Escrito por Franco Nogueira







Pintura de Edo (século XVII).


Vista panorâmica de Shinjuku


Bandeira de Shinjuku


Torre de Tóquio


Arena de Sumo em Tóquio







Bandeira de Tóquio









«Vou agora referir-me a (…) vestígios de mínima importância mas ainda de interessantíssima menção, que ficaram da nossa passagem no Nippon. Estes vestígios encontram-se na linguagem japonesa. Começo por dizer que, na sua escrita ideográfica, os japoneses escrevem com três figuras a palavra "Portugal". As duas figuras superiores querem dizer budô (uvas, vinha); de sorte que a rigorosa denominação da nossa terra seria para eles - o País das Uvas - ou, por extensão - o País do Vinho... Irónica divisa, quando se tenha em conta a raridade de vinho português em terras do Japão; e em todo o caso, comprovativa da remota fama vinhateira da pátria de Mendes Pinto e dos que lhe sucederam.

Os portugueses trouxeram ao Japão ideias novas, objectos novos. Disto resultou naturalmente a adopção, na linguagem do país, de muitos termos nossos; dando-se ainda a circunstância favorável de uma notável semelhança de pronúncia nas línguas faladas dos dois povos. Avultam, como facilmente se imagina, os termos religiosos; muitos deles ainda em uso, posto que os padres franceses, pastores actuais do minguado rebanho dos católicos nipónicos, cuidem de substituir estas palavras por outras, etimologicamente nacionais. Cito alguns exemplos: Kirisuto (Cristo), Yaso (Jesus), Kirisutan (cristão) Bataren (padre), Kontasu (contas, rosário), Anima (anima, alma), etc.

Depois, vêm os nomes das coisas: botan (botão), birôdo (veludo), bôto (bote), bidôro (vidro), koppu (copo), mantéru (mantel), kappa (capa), mantô (manto), pan (pão), shabon (sabão), kompeitô (confeito), saberu (sabre), etc.

Os japoneses dizem: tempura (de "tempero", ou de outro termo parecido). Tempura é qualquer artigo de cozinha, frito em azeite; correspondente ao nosso actual vocábulo "fritura". A palavra é também conhecida em África, de importação portuguesa, claramente; eu conheci, em Moçambique, uma negra que se chamava Tempura

Wenceslau de Moraes («O Culto do Chá»).


«... na tarde do dia 19 de Fevereiro, o ministro do Japão comunica a Teixeira de Sampaio que forças nipónicas se tinham visto "obrigadas" a empreender a expulsão das tropas holandesas e australianas do Timor português. Acrescenta o enviado japonês: trata-se de uma acção de legítima defesa, a integridade territorial portuguesa será respeitada enquanto Portugal se mantiver neutral, os exércitos imperiais retirarão logo que cumprido o seu objectivo. Não é disfarçado pela doçura das palavras e pelos propósitos o carácter de invasão que assume o acto japonês. Sampaio reage; e quando, às dez e meia da noite, o ministro de Tóquio entrega a Salazar a comunicação escrita, este não oculta a sua surpresa, a sua mágoa, o seu protesto. E acentua que o governo de Tóquio sabia que dentro em muito pouco aportariam a Timor forças portuguesas para restabelecer a soberania legítima: por nenhum título tem justificação o acto decidido pelo governo nipónico. E Salazar manda repetir em Tóquio o seu protesto. Determina que este seja feito com relativa moderação: não se esquece de que as forças japonesas no Sul da China cercam Macau.

De novo se apresenta Salazar, a 21, perante a Assembleia Nacional. Está sereno, frio, nítido, impecável, formal no seu jaquetão preto e calça de fantasia; na sua frente, numa salva de prata, um cálice do vinho do Porto; e agora, para ler, usa uns óculos frágeis, que são apenas uma meia-lua em vidro. Expõe os factos descarnados: fora gratuito o acto japonês: o governo de Tóquio estava informado de que iam a caminho, já em pleno Índico, forças portuguesas: dentro de dias sairiam de Timor as tropas holandesas e australianas: e os termos correctos em que é feita a comunicação não invalidam a extrema gravidade dos factos. E no plano dos princípios há que condenar a acção japonesa: porque "não há direitos de estratégia contra a soberania das nações" e porque "a violação de um direito por uns não legitima a violação do mesmo ou de diverso direito por outros". E nem o Império Nipónico, com "a declaração de amigáveis sentimentos para connosco e dos seus propósitos de abandonar Timor, pode fazer calar o nosso protesto e abafar a nossa mágoa". Salazar é firme, digno, vivo no seu clamor contra a nova agressão: mas não é violento, nem mesmo duro: para além de Timor paira o espectro da tomada de Macau.

Por todo o país, na opinião pública, suscita-se um sentimento de pesar e de indignação: considera-se perdido o território: e alguns antevêem a próxima entrada de Portugal na guerra.»

Franco Nogueira («Salazar - III»).








«Em 15 de Agosto, o discurso do imperador foi difundido pela rádio ao seu povo para o informar da infeliz situação. Foi a primeira emissão de rádio com o imperador e a primeira vez que a vasta maioria dos seus súbditos o ouviu falar. A sua linguagem de corte, refinada e arcaica, estava tão longe da linguagem do dia-a-dia que muitos simplesmente não entenderam o que dizia e tiveram de se socorrer da interpretação de outros. Mesmo os que entendiam a linguagem nem sempre entendiam o que ele queria dizer, porque os seus termos eram vagos e não se referiam explicitamente à "derrota" nem à "rendição". Em vez disso, mencionou o facto de a "situação de guerra não se ter necessariamente desenvolvido de maneira favorável ao Japão" e fez com que parecesse que o país tinha decidido parar de combater para salvar a humanidade da ameaça de destruição pelo Ocidente, não porque o Japão estivesse derrotado.

Todavia, a mensagem acabaria por passar: o Japão tinha perdido a guerra. A assinatura formal da Acta de Rendição teve lugar algumas semanas mais tarde, a 2 de Setembro, a bordo do navio Missouri, dos Estados Unidos, na baía de Tóquio. Seguira-se a um édito imperial, que saíra nesse dia, autorizando formalmente a assinatura da rendição e ordenando a todos os súbditos japoneses que a honrassem.

Nos seus 14 anos de guerra, começando com o Incidente da Manchúria, em 1931, o Japão sofrera quase três milhões de baixas militares e mais de meio milhão de baixas civis. A maioria das baixas tinha ocorrido nos quatro anos da Guerra do Pacífico. Para o Japão, todos os sacrifícios tinham sido em vão, tendo sofrido a primeira derrota numa guerra (não em batalha) e tendo também agora de sofrer a primeira ocupação estrangeira na história do Estado de Yamato. Há quem afirme, dentro e fora do Japão, que a derrota foi de algum modo injusta, devido à utilização de bombas atómicas, mas essa perspectiva ignora simplesmente o facto de, mesmo em termos de guerra convencional, o Japão ter sido completamente derrotado.

Numa carta para o seu filho Akihito, datada de 9 de Setembro de 1945, Hirohito atribuiu a derrota ao facto de se ter subestimado a Grã-Bretanha e a América, à confiança excessiva no espírito, por oposição à ciência, e a líderes militares arrogantes que só sabiam avançar.

O Japão tinha-se tornado numa importante potência mundial, mas as suas ambições tinham visado demasiado alto. Soseki vira bem. A rã inchara até rebentar. O orgulhoso Japão do Período Meiji estava agora, no reinado de Hirohito, numa situação de humilhação. Em certo sentido, tinha sorte de estar ainda nalguma situação, porque não eram poucos os que, entre os aliados, pretendiam a destruição total da nação. Ao que parece, até o humanitário Roosevelt alimentou ideias de eliminar a raça japonesa da face da terra.

Hirohito pode ter tido razão em criticar o excesso de espírito japonês como causa da sua queda. Todavia, seria necessário agora uma extraordinária força de espírito para que a nação se voltasse a erguer e se tornasse uma potência respeitada.»

Kenneth Henshall («História do Japão»).




TÓQUIO


TÓQUIO, 26 DE JANEIRO [DE 1946]


Entro na avenida espaçosa: edifícios só a uma banda, todos tomados pelos americanos, e do outro lado, um canal de água verde-escura. Cruzo um soldado de ocupação: mira-me com o pasmo de quem pensa que, à parte o japonês, só americanos devem palmilhar o Japão. Para além, abrigado por detrás da muralha de pedra negra e oculto por pinheiros, fica o Palácio Imperial. É o coração de Tóquio. Construções não se descortinam, e não se vê sinal de presença humana. Mas no morro rodeado de água, cidadela de mistério ao sabor medieval, ocultando o chefe do convívio e do olhar dos mortais, habita Hirohito, o todo poderoso que não há pouco declarou nada ter de divino ou sobrenatural no físico e no espírito. Continua-se junto ao canal e há um pontão, assente em dois arcos de pedras: vai dar ao Palácio. E as portadas de madeira que se avistam ao fundo estão cerradas, e duas sentinelas americanas, de carabina, impedem qualquer passante.

Diante do portão avisto um ror e achego-me para observar a coisa ao vivo. Muitas dúzias de japoneses, bem à vontade duas centenas, procedem ao ritual de cumprimentar o seu Senhor. Surgidos de todas as esquinas da avenida larga, acercam-se lentamente, o passo leve e respeitoso e o aspecto grave de quem penetra no templo. Param à beira do canal, desbarretam-se, despojam-se dos seus andrajos exteriores, e tudo colocam em trouxa no chão. Depois, muito firmes e inteiriçados, os braços caídos e retesados como em sentido, encaram o morro do Palácio Augusto. Feições decompostas pela unção religiosa, olhares densos de convicção íntima, estão longo tempo embevecidos em contemplação amorosa. De súbito, curvam-se para a frente, profundamente, o corpo quase em ângulo recto, as mãos apoiadas nos joelhos, a cabeça pendida, o queixo a tocar o peito. Faz frio e faz vento: mas correm minutos e estão assim imóveis, humilhados, aniquilados. É com brusquidão que tornam a si e, não obstante só lhes haver respondido o silêncio e a nudez da muralha negra, têm o ar gozoso dos bem-aventurados e a beatitude perfeita de quem viveu no âmago do divino. E são grupos de homens, feros como pinheiros novos ou já avelhados; são mulheres em toda a escala de idades e de condições sociais; e são crianças que, sem embargo da democracia agora apregoada, desabrocham para a vida no culto imperial.






Surde ao meu lado o italiano do risotto e tira-me do pasmo:

- Agora vêm aqui voluntariamente, porque assim lhes apetece. Mas antes e durante a guerra a reverência ao Palácio Imperial era colectiva e obrigatória. Quando os eléctricos ou omnibus cruzavam defronte do Palácio, o condutor parava e a um sinal seu todos os passageiros se erguiam e inclinavam-se, de barrete ou chapéu ocidental na mão, a cumprimentar na direcção do morro. E ai de quem o não fizesse! Depois o veículo seguia. E se acaso algum estrangeiro ia também, era olhado com raiva hostil porque se abstinha da reverência. Desde a rendição tudo mudou e temos vida nova. Mas veja como a coisa ainda está arreigada!?

- Mas então - observo - não parece que a alma dos japoneses em geral se tenha alterado muito!?

- Pois não, de facto. Pelo menos até agora. Há quem acredite que mudarão. Não sei; mas eu, por mim, com muitos anos de Japão, não creio!

Regresso com o italiano ao hotel e digo para mim que tem interesse este povo batido que não desfalece na coragem das suas convicções e cuja alma não oscila facilmente ao sabor do desastre militar.


TÓQUIO, 1 DE FEVEREIRO


Há dias pedi ao intérprete que me arranjasse uma colecção de jornais do tempo da guerra e anteriores. Jornais em inglês, está bem de ver, destinados à comunidade estrangeira do país ou para exportação, porque o periódico japonês está vedado ao infeliz que não penetre o mistério dos ideogramas. Mas no que toca à substância equivalem-se uns e outros, ao que me dizem: toda a notícia era ditada pelo Governo e nenhum particular, por mais comezinho, ficava ao critério privado. Tudo tinha que ser condizente e afeiçoado ao esforço de guerra e ai de quem se não conformasse: a polícia possuía mil olhos e não sentia escrúpulo em suprimir qualquer.

Da resma de jornais que devorei uma impressão me ficou: o japonês jogou o todo pelo todo, em pleno. Tudo foi subordinado ao propósito da vitória: considerações e interesses pessoais não existiram e os sacrifícios fizeram-se por bitola grande, logo de início.

Dum liberalismo mais ou menos anódino, formal na essência e praticado apenas como decalque do Ocidente, passou-se ao autoritarismo que faz agir e pensar como um só rodízio. Dantes, partidos havia vários, democráticos ou socialistas por rótulo; as eleições tinham aspectos de liberdade, muito embora mais ainda do que na Europa a corrupção fosse de rigor; e a Dieta era o parlamento onde discutiam com cerimónia e fleuma os representantes dos antigos clãs feudais do Japão Velho. Por mais de meio século assim se viveu: foram os bons tempos que se sucederam ao Imperador Meiji, à extinção dos daimios e samurais, à reviravolta que do isolamento de eremita trouxe o país ao convívio do mundo e da modernização. Apetrechou-se o povo, criou-se riqueza, distribuía-se prosperidade. A vida era boa e o Japão frisou com os grandes da Terra. Mas o edifício ficou pesado para a base. E então principiaram os sonhos e a nação meteu-se à forja a temperar o gládio. Quando decidiu a grande aventura, não hesitou mais: preparou corpo e alma para o que desse e viesse. E fê-lo com espírito de jogador: arriscou em cheio numa carta.

No material e mecânico, reuniu quanto pôde. Armou-se durante anos, e na refrega utilizou tudo duma assentada, sem guardar reservas e em luta sem quartel. Externamente, enfileirou com os que na altura pareciam futuros triunfadores: alemães e italianos. Mas foi no moral, principalmente, que se construiu mais sólida armadura. Neste particular, não deixa dúvidas a crónica da vida japonesa antes e durante a guerra, mesmo censurada como foi. No noticiário do dia-a-dia se descobre o esforço para fazer da nação um todo homogéneo e inteiriço, duma só fé. Não tinha limites a propaganda, nem no bom senso; e todos os meios foram óptimos ao fim almejado. Por anos de catequese incutiu-se no povo a convicção da sua origem celeste, da divindade da sua raça. Daqui a afirmar o seu direito ao reinado universal foi um salto fácil. E o japonês deu o salto, muito senhor de si. Tudo que tivesse sabor a estranho, foi abafado: o culto budista, com raízes de séculos no país, foi abafado, porque não era autóctone; o cristianismo, que por estas paragens nunca desabrochara além da infância, foi perseguido; e só se deu carta branca ao xintoísmo nativo, apoiado pelo Estado. Com ele aferverou-se o amor aos antepassados, reavivou-se a disciplina austera da família. Desenterraram-se velhas figuras da gesta antiga, e apontaram-se as suas façanhas como padrão que seria crime de lesa-pátria não adoptar. O elogio do herói era repisado em cada dia, e da veneração pela guerra passou-se ao endeusamento em vida dos que iam morrer. A religião imperial recebeu um novo alento; descobriram-se documentos irrefragáveis a provar a descendência celeste do Imperador; e o Filho do Céu e representante directo da Deusa Sol assumiu as proporções do sobrenatural que aterra os mortais apenas com o pavor da sua presença. O povo sentia o orgulho das raças patrícias e a nação ficou possessa da mística que leva à cruzada. Expandiu-se, irradiou e ficou cega pela perspectiva. Não era já apenas a ânsia dum Japão maior; foi a crença na responsabilidade de libertar a Ásia do escalracho ocidental. Para isso invadiu a China e seguiu para o sul. Mas os demais potentados, desta feita, resolveram erguer uma barreira ao sonho imperial. O japonês então protestou, clamou que o queriam esmagar, e rompeu fogo com desespero sem aviso.









Um B-29 sobre Osaka (1 de Junho de 1945).


Formação de bombardeiros B-29 sobre o Monte Fuji-san.


Tóquio em chamas (1945).









Bombas incendiárias lançadas sobre Kobe (4 de Junho de 1945).


"Little Boy"










Hiroshima antes do bombardeamento atómico.






Hiroshima (6 de Agosto de 1945).



Hiroshima após o bombardeamento atómico.


















"Fat Man"







Nuvem atómica sobre a cidade de Nagasaki.






Nagasaki antes e depois do ataque nuclear.



O hipocentro da explosão atómica sobre Nagasaki.












Castelo de Hiroshima


Hiroshima


Bandeira de Hiroshima



Ver aqui


Hoje, dos píncaros do poderio rolou para a derrota sem apelo imediato. Foi zurzido sem piedade e não ficou pedra sobre pedra. No material, e à superfície, o país é um destroço e não há remendo possível: tudo terá de ser refeito. No moral, pior ainda. Dos seus credos todo o mundo se ri, impunemente; minimizam-se as suas virtudes; e a terra, pela primeira vez na história, está ocupada por aqueles que ontem eram bárbaros de desprezar. Os seus inimigos não se podem apontar: porque todos se arrogam essa qualidade. Chineses e coreanos, inclusive, sem embargo da fraternidade rácica, comungam na raiva colectiva. Dir-se-ia o esbarrondamento de uma história, de uma ética, de uma religião, de um povo em suma. De espantar é que o país não se debata no caos, procurando deslocar para novas bases os quadros nacionais. Dentro das normas, uma convulsão genérica seria o mínimo a esperar: equilíbrio social perdido, busca às cegas de novo padrão de valores, procura de sonho ou miragem que acalentasse ilusões sobre o porvir e ajudasse a manter, como é próprio de todo o homem, uma quanta alegria na vida. Mas não: aparou o bote e não perdeu a calma. Houve exaltados moídos de desespero, sem dúvida. Na altura da crise suprema, que levou à rendição, grupos de oficiais perdidos no naufrágio tiveram visões de apocalipse: queriam a luta até ao derradeiro alento e estocada final, o massacre voluntário e glorioso, o harakiri nacional. Frustrados no intento, esfaquearam-se tranquilamente, numa poça de sangue, olhando o Palácio Imperial. À parte isto, o sossego foi a regra. A massa agiu à voz do Imperador como um todo. Está agora abatida, mas quieta apesar de tudo.

Evidentemente: a ordem nas ruas é mantida pelos conquistadores. Mas a julgar pelas aparências, não creio que a tarefa do ocupante seja neste particular muito dura. Precauções militares de vulto não se descobrem; à entrada de quartéis e repartições do americano há uma ou duas sentinelas, com ar vago, distraído e bem humorado; e as guarnições, de pequeno efectivo a maior parte das vezes, estacionam dispersas e isoladas pelos quatro cantos do país. Entretanto, os americanos vão sós por todo o lado, de dia ou de noite e desarmados, mesmo por becos retirados e escusos. Um qualquer, sem companheiro, embrenha-se entre japoneses nos eléctricos. Por regra, nem reparam; mas se o fazem é para lhe sorrirem, darem lugar mais cómodo ou ajudarem a achar a rua ou o caminho, e sempre prestimosos e solícitos. Não se percebe animadversão. Nem sinceridade tão pouco.

Entretanto, como será o dia de amanhã japonês? De positivo só há dúvida. Trabalhar, decerto, e enrolar bandeiras à espera de melhores tempos. Para além disto, o horizonte tapa-se.


(…) TÓQUIO, 4 DE FEVEREIRO


Dia horrível! Tem caído toda a santa manhã uma chuva grossa, fustigada contra a janela por ventania rija. Para lá da cerração espessa e grisalha, mal soletro os contornos dos prédios fronteiros; e de testa apoiada nas vidraças vejo escorrer rente aos olhos os borbotões de água sempre renovada. Na rua, de longe em longe, caminha um japonês lento a patinhar na lama ou passa de escantilhão um automóvel americano, desabrido e indiferente, a lançar para os lados a água das poças. À parte isto, tristeza imensa.

Esmagado entre as quatro paredes acanhadas do meu cubículo, resolvo sair pela meia tarde, apesar do dilúvio. Bato ao ferrolho de J.D., francês que conheci há dias no hotel, aonde tem o hábito de ir uma noite por outra para o cavaco. Está no Japão passa de oito anos, e agora dirige o Instituto Franco-Japonês de Tóquio. Vou encontrá-lo, aquecendo-se entre dois radiadores eléctricos, a recortar e colar artigos de jornais nipónicos.

Palavra puxa palavra e vamos para o tema já estafado: o que é a massa do povo japonês? Como pensa e que sente?

- É um povo pouco feliz - diz J.D. em nome da experiência. O Inverno aqui é uma geleira e vai assim até Abril. As casas não se prestam para instalar sistemas de aquecimento e o carvão é escasso. Por outro lado, o país é abundantíssimo em nascentes naturais de águas quentes. Resultado: utilizam o que têm à mão, prodigamente, pelo preço dos fósforos ardidos. E estão sempre no banho, tomam-no a escaldar, a ferver quase, numa temperatura para nós insuportável. Além disso, há uma razão científica: está provado que neste clima de frio húmido intenso os mergulhos amiudados em água quente têm uma acção emoliente e benéfica sobre os músculos e tecidos e evitam um ror de achaques. E veja agora: destruídos os balneários públicos pelos bombardeamentos, desorganizados os serviços, tudo treme de frio.

Falo das casas, dos lares japoneses: ao que relatam livros e viajantes são um primor de conforto.






Kakemono



Getas


- Aos nossos olhos ocidentais, numa vista sumária, são agradáveis, e têm ar escarolado porque são vazias. Uma sala japonesa tem uma jarra com uma flor, um kakemono dependurado, uma mesinha pequena alta de palmo, duas almofadas, e é tudo. É uma nudez que nos cria uma impressão de bem estar. Mas não é assim. A culpa da lenda cabe em boa medida aos Lotis, aos Dekobras e outros diletantes. Passaram por aqui como turistas, o japonês oficial trouxe-os nas palminhas e depois eles escreveram umas farfalheiras de prosa tola. Você vai ficar por cá. Você vai ver. Há-de verificar que no Japão, como em quase todos os países aliás, as coisas se explicam umas pelas outras. Os interiores das habitações parecem escarolados porque são nus, e são nus porque as construções, de madeira e pasta de papel, não aguentariam mobiliário pesado ao nosso estilo. E as construções são assim porque o japonês é desprovido em materiais de edificação ricos ou mais duradouros, como a pedra ou o granito, e tem de ser assim porque há tremores de terra que de vez em quando fazem tudo raso. Casario pesado a ruir seria uma calamidade pública, ao passo que as barracas de madeira mexem, às vezes até se viram, mas resistem mais, e se vêm abaixo não são tão perigosas para o próximo.

Mas há grandes edifícios ocidentais no centro de Tóquio, construções maciças de cantaria!?

- Sim, mas essas foram construídas com materiais importados e custaram preços de ruína. Até há moradias de alguns príncipes ou de graúdos da finança todas importadas de França. Tudo isso é excepção! A população, a que paga o imposto e lavra a terra, não poderia com tais despesas. Além disso, não está ainda provado que resistam a abalos violentos como o de 1923: todas foram feitas depois disso. Não, o tipo de casas que usam é o que as circunstâncias impõem. E porque os lares são vazios e não têm mobília, o japonês foi levado a sentar-se no chão, de perna cruzada, e por isso quase todos têm as pernas tortas e grossas, desproporcionadas ao tronco. Passam longas horas, às vezes dias, em tais posições e isto, através de gerações e durante séculos, definha o organismo, dificulta a circulação, atrofia os membros. É por isso que andam devagar e quando esperam qualquer coisa, na estação do comboio ou na bicha do cinema, sentam-se logo sobre os calcanhares. Muitos deles têm as plantas dos pés completamente chatas. Porquê? É que há séculos que andam sobre as getas, as tabuinhas lisas de madeira. As próprias escolas primárias não têm cadeiras nem carteiras, e logo desde criancinhas principiam a entortar as pernas. Curioso: as crianças de famílias católicas têm as pernas direitas e são mais bem feitas e desempenadas. Porquê? Porque vão às escolas dos missionários estrangeiros, onde se sentam como entre nós. E aqui tem, meu caro.

Fico a pensar no que o parisiense diz, e ele volta:

- Quer que lhe fale franco, mas franco, como prevenção para os anos que vai aqui viver? Pois oiça: isto para o ocidental residir é difícil. Estímulo para os estrangeiros não há, e a nossa vida psicológica vai definhando a pouco e pouco. Nós aqui gastamos energias, não se sabe aparentemente porquê, e sentimo-nos sempre esgotados mesmo sem fazer esforço de monta e tornamo-nos irritados, nervosos. É preciso grande autodomínio para não perdermos a cabeça, sobretudo nas actuais condições de vida no Oriente misturada à vida de ocupação. E é preciso saúde, muita saúde, porque o clima é áspero. Claro: só se aperceberá disto tudo ao cabo de certo tempo, um ano no mínimo. E mais do que tudo, calma, muita calma, e uma paciência inesgotável.

Saio, vai para o lusco-fusco, e pela primeira vez tenho a sensação nítida e presente, quase física, de que Oriente e Ocidente são dois mundos tão à parte e tão distantes que os murmúrios de um não ressoam no outro.


(...) TÓQUIO, 20 DE FEVEREIRO


O japonês rendeu-se, e depois? Entregou armas e bagagens de guerra, viu desbaratado o Império efémero e, reduzido às quatro ilhas maiores e a uns tantos ilhéus, ficou de mãos vazias a observar o americano. Mas depressa recobrou o fôlego e não teve mais vacilações. De afogadilho lançou-se na colaboração com o vitorioso. Com sofreguidão tenta afeiçoar-se à imagem e semelhança do ocupante: no político e no económico, por força das circunstâncias; e mesmo no moral e espiritual procura aparentemente não lhe ficar atrás.

Quanto ao Governo, arranjou um que se adaptasse ao preceito democrático. Ao museu dos estadistas velhos foi buscar relíquias e ressuscitou-as para a arena política. Shidehara, barão do antigo regime, ministro de há vinte anos e hoje a caminho dos oitenta bem contados, foi arrancado à paz dos netos e voltou ao torvelinho da Dieta. É honesto e sincero, mas ao que se murmura já está caduco. Pela mesma bitola frisa o restante pessoal. O caso, porém, é que todos eles são apenas símbolos: representam um Japão antigo, liberalão, bem humorado, cavalheiresco por atitude e sossegado com a sua malga de arroz bem atacada. Foi curto o seu reinado, e depressa sufocado pelos militares e visionários do Império. Mas agora servem: agradam ao americano e mantêm a fachada da colaboração. O certo, contudo, é que por detrás estão outros que manejam os verdadeiros cordelinhos. Quem são, isso é que todos gostaríamos de saber.




Michinomiya Hirohito em 1902.











Douglas MacArthur e o Imperador do Japão, Hirohito, no primeiro encontro (Setembro de 1945).






Entretanto, de lés a lés do país entoa-se em coro o hino à vida nova. Recriminações, fervilham. Escarnecer o velho regime que sonhou a grandeza é coisa banal e havida como meritória. Das várias sociedades de Dragões faz-se hoje um retrato que as ridicularize. Havia a do Dragão Vermelho, a do Dragão Negro, a do Grande Dragão do Oriente, outras muitas, todas exaltadas, como reuniões até de madrugada em sítios escusos e sempre prontas a esfaquear por patriotismo um qualquer que fosse mais tíbio. O americano dissolveu-as e meteu na cadeia os seus presidentes venerandos e de barba branca. O japonês, por sua parte, vem para os jornais e aponta ao opróbrio público os Dragões ontem temidos. Depois, é o exército, todas as forças armadas. Perderam a cartada; e procura-se lançar sobre elas o labéu da cobardia, da incompetência ou da insensatez. A polícia secreta, a Kempeitai de fama sinistra, é agora leão moribundo e todos vêm apresentar a sua queixa contra as barbaridades cometidas e dar-lhe o seu pontapé. Dos cárceres foram libertos os que por bom senso ou princípios não apoiaram o sonho imperial; e para lá foram os Tojos de pulso rijo, dos Doiharas que puseram a Manchúria a ferro e fogo, os Hirotas e Matsuokas que deram estrutura política à congeminação. A par disto, proclama-se a liberdade democrática sem limites e os partidos políticos, desde os comunistas aos liberais graves, surgem como cogumelos em terreno húmido.

Desdenhar do que é nacional e castiço é de bom tom. Dos ideogramas nipónicos quer-se fazer tábua rasa; deseja-se adoptar o sistema românico de escrita; e já um qualquer sugeriu em público, com seriedade, que se deveria proibir o idioma nativo e substituí-lo pelo inglês de audiência universal. Ao povo atira-se o apodo de ignorante e atrasado; das suas maneiras ri-se aos quatro ventos; e do teor geral da vida japonesa faz-se um escárnio maciço. Abolir o kimono clássico será a salvação do país derrotado; e a cultura nacional, uma história de vinte séculos, glórias legítimas da pátria, tudo é havido por coisa nenhuma. Além do mais, gritam-se as boas intenções japonesas e apresenta-se o novo Japão, agora que a clique aguerrida dos militares soçobrou, como o arauto da paz no mundo. E perante o que é americano passou a ser de uso estar respeitoso e admirado. MacArthur é herói e endeusado, e ao Imperador atira-se o segundo lugar. Do primeiro entoam-se as virtudes guerreiras e domésticas e celebram-se os mínimos gestos como dignos de suspender o fôlego dos homens. Do outro, o Filho do Céu agora tratado pelo estalão dos mortais comuns, cita-se com benevolência o seu amor científico às conchinhas do mar. Copiar o figurino Yankee, em suma, é o delírio geral, na superfície ao que presumo.

Tudo isto constitui prosa diária da imprensa japonesa. Mas a coisa sabe-me tão a falso e exagero que não fico persuadido. O certo, todavia, é que mais de uma pessoa de consequência, da nata japonesa de hoje, me afirmou já sem rebuço a partilha das mesmas ideias. Foram-me apresentados dois ou três estudantes universitários e uns tantos funcionários públicos, e todos me fizeram, sem pestanejar, o elogio do ocupante. Mas são gota de água que não contará. De interesse seria apurar o que sente e pensa a arraia-miúda no seu conjunto.

Falo nisso ao intérprete, mas ele pouco se descose:

- Isso, dos jornais, Senhor, parece ser tudo conversa. Verdade, verdade, os militares abusaram. Tenho um amigo que um dia disse que os aviões fabricados pelo Mitsubishi não levantavam voo, eram mal construídos, só serviam para sucata. Era um facto e toda a gente o sabia. Mas não se podia segredar nem ao pai que fosse, e esse meu amigo foi preso, passou tratos de polé, um mau bocado. Vieram os americanos, puseram-no à solta. Claro: ele vê o americano com bons olhos. Mas a massa geral sente de outro modo. Não compreende bem por que se perdeu a guerra e quanto à democracia nova nada entende. E no fundo os militaristas eram patriotas, queriam só o bem do Japão. Mas lá que abusaram, isso abusaram.

- Mas oiça: quando os japoneses passam diante de todos esses grandes edifícios e vêem a bandeira americana hasteada, que sentem? Quando sabem que, além disso, foi proibido içar a bandeira japonesa, mesmo exibi-la em público, não sentem uma revolta surda contra o ocupante? A verdade é que os senhores são orgulhosos nacionalistas até à espinha!




O Império Nipónico em 1942




Volta-me com ar de franqueza que me não convence:

- Bom, quanto aos edifícios, com bandeira americana ou sem ela, pensamos que foi óptimo terem escapado à destruição: cedo ou tarde os americanos sempre acabarão por se ir embora, não os podem levar com eles e assim ficam outra vez para nós. Até em melhor estado que antes! E as nossas bandeiras, essas estão enroladas até um dia! O Senhor sabe: o japonês é vagaroso de palavras, gestos e pensamentos e tem farta paciência para esperar.

Sim, pachorra tem em dose maciça. Entretanto, este povo, bem lá na medula, não se desmente e permanece fiel aos seus princípios e ao seu torrão. Submete-se no exterior e no formal, e faz apoteose da democracia e do pacifismo. Mas no íntimo e por muito que pese ao mundo, os pilotos e marujos que arrasaram Pearl Harbor são heróis dilectos da alma popular. E compreende-se.


(...) TÓQUIO, 12 DE MARÇO


Veio o A.P. ver-me e, após saudações do estilo, diz-me de chofre:

- Então, já sei que Você outro dia não gostou do médico! Isto, meu caro, médicos no Japão é assim. Aprendem muitas coisas na Universidade, sim, mas o espírito científico e clínico não lhes está na massa do sangue. Tirante as sumidades, educados na Alemanha ou nos Estados Unidos, os outros são fracos. Se Você lhes faz perguntas, ficam embaraçadíssimos: e se lhes cita uma frase científica em latim, então ficam tão apavorados que não voltam mais! Olhe, meu caro: estar doente no Japão é uma espiga. Médicos, é o que Você viu. Hospitais, isso é cousa de moer os nervos ao ocidental: são uma confusão, os doentes vão acompanhados das respectivas famílias, estas instalam-se com gato e cão, e a gente não sabe como pedir um copo de água. Já estive num, jurei nunca mais. E quanto a farmácias, não sei agora. Eu sempre tive medo de que se enganassem no remédio. E depois da guerra, está claro, o pouco que havia preparado para os ocidentais desorganizou-se e acabou ou foi tomado pelos americanos. E outra coisa: o que Você tem não deve ser nada: é a aclimatação. Habituar-se a gente ao Japão é que custa, temos todas as doenças. Mas isso são só os primeiros cinco anos, depois vai bem. Ao princípio tive tudo: desde colite ao eczema. Mas são só os primeiros cinco anos!

Que é do Japão das geishas coloridas, das musumés de alta estirpe, dos samurais românticos? O Japão não é uma estampa antiga nem um museu.


(…) TÓQUIO, 26 DE DEZEMBRO


Foi ontem Dia de Natal. A data não tem aqui qualquer significado, é evidente. (Agora reparo que na altura própria, Março ou Abril, não me lembrei sequer da passagem do Carnaval!) Sem embargo, este ano é celebrado o Natal, e com tanto ruído que se diria tratar-se de festividade tradicional no país. O japonês é imitador exímio, e para correr sempre à feição da aragem vai fazendo como o americano: nas montras das lojas colocou um Pai Natal que é um Santa Claus Yankee, dependurou uma litografia representando paisagens nevadas, e plantou um pinheiro com os ramos a encurtarem para o topo de modo a formar um cone perfeito; nas portas e pelas paredes pregou letreiros com a legenda «Merry Christmas», rodeada de estrelinhas de papel prateado; e os jornais, a propósito da quadra cristã, falam do espírito da fraternidade universal que deve presidir às relações entre os países, grandes ou pequenos. Muitas prefeituras locais lançaram subscrições públicas de solidariedade para auxílio e protecção dos necessitados. Teóricos feitos à pressa e surgidos não se sabe de onde afirmam, com razões extraídas de velhos tomos, que entre budismo, xintoísmo e cristianismo a diferença é nenhuma. Sobram apenas os maometanos: mas mesmo quanto a estes a divergência é tão pequena que se quiserem comungar na festa geral também lhes será consentido. Mas dizem-me que os cristãos, os autênticos, aqueles que foram implantados pelos portugueses e que descendem do apostolado de S. Francisco Xavier, celebraram o Natal com mais fervor do que nunca. Libertos do exclusivismo xintoísta, todo poderoso durante a guerra, porque era a base e inspiração do patriotismo exaltado, os cristãos sentem-se agora libertos para expressarem a sua fé, e fazem-no com o ardor de todas as minorias que se sabem cercadas por uma maioria hostil. Pela primeira vez desde há muitos anos, foram celebradas missas de galo junto a ruínas de igrejas, sem telhado, sem altares, com uma simples cruz de madeira, e todos os cristãos se aqueciam do gelo da invernia em torno de uma barrica de latão atulhada de brasas. Na pureza da sua fé, os cristãos japoneses dariam lições aos do Ocidente. (in Franco Nogueira, Tóquio - Diário, 1946, Tinta-da-China, 2019, pp. 60-65; 66-69; 73-77; 80-81; 133-134).


A chegada dos portugueses ao Japão (biombos namban).



Padres jesuítas crucificados no Japão.



Mártires de Nagasaki. Ver aqui






Takayama Ukon (1552-1615), o "Samurai de Cristo".






O arquipélago japonês visto por satélite.



Tóquio e região central do Japão vistos a partir da Estação Espacial Internacional.



Viajantes atravessando o rio Oi, uma das dez gravuras que Katsushika Hokusai adicionou às 36 Vistas do Monte Fuji.

























A gravura Fuji Vermelho da série Hokusai, Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji.





Ver aqui


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