Segue, em versão portuguesa, o escrito originalmente intitulado «A Moment of Understanding», inserto em Bruce Lee, The Tao of Gung Fu. A Study in the Way of Chinese Martial Art (editado por John Little, Tuttle Publishing, 1997, pp. 134-136).
O Gung Fu é uma espécie de aptidão muito especial; uma primorosa arte jamais confinada a uma actividade física. É uma arte subtil que trata de combinar a essência da mente com o aparato técnico sobre o qual opera. O princípio do Gung Fu não é algo que, à maneira de uma ciência, pode ser apreendido mediante recolha e instrução em factos já consumados. Tem, qual uma flor, que se desenvolver espontaneamente numa mente liberta de emoções e desejos. O ponto essencial deste princípio do Gung Fu é o Tao – a espontaneidade do universo.
Após quatro anos de treino intensivo na arte do Gung Fu, comecei a sentir e a compreender o princípio da harmonia – a arte de neutralizar os efeitos produzidos pela acção do adversário, minimizando a energia despendida. Tudo isto deve ser realizado com tranquilidade e sem esforço. Parecia simples, embora em sua aplicação prática resultasse extremamente difícil. Porém, já quando em combate com um oponente, a minha mente ficava completamente perturbada e fora de si. Daí que, após alguma troca de golpes e pontapés, toda a minha teoria acerca da harmonia houvesse simplesmente desaparecido. E, nisto, assaltava-me um único pensamento: “tenho que o desancar e vencer custe o que custar!”.
Naquele tempo, o meu instrutor-chefe da escola de Wing Chun, o Professor Yip Man, aproximava-se, dizendo-me: "Loong, relaxa e acalma a tua mente. Abandona o ego e segue o movimento do oponente. Deixa que a mente, o princípio determinante, produza o contra-movimento sem que nisso interfira qualquer espécie de deliberação. Aprende, acima de tudo, a arte do despojamento."
"É isso mesmo”, pensara eu. “Devo relaxar!”. Contudo, nesse mesmo instante já algo comigo se estava operando em clara contradição com um tal desígnio. Nomeadamente ao dizer “devo relaxar”. A exigência patente no “devo” era, pois, inconsistente com o não-esforço no acto de “relaxar”. Quando minha apurada auto-percepção evoluiu no sentido daquilo que os psicólogos denominam de duplo-vínculo, o meu mestre mais uma vez me chamara a atenção: «Loong, liberta-te percorrendo os caminhos da natureza e não interfiras. Lembra-te de que jamais te deves opor à natureza; nunca te exponhas frontalmente a um problema, mas procura resolvê-lo adaptando-te a ele. Não pratiques esta semana. Vai para casa e pensa nisso.»
Na semana seguinte fiquei em casa. Depois de muitas horas de prática e meditação, desisti e, sozinho, fiz-me ao mar num junco. Aí recapitulei todo o meu treino feito no passado e, insatisfeito, desferi um murro na água! Então – nesse momento –, fui surpreendido por um pensamento: não era a água a essência mesma do Gung Fu? Não acabara ela por finalmente me fazer ver a fonte principial do Gung Fu? Nela produzira um certo embate sem que tivesse sofrido qualquer dano. Voltei a fazê-lo com todo o meu poder e força despendida – porém, permanecia incólume. Entretanto, tentei agarrá-la com a mão, o que se me afigurou inviável. A água, a substância mais informe do mundo capaz de ser contida numa pequena jarra, somente, à primeira vista, parecia vulnerável. Na realidade, podia ainda assim penetrar na substância mais dura do mundo. Era isso! A minha aspiração seria doravante identificar-me com a natureza da água.
Subitamente, apareceu um passáro projectando o seu reflexo na água. Foi por então que, ainda absorto na lição da experiência aquosa, um outro enlevo místico de significado absconso se me revelou; não deviam as emoções e os pensamentos suscitados na presença de um oponente decorrer tão naturalmente como o reflexo de um pássaro na água? Ora, fora precisamente isso o que o Professor Yip Man me sugerira ao aconselhar o despojamento – não que isso implicasse a ausência de emoções e sentimentos, mas tão-só que uns e outros não deveriam transformar-se num factor de obstrução. Por conseguinte, a fim de não perder o equilíbrio “devo”, acima de tudo, procurar fluir no mais perfeito acordo com a minha natureza e nunca ao invés.
Recostei-me no junco e de pronto senti que me havia unido ao Tao. Unira-me com a natureza. E assim estacionei, deixando que a embarcação vogasse por si mesma. Nesse momento, alcançara, pois, um estado de cumplicidade profunda em que toda a oposição mutualmente exclusiva se transmutara numa cooperação mutualmente inclusiva, cessando assim todo o conflito na minha mente. O mundo na sua totalidade, tornara-se-me um e o mesmo.
Yip Man e Bruce Lee |
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