quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Teatro de intervenção

Escrito por Orlando Vitorino











































«COMO SE ALIOU O TRADICIONALISMO REGRESSISTA COM O SOCIALISMO PROGRESSISTA PARA COMBATEREM O LIBERALISMO

A palavra liberalismo viu-se de tal modo desacreditada que os liberais dos nossos dias se interrogam sobre a designação que hão-de dar ao sistema que, nos últimos decénios conseguiram re-acreditar, renovar e desenvolver com uma convicção singular e uma segurança espectacular. Alguns propõem a designação de libertarismo em virtude de, nos EUA, a designação de liberal ter sido usurpada pelos socialistas e se ter identificado com a de socialista. Já, pelas mesmas razões, o contrário aconteceria na Europa onde a palavra libertário se identificou com os anarquistas do fim-de-século que adoptaram a designação de socialismo libertário para se distinguirem do socialismo científico adoptado pelos comunistas (um livro português, da autoria de Silva Mendes, que foi no seu tempo traduzido em várias línguas, intitulava-se, precisamente O Socialismo Libertário ou Anarquismo). Outros liberais dos nossos dias, mais ligados à cultura inglesa, procuram na origem britânica do liberalismo a designação a adoptar hoje e propõem a dos whigs.

Tudo indica, no entanto, que a restauração, cada vez mais previsível e inevitável, do sistema a que o mundo deve o que há de estrutural na civilização que possui, conservará a designação de liberalismo depois da breve passagem, que hoje se está dando, pela de neoliberalismo. As hesitações e perplexidades que descrevemos são apenas um cuidado táctico derivado da imagem do liberalismo que os socialistas, com o seu progressismo, e os tradicionalistas, com o seu regressismo, conseguiram infiltrar na opinião pública.

Os tradicionalistas viram no liberalismo o obstáculo que era preciso abater para que se pudesse regressar:

- à monarquia da qual já só conheciam a imagem absurda fornecida pelo absolutismo do Estado que o liberalismo havia pulverizado com a doutrina da separação e limitação dos poderes;

- à hierarquia da qual já só conheciam as formas rígidas e vazias das ordens sociais que consideravam constituir a estrutura inamovível das sociedades e que os liberais haviam substituído pela mesma natureza espontânea e racional da sociedade composta de múltiplos estados através dos quais os indivíduos livre e continuamente circulam;

- à ortodoxia religiosa que era já a única maneira que conheciam de conceber a universalidade do pensamento e da ciência e que os liberais haviam substituído pela infinita multiplicidade dos caminhos que se dirigem ao uno transcendente e à verdade soberana.

Os socialistas, por sua vez, viram no liberalismo o obstáculo a abater para que se pudesse realizar o progresso que atribuíam à comunização da existência social e da acção humana mediante o poder unificado e ilimitado do Estado, mediante a obediência a uma única ideologia e mediante a absorção e redução de todas as singularidades individuais nas classes sociais definidas pelas diferentes situações económicas.

Um substancial acordo e uma tácita aliança se estabeleceu, deste modo, entre tradicionalistas e socialistas para juntos darem combate ao inimigo comum, o liberalismo. E embora a esse combate marcassem uns, por finalidade, o regresso a formas políticas já mortas e, outros, o progresso para formas políticas por nascer, o que é certo é que visaram ambos finalidades equivalentes: o absolutismo do Estado monárquico é equivalente ao totalitarismo do Estado socialista, a ortodoxia universal é equivalente à unicidade ideológica, a hierarquia das ordens sociais é equivalente à estrutura das classes sociais.»

Orlando Vitorino («O que é o Liberalismo e a falsa imagem criada ao Liberalismo», in «Manual de Teoria Política Aplicada»).







Teatro de intervenção


A palavra intervencionismo foi utilizada pelo austríaco Ludwig von Mises para designar a acção dos governos ou dos políticos que se propõem intervir no livre jogo da economia, sujeitando-a aos processos e finalidades que, determinados por modelos ideológicos, violentam suas regras e categorias e, com isso, erguem obstáculos impeditivos à prosperidade dos homens e dos povos. Em rigor, as doutrinas intervencionistas confundem-se com as doutrinas socialistas, mas a substituição das designações torna evidente, definido e concreto o que se esconde na indefinição, saturada de táctica política, da palavra socialismo.

Para além dos limites da economia, a designação de intervencionismo foi alargada a outros domínios que, como a economia, têm as suas regras próprias e a sua autonomia irredutível. O que é mais espantoso é que foi adoptada como se representasse alguma coisa de benéfico e positivo quando ela significa, em si mesma e na utilização que lhe deu von Mises, uma violação e uma negatividade. Trata-se de um exemplo, entre muitos outros, de como a acção das organizações que, nos nossos dias, se apossaram dos poderes institucionalizados – os Estados, os Partidos, as Internacionais etc. – têm em vista e por resultado captar as mentes dos homens, tornar os homens mentecaptos.

Chega o intervencionismo ao absurdo de procurar incidir sobre o próprio pensamento e exerce-se no domínio das artes, com especial engodo pelo teatro. No domínio do pensamento, a sua meta é, como todas as consequências inimagináveis que isso teria, a extinção da filosofia, extinção já proclamada pelos marxistas nomeadamente por H. Marcuse, lamentada por pensadores desesperados como Heidegger e inocentemente saudada por homens como o actual Ministro da Educação português que, há poucas semanas, declarou publicamente que a filosofia é reserva da “investigação” universitária.

O intervencionismo no teatro pode ser entendido como intervenção mediante o teatro ou como o teatro de intervenção mediante o teatro que já há, encenando com esse carácter obras clássicas como as de Molière ou Sófocles; no segundo sentido, preconiza e estabelece a elaboração de peças que se destinem a intervir. No primeiro sentido, as peças utilizadas ficam esvaziadas de conteúdo e de forma para não serem mais do que figuras de retórica, más figuras de má retórica; no segundo sentido, transforma-se o lugar do teatro no lugar de um exibicionismo tão deslocado que depressa tende para a obscenidade e se torna repugnante.

Como toda a arte, o teatro é um fim em si mesmo. A intervenção, por sua vez, é por definição, medidora. É, pois, o contrário do teatro.

Supõe a intervenção, necessariamente, dois termos: aquele que intervém e aquele sobre o qual se exerce a intervenção, o interventor e o intervencionado. É a definição destes dois termos que sempre se deve averiguar quando se nos fala de “teatro de intervenção”. Ora o intervencionismo é, como vimos, o nome dado à acção das doutrinas socialistas. Nenhuma outra doutrina – com excepção, em certos períodos sombrios, das doutrinas religiosas que fazem da igreja uma seita – comporta o intuito de intervir nos domínios que, como a economia, como a arte e como a vida, possuem realidade própria e existência autónoma. Se há “teatro de intervenção”, o termo interventor é, pois, o socialismo e o termo intervencionado, por consequência, os espectadores não-socialistas. Daqui resulta necessariamente: os espectadores socialistas não recebem do “teatro de intervenção” nada que já não tenham e o tal teatro não terá para eles qualquer sentido, não será mais do que um inútil psitacismo; os espectadores não-socialistas ou são coisa nenhuma ou são isso que são (não-socialistas) porque recusam tudo o que seja intervencionismo. O “teatro de intervenção” só poderá então, ter algum sentido para quem é coisa nenhuma. Mas quem é coisa nenhuma não gosta de teatro nem sabe o que ele seja.

O intervencionismo é, todavia, o omnipresente. E houve “gente de teatro” que não resistiu à tentação de reagir, como um doente reage à doença. Surgiu deste modo o chamado “teatro do absurdo” onde se situam ou para o qual contribuíram alguns significativos dramaturgos do nosso tempo, como Ionesco e Beckett. Consiste, tematicamente, em mostrar como as teses intervencionistas, dominantes já na vida quotidiana, conduzem a um absurdo vivido, estúpido e trágico. Seja, por exemplo, o progressismo ou a opinião pública ou o libertarismo, teses de que Ionesco e Beckett fizeram o assunto de algumas peças: do progressismo, “A Menina Casadoira”; da opinião pública, “O Rinoceronte”; do libertarismo, “À Espera de Godot”. Trata-se de um teatro de contra-intervenção, a única coisa aproveitável a que deu origem o “teatro de intervenção”. (in Ensaio, revista de cultura e de opinião, n.º 3, Junho-Agosto de 1981).




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