domingo, 13 de junho de 2010

A Grande Deturpação (iv)

Escrito por Orlando Vitorino






C. Excertos de uma entrevista em que se descrevem os tristes resultados do que anteriormente foi testemunhado

O entrevistado é (...) Orlando Vitorino, o entrevistador é o jornalista Martins Gaspar, o jornal onde a entrevista foi publicada é O Dia de 5 de Janeiro de 1980.

Pergunta - A que atribui a quebra de qualidade da literatura portuguesa quer quanto aos temas, quer quanto ao próprio espírito e afirmação da nossa língua?

Resposta - Não houve, depois do 25 de Abril, isto é, depois da proclamação constitucional do socialismo, qualquer quebra de qualidade da literatura portuguesa. A literatura portuguesa tem, neste século, o seu período culminante, reunindo nele três dos seus maiores poetas - Pascoaes, Pessoa e Régio - e os seu três maiores pensadores: Leonardo Coimbra, José Marinho e Álvaro Ribeiro. Pascoaes pode, sem grandes possibilidades de séria contestação, figurar entre os génios artísticos da humanidade, sendo, na linhagem de Homero, Virgílio, Dante e Shakespeare, o poeta da idade que vivemos agora. Por Leonardo, Marinho e Álvaro Ribeiro terá de passar todo o pensamento filosófico que não queira aceitar, como não pode aceitar, a demissão da filosofia anunciada pelos alemães posteriores a Hegel, expressamente por Heidegger no seu testamento filosófico.

Aquilo a que V. se refere, ao afirmar uma "quebra de qualidade na literatura portuguesa", é uma infraliteratura que, durante os últimos quarenta anos, foi motivada, alimentada e celebrizada pela sua oposição ao salazarismo, portanto pelo salazarismo, e constituiu, para os chamados políticos de esquerda um instrumento preciso das tácticas e estratégias a que reduzem a política.

Pergunta - Quer V. dizer, portanto...?

Resposta - Quero dizer que com a derrota do salazarismo, essa infraliteratura perdeu a razão da existência e deixou efectivamente de existir. Falta-lhe o regime, o establishment, a matéria onde ia buscar seus motivos. Por outro lado, isso pôs a nu o mínimo ou nenhum valor dos livros que, durante os seus findos anos de existência, produziu.



Pergunta - Poderia V. explicar essa análise aparentemente cruel?

Resposta - Sem dúvida alguma. Por um fenómeno facilmente explicável, embora à primeira vista paradoxal, essa espécie de literatura satisfazia igualmente a mentalidade do establishment salazarista e a mentalidade da sua oposição política, correspondia à imagem que ambas tinham da literatura como servil instrumento dos políticos, beneficiava do igual interesse de ambas em fazer ignorar a literatura portuguesa, desde Leonardo a Pascoaes, desde Marinho a Pessoa, desde Álvaro Ribeiro a José Régio e, até, desde Camões aos nossos dias. Por isso as suas obras - ensaios superficiais, como hoje claramente se vê que são até os de A. Sérgio, poemas de gazetilha como os de J. Gomes Ferreira, e novelas de magazine negro como as de Alves Redol e Pereira Gomes - se viam editadas, lançadas, exaltadas e premiadas pelos poderes, instituições e empresas do regime, coligidas nas selectas escolares oficiais, adaptadas ao cinema e ao teatro subsidiados pelo Estado fascista, instaladas com seus autores e panegiristas nos liceus e universidades. Organizou-se deste modo um tão eficaz ludíbrio da opinião que ela ficava impedida de observar como essa infraliteratura que se dava por perseguida, vitimada e censurada pelo regime político era também a única literatura reconhecida e protegida por esse regime. Naturalmente, menos se observava ainda que a literatura portuguesa, essa que era todos os dias silenciada, tinha de recorrer aos editores marginais ou fora das grandes redes de distribuição, escondida pelos livreiros, segregada do ensino e, até, a única verdadeiramente proibida pela censura.

Pergunta - Não haverá exagero nessa descrição?

Resposta - Oiça, meu caro. Quando foi extinta a famigerada instituição, uma sociedade de direitos de autor subitamente convertida ao socialismo triunfante, organizou uma exposição dos livros que a censura havia proibido. Depressa teve que a encerrar e tornar inacessível o seu catálogo por se verificar que os autores mais censurados não eram os que fazem profissão de esquerdismo, mas sim novelistas como Domingos Monteiro e dramaturgos como José Régio. Este acontecimento mostra bem como a infraliteratura tentou prolongar o ludíbrio que lhe mantivera a existência até para além de todos os limites da verosimilhança.

Pergunta - Há muitos exemplos de tudo isso. Mas tem havido pouca coragem para os mostrar.

Resposta - Exactamente. O exemplo que lhe dei é, porém, o de um caso demasiado ingénuo e tolo. Um deles é-nos oferecido por Eduardo Lourenço que, em livro recente, ainda veio repetir o chavão neo-realista de que pensadores como Álvaro Ribeiro, José Marinho, Afonso Botelho, António Quadros, António Telmo, eu próprio, formavam uma corrente de pensamento de apoio ao salazarismo. E. Lourenço tem memória curta. Esqueceu, entre outras coisas, que era ele, e seus parceiros de opinião e organização, quem desempenhava cargos, como os de professor universitário, que não podiam deixar de ser da confiança do Governo, então o salazarista.






Pergunta - Bem... e depois?

Resposta - Desaparecido o salazarismo, desapareceu a infraliteratura que dele se alimentava. Os ambientes que a tomavam a sério, forjados pela imprensa dirigida e pelo ensino marxizado da universidade, ficaram efectivamente sem literatura, pois só aquela lhes era acessível, e substituíram-na pela televisão e algum cinema, nada tendo perdido com a troca, embora também não tenham ganho grande coisa. Mas os políticos que nela tinham a sua "literatura própria", esses é que, ao passarem da oposição para o poder, ficaram sem o que seria a sua "literatura oficial".

Pergunta - Não quereria, Orlando Vitorino, clarificar esse ponto de vista?

Resposta - Pois sim. Sabendo eles, esses políticos, que os valores, princípios, pensamentos e sentimentos de toda a verdadeira literatura (ao contrário do que o bem-pensantismo ainda julga, os intelectuais não são da esquerda) têm efeitos nefastos e destruidores para o socialismo, vêem-se obrigados, como o salazarismo, a fazê-los ignorar. Ficam, assim, sem nenhuma literatura. Para lavarem daí as mãos declaram toda a literatura em crise, fazem constar coisas como essa de haver uma "quebra de qualidade na literatura portuguesa actual". Você, meu caro amigo, fez-se eco dessa balela, deixou-se levar.

Pergunta - Não o creia. Fiz-lhe essa pergunta sabendo o que ela significa e pensando de certo modo como V. bastará ler alguns dos meus trabalhos, em jornal e até em livro. Mais adiante. O meu caso não interessa e o entrevistado é V. e não eu.

Resposta - Eu sei, eu sei... E repare agora que não é só a actual literatura que eles pretendem englobar na balela. É toda a literatura portuguesa, desde a clássica até à contemporânea. Observe o que tem sido a acção das autoridades socialistas desde que assumiram o poder político: fizeram a campanha contra Camões, dizendo-o poeta militarista, colonialista e racista, cantor de uma história com "cinco séculos de fascismo"; comemoraram o centenário de Herculano, mas tendo o cuidado de deixar sepultados os seus inéditos e por reeditar a sua obra (os salazaristas tinham feito o mesmo com Junqueiro); congelaram, nas mãos dos universitários, a obra de Pascoaes e Camilo; prolongaram a campanha, que já vinha do regime anterior (como quase tudo), contra José Régio, campanha que há quem diga ter sido a responsável pela sua morte, para depois, numa sinistra macacada comicieira, lhe chamarem "o nosso camarada socialista"; fizeram comprar pelo Estado o espólio de Fernando Pessoa para o entregarem, com os seus 26 000 inéditos às mãos servis dos professores universitários que dele vão extraindo, sem qualquer garantia da verídica autoria (já chegaram a publicar, como sendo um inédito de Pessoa, uma versalhada do antiquário Kamersky à Greta Garbo) aqueles textos que julgam poder servir para a deturpação do pensamento do grande poeta; cercam de sinistro silêncio e obstáculos editoriais as obras de Leonardo e José Marinho, de seus epígonos e seus companheiros; enchem as selectas escolares de textos que esterilizam para sempre a capacidade de compreensão intelectual e estética de sucessivas gerações de estudantes; fazem do ensino da língua portuguesa o ensino de uma técnica de comunicação na qual o homem se não distingue do animal.

Tudo isto são factos. Factos pontuais, dirá V. utilizando a linguagem corrente...






Pergunta - Talvez...

Resposta - Sim, respondo eu. Mas é unindo os pontos que se aprende na escola a desenhar as figuras...

Pergunta - Como é que, perante tal situação, pode sobreviver a literatura portuguesa que, sem quebras, continua a existir?

Resposta - Como sempre sobreviveu: em guetos.

Pergunta - Não sente profundamente a necessidade de uma como que purificação da língua portuguesa?

Resposta - A língua portuguesa - que foi a primeira das línguas românicas a adquirir virtualidades de expressão descritiva, com Fernão Lopes, e de expressão conceptual (o que é muito mais importante) com D. Duarte - parece ser também a primeira delas a passar, como o latim e o grego, a "língua morta". A maneira como se fala nos meios escolares de todos os graus e nos jornalísticos, radiofónicos e políticos, a maneira como está redigida a Constituição, são um espectáculo em que facilmente se diagnostica a doença mortal. E são um espectáculo tão generalizado, consentido e até aplaudido - sobretudo quando se fala nos "novos países de expressão portuguesa" - que é difícil esperar que o doente encontre remédio. Dela ficará, mais uma vez confirmando a antiquíssima sabedoria de que "o pássaro de Minerva levanta voo ao anoitecer", a literatura que nos nossos dias alcança, com essa língua já moribunda, as suas mais perfeitas expressões designadamente no domínio conceptual. Daqui resulta que os nossos escritores, sendo ainda operantes, são já escritores clássicos, no sentido em que se diz que os romanos e os gregos, com seus livros escritos numa língua há muito morta, são clássicos. Trata-se de uma situação análoga àquela que Fernando Pessoa alegorizou no poema dos "Jogadores de Xadrez", uma situação talvez única na história: escritores a escreverem numa língua que lhes é natural mas se debate, já moribunda, nas convulsões e no tumulto da morte. Nada se pode fazer contra isto. Durante mais alguns anos, durante ainda uma ou duas gerações, assistir-se-á, nas escolas, na imprensa, na rádio e na política, agora também nas igrejas, que aboliram o latim, à degenerescência cada vez mais acelerada, mais grosseira e mais vil de uma língua que alguns raros homens, os escritores que Pessoa via na figura dos jogadores de xadrez, continuaram a utilizar com uma perfeição que ela nunca antes teve.

Pergunta - Qual deve ser a posição do escritor na época actual, não apenas em Portugal como no mundo?

Resposta - Amar a verdade.

Pergunta - Face a uma Pátria em perigo, o escritor, que também é cidadão, em que sentido deve orientar a sua missão intelectual, responsável dentro de uma sociedade?

Resposta - Dizer a verdade.



QUINTA ILUSTRAÇÃO

que mostra como a grande deturpação está internacionalizada

com três notícias: Pablo Neruda e o Diário de Notícias, Ionesco e o Observer, M. Elliade e a Gallimard

A. Pablo Neruda e o Diário de Notícias





Pablo Neruda




André Coyné é um escritor e professor francês, minucioso e profundo conhecedor da literatura da América do Sul, onde viveu largos anos. Em 1973, habitando em Lisboa, escreveu, provocado, um artigo sobre Pablo Neruda, um mês depois de este poeta ter morrido. A provocação que o levou a escrever o artigo foi o coro de elogios a Neruda que, a pretexto agora da sua morte, mais uma vez se fazia ouvir na imprensa de todo o mundo. O artigo de Coyné começa assim: "Lamento discordar do coro."

Aí nos diz Coyné que tudo que de valioso, significativo e autenticamente poético Pablo Neruda escreveu, está na obra elegíaca que publicou antes de 1935. Vinte Poemas de Amor y un Cancion Desperada e as Residencias en la Tierra. De tal modo é assim que quando, depois dos seguintes vinte anos de "verborreia, incontinências e diatribes", ainda uma vez se salva é com um regresso à elegia nos Cem Poemas de Amor. Isso o leva a concluir:"Um livro basta para assegurar a perpetuidade de um poeta e Neruda podia ter morrido em 1935."

O que André Coyné nos descreve é, efectivamente, uma impressionante carreira de aviltamento perante a política, a publicidade, o dinheiro e a lisonja que Neruda percorre desde 1936 até à sua morte em 1973, desde que adere ao comunismo, escreve o Nuevo Canto de Amor a Staline e obtém, para toda a vida, os serviços da "máquina propagandística, à escala mundial, da Terceira Internacional". A poesia deixa de valer para ele e chega a anunciar, em 1941: "Passo a dedicar-me à política e à minha colecção de conchas." O que daí em diante faz já não é efectivamente poesia, mas um "alinhar de vocábulos descompostos" onde se amontoa "a confusão e a chateza imaginativas mal disfarçadas pelo ribombar da litania": España en el Corazon, Canto General, Alturas de Macchu Picchu. Repudia a obra elegíaca, declarando que é "perniciosa, que não deve ser lida pela juventude, que são poemas empapados de pessimismo, que não ajudam a viver mas a morrer". Todavia, acrescenta Coyné, "não suspende a sua venda nem proíbe as suas reedições as quais, obtendo mais procura com o repúdio anunciado, convertem Neruda no único poeta a quem a poesia permite rivalizar, em sibaratismo, com as estrelas de Hollywood". Observando a verborreia que passam a ser os seus poemas, um outro poeta sul-americano, César Moro, "cuja voz crescerá à medida que a de Neruda irá enfraquecendo", dirá que "a poesia não perdoa".


Em todo este processo, a degradação de Neruda chega a atingir as vilezas mais baixas: ao poeta peruano César Vallejo, comunista como ele mas caído na pobreza e na doença, faz desaparecer os escritos para, depois de o ver morto, lhe dedicar um poema dizendo-se seu "amigo para lá da vida e da morte"; cantando Estaline quando Estaline manda, logo canta o que o substitui ("Malenkov agora continuará a sua obra") e logo o repudia: "bigodudo deus com botas postas/e aquelas calças impecáveis/engomadas pelo servilismo realista"; a espreitar o Nobel, namora a luxuosa propaganda do capitalismo americano que, entre outras coisas, lhe dedica um número de "Life"; troca, na reedição de velhos poemas panfletários, os nomes de Trujillo, Somoza e Carias, escritos em 1948, pelos de Nixon, Frei e Pinochet, escritos em 1973, sem alterar os versificados atributos: "hienas vorazes da nossa história". À medida que os anos avançam, a impudicícia e a avidez da lisonja não diminuem. Em 1967, faz encomendar a uma sua secretária, Margarita Aguirre, um ensaio sobre ele próprio no qual os elogios mergulham no grotesco: desde dizer-se, em cada frase ou gesta, "0 maior poeta do mundo" até se descrever que, sendo ele de grande corpulência, mas de pés e mãos minúsculos, e gostando de bailar, que "a sua falta de graça quando baila é a graça mesma". A máquina propagandística da grande deturpação acompanha até ao fim todo este delírio grotesco. Quando este mediano poeta morre, em 1973, "o tradutor oficial de Neruda para francês, Jean Marcenac, não hesita em dizê-lo poeta tal que é muito possível que não tenha havido dez como ele desde que foi outorgado ao homem o poder da palavra".

Tal é o artigo em que André Coyné desmascara uma exemplificativa montagem da grande deturpação. O autor leva-o à direcção do Diário de Notícias que não era, então, a que é hoje. O artigo foi recusado. André Coyné publicou-o agora em apêndice ao primeiro volume do livro Sobre Portugal Nestes Tempos do Fim.


B. Ionesco e o Observer




Eugène Ionesco




Quando se representaram em Londres as primeiras peças de Ionesco - As Cadeiras e A Lição - o crítico Kenneth Tynan, do celebrado, influente e esquerdista Observer, escreveu um artigo representativo das posições políticas de obediência ideológica, no qual afirmou:

"Os aplausos entuasistas do público tiveram uma intensidade ensurdecedora, uma espécie de frenesim que é sintomático de um novo culto. O culto é Ionesco. E eu farejo aí um perigo [...] O perigo começa quando se apresenta como exemplar, como único caminho aberto ao teatro do futuro, esse lúgubre mundo do qual serão excluídas para sempre as heresias humanas de fé na lógica e de fé no homem. [...] O teatro de Ionesco é picante, é excitante. Mas não passa de um divertimento marginal. Não avança pela estrada larga, e os que pretendem que é nela que ele se encontra, não servem Ionesco nem servem o teatro".

Este artigo provocou uma resposta de Ionesco. Vale a pena transcrever os seguintes trechos:


o artista não é um Messias:

"Trazer uma mensagem aos homens, pretender dirigir os destinos do mundo, ou salvá-lo, é o que se propõem os fundadores de religiões, os moralistas e o políticos, e todos nós temos pago bem caro essas pretensões."


a arte não é ideologia:

"Uma obra de arte nada tem que ver com as doutrinas. já uma vez escrevi que uma obra de arte que não fosse senão ideológica, seria uma total inutilidade, uma tautologia, inferior à doutrina que se propusesse representar e que terá sempre uma melhor expressão na linguagem demonstrativa e discursiva. A obra de arte possui um sistema de expressão que lhe é próprio, tem meios próprios para apreender directamente o real".


a arte não é realista:

"Quanto à noção de realidade, o Sr. Tynan parece já conhecer um modo do real: o modo chamado social que é, a meus olhos, o mais superficial, o menos objectivo, pois está sempre sujeito às interpretações passionais."




Ionesco




a política é o mal:

"Creio que o que nos separa uns dos outros é esta política que ergue muralhas entre os homens e constitui uma origem permanente de mal-entendidos. Se me fosse permitida a expressão paradoxal, direi que a verdadeira sociedade, a autêntica comunidade humana é extra-social. É uma sociedade mais vasta e mais profunda, que se revela nas angústias comuns, nos desejos e secretas nostalgias e essas angústias, que a acção política se limita a reflectir e a interpretar muito imperfeitamente. Nenhuma sociedade conseguiu jamais abolir a tristeza humana, nenhum sistema político pôde alguma vez libertar-nos da dor de viver, do meio de morrer, da sede de absoluto. É a condição humana que governa a condição social, não o contrário."


as ideologias são álibis dos poderosos:

"Se alguma coisa existe que deva ser desmistificada, são as ideologias que oferecem soluções acabadas. Constituem elas álibis provisórios dos partidos que chegam ao poder. A linguagem cristaliza-as, fixa-as. Tudo deve ser continuamente reexaminado à luz das nossas angústias e dos nossos sonhos, e a linguagem anquilosada das revoluções instaladas deve, sem cessar, ser sujeita a um descongelamento, a fim de não se perder a fonte original, a verdade primeira".


a obra de arte não é redutível:

"Poderia eu agarrar numas tantas obras de arte, numas tantas peças de teatro, não importa quais, e aposto que seria possível atribuir a cada uma delas, sucessivamente, um carácter marxista, budista, cristão, existencialista, psicanalítico; provar como a obra assim sujeita a todas estas interpretações e atribuições e confirma, de modo exclusivo, tanto uma ideologia como a ideologia contrária. Tal possibilidade só demonstra, quanto a mim, que toda a obra de arte está fora das ideologias, não é redutível a uma ideologia".


arte e comunicação:

"A questão de saber se a obra se encontra, ou não, na estrada larga, se é não conforme com aquilo que nós quereríamos que ela fosse, resulta de um juízo preestabelecido, juízo portanto exterior, insignificante e falso. Uma obra de arte é a expressão de uma realidade incomunicável que se tenta comunicar e que, às vezes, se consegue comunicar. Esse é o seu paradoxo e a sua verdade."

Com esta resposta de Ionesco, abriu-se, nas páginas do Observer, uma polémica que marcou data na história do teatro contemporânea. Nela intervieram, entre outros, Orson Welles e Philip Toynbee. Um dos intervenientes considerou a resposta de Ionesco "a mais lúcida refutação da actual teoria do realismo social".

Entretanto, K. Tynan replicou com um novo artigo intitulado "Ionesco e o Fantasma". Ionesco envia ao Observer uma segunda resposta sua. Generoso, o famoso semanário comprou-lhe os direitos de publicação em Inglaterra dessa resposta, mas não a publicou. O autor veio a incluí-la, anos mais tarde, no livro Notes et Contre-Notes.



SÉTIMA ILUSTRAÇÃO

que mostra como a grande deturpação ilude até aqueles que estão mais avisados

com uma recensão do livro Le Cinquième Empire



Dominique de Roux à esquerda


O livro simultaneamente mais interessante e mais valioso entre tantos que, depois de Abril de 1974, se escreveram sobre Portugal, é sem dúvida o de Dominique de Roux, Le Cinquième Empire (Ed. Belfont, Paris).

A tese do autor é a seguinte: Portugal foi o último dos impérios e seu termo, agora dado, abre a história da humanidade para o Quinto Império, aquele que, anunciado nos livros da tradição mais sagrada e mais secreta, será o império da universalidade. Em termos mais correctos: encerrado o longo ciclo do imperialismo, a humanidade vai entrar no ciclo do universalismo. Ao poder na terra e no tempo, sucederá o poder do uno e do espírito. A dissolução do último império terrenal, equivale à putrefacção, ou saturnificação, onde germinará a flor.

No que tem de narrativo (toda a história da preparação e execução do golpe do 25 de Abril), o livro de Dominique de Roux é uma minuciosa descrição de um povo putrefacto. A famosa lamentação shakespereana de que "alguma coisa está podre no reino da Dinamarca", pode completar-se agora com a exultação de que "tudo está podre no reino de Portugal". Isso explica que, sendo este livro o mais interessante e valioso de quantos se publicaram sobre Portugal, seja também o mais silenciado, o que "ninguém leu", o que nenhum jornal noticiou. Com efeito, todos ali figuram mergulhados na podridão, desde os campeões militares e os caudilhos políticos que executaram o golpe até aos homens e mulheres mais em evidência na velha e na nova sociedade familiar portuguesa. Todos são descritos "en su tinta"; os campeões militares, por exemplo, surgem em ambientes e actos, em que o autor também participou, vividos na guerra do ultramar de cuja realidade e sentido todos foram igualmente ignorantes, moscas saturninas e tontas.

Dominique de Roux era uma personalidade enigmática: jornalista de celebridade mundial, era também "intelectual", de um tipo que os jornalistas nunca são; nos campos de guerra em África, entrevistava, antes do 25 de Abril, Kaúlza, Spínola e Otelo, e, depois do 25 de Abril, Jonas Sawimbi, mas ao mesmo tempo fundava e dirigia a colecção "10-18", que todos nós conhecemos, e organizava os sucessivos números da revista Exil. Nos primeiros dias que se seguiram ao golpe de Abril, três diários comunistas publicavam a várias colunas da 1.ª página o seu retrato com a legenda: "Á solta em Portugal um dos principais agentes da reacção internacional..." Tinha preocupações de aristocrática elegância e havia quem dissesse que era um dirigente da polícia secreta francesa, o que este seu livro permite confirmar. Morreu de repente, quando acabava de publicar o Le Cinquième Empire e dias depois da invasão do Congo pelos comunistas de Angola. Há quem diga que foi assassinado.

Ao lermos o Le Cinquième Empire, mais uma vez evocámos o antiquíssimo mito de como tantas vezes se vai procurar longe o que se tem à mão. Procurando a "flor azul" na "distância impossível de percorrer", Dominique de Roux só pôde conhecer, do último império, a putrefacção. Nunca foi aonde o mito do império do espírito é todos os anos celebrado, embora ponha em epígrafe do seu livro um poema de Natália Correia, e não mostra conhecer (exceptuada uma apressada alusão a António Telmo) aqueles que, como Agostinho da Silva, melhor lhe poderiam falar. O jornalista atraiçoou o intelectual. Ofuscado pelas vedetas, passou ao lado do que buscava e não o viu. Condenou-se a só ver a podridão (in ob. cit., pp. 166-179).


Kaúlza de Arriaga e Dominique de Roux












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