sábado, 13 de junho de 2015

25 de Abril de 1974: a Revolução da Perfídia (i)

Escrito pelo General Silva Cardoso









«Se a guerra fria é um embate frontal entre o bloco do Ocidente e o do Oriente, significa também a conquista de posições em áreas do mundo situadas para além dos dois blocos que se afrontam: o anticolonialismo produz a zona cinzenta, cujo domínio não se busca. Para o efeito, os dois blocos, além de disseminarem os seus ideais messiânicos, intensificam o duelo de popularidade em que um tenta bater o outro mediante concessões que se sobrepõem e excedem em ritmo acelerado. É a emergência do terceiro mundo. É o conjunto de nações ou povos que se caracterizam por subdesenvolvimento material e cultural, ou por se encontrarem numa relação de dependência política e económica perante centros de decisão alheios, ou por serem vítimas de discriminação baseada em raça ou religião. São estas nações e povos que agora são aproveitados pelos impérios, que exploram em seu favor o movimento anticolonialista e a ideia política e psicológica da descolonização. Retomam-se, sob outras modalidades, processos antigos: novos impérios põem sempre em causa a estrutura da sociedade internacional que encontram: e para o ataque a esta constroem novas ideologias e novas justificações morais também. Em tempos idos, grandes potências procuraram entre si um equilíbrio de interesses que apenas se conseguia por um preço a ser pago pelas pequenas potências: e então as forças imperiais actuaram em nome de altos princípios morais que receberam o nome de liberdade dos mares, de antiesclavagismo, de esferas de influência, de responsabilidade do homem branco para com as raças atrasadas, do governo por mandato, ainda outras fórmulas. E agora está lançado o conceito de autodeterminação dos povos. Para lhe dar toda a virtualidade, recorre-se a sucessivas interpretações da Carta da ONU. Esta dispõe que os povos, submetidos durante a guerra a ocupação e domínio estrangeiro, devem ser libertados, e dotados das instituições que por si escolherem. Na origem dos preceitos da Carta estava assim o fenómeno alemão. Mas na Ásia haviam entretanto emergido, independentemente da Carta da ONU, nações como a Índia, o Paquistão, a Indonésia, o Ceilão, as Filipinas; e estas, juntamente com a nova China e o novo Japão, viam no enfraquecimento da Europa Ocidental vantagens próprias. De harmonia com uma orientação já defendida por Lenine, a União Soviética alia-se desde logo aos clamores daqueles países. E é defendida uma interpretação extensiva do conceito de autodeterminação: esta não se aplica somente às nações submetidas ao domínio nazi mas a qualquer povo, ainda que nunca haja sido independente nem forme uma nação. Esse vínculo de subordinação é invocado sobretudo contra a Europa Ocidental, e é esta que fica em causa. Para não serem ultrapassados pela União Soviética, e porque desejam influenciar os novos países asiáticos, e porque sentem receios de uma forte Europa Ocidental que queira desempenhar um papel mundial, os Estados Unidos são levados a partilhar aquela interpretação extensiva, e apoiá-la. E é em torno do terceiro mundo, e para conquista deste, que o debate político se processa. É cómoda e fácil a posição de Moscovo: em cortar a Europa da África nada tem a perder e tudo a ganhar. Mas é embaraçosa a posição dos Estados Unidos: se dão prioridade aos europeus e à aliança atlântica, desagradam ao terceiro mundo, e deixam à União Soviética a vantagem política de surgir como única defensora deste; se dão prioridade ao terceiro mundo, podem perder os europeus, sem cuja cooperação os Estados Unidos dificilmente enfrentarão a Rússia. Cedo se verifica, no entanto, que para além dos princípios, estão em jogo posições estratégicas, mercados e o acesso a matérias-primas. Estes são, para os dois blocos, os factores determinantes. De momento, com a interpretação extensiva da Carta da ONU, duas consequências são imediatas: a internacionalização de todo o problema colonial e o direito de censura que se arrogam as Nações Unidas.

Conferência do Atlântico (1941).




























Winston Churchill, Franklin D. Roosevelt e Joseph Stalin na Conferência de Ialta (Fevereiro de 1945), com o fim de traçarem o plano de organização da Europa do pós-guerra.



Ainda antes de o Quartel-General das Nações Unidas haver sido estabelecido em Nova Iorque, logrou realizar-se, em 10 de Janeiro de 1946, a primeira sessão da Assembleia Geral em Londres (Central Hall).



Primeiro Secretário-geral da ONU Trygve Lie, diplomata norueguês que ficou no cargo de 1946 a 1952.




Central Hall, Reino Unido: palco da primeira Assembleia-Geral das Nações Unidas.




Reunião da Assembleia Geral no Quartel-General das Nações Unidas, em Nova Iorque (14 de Outubro de 1952).



Transfere-se o debate, deste modo, para a plataforma parlamentar da Assembleia Geral da ONU. [Emprego a expressão plataforma parlamentar por ter sido comummente usada. Mas importa sublinhar que, sem embargo de se haver procurado criar essa imagem, a ONU nunca foi nem pode ser um parlamento, equiparável aos parlamentos nacionais. A ideia de que a ONU é um parlamento mundial, e representa a opinião pública mundial, é inteiramente falsa. A ONU só é parlamentar no aspecto processual, no aparato exterior dos votos, das maiorias, dos debates, etc. Na substância, é um organismo político internacional sujeito aos interesses das potências, e das maiorias que estas comandem, e de algum modo é orgão independente, com vida própria e acção autónoma]. São cerca de oitenta os seus membros, e estes dividem-se em grupos consoante os seus interesses nacionais: o grupo afro-asiático; o grupo latino-americano; o grupo europeu; o grupo da União Soviética e países satélites; e os Estados Unidos, que se consideram fora de qualquer agrupamento. Impulsionados pela União Soviética, e com o apoio espectacular desta, os afro-asiáticos multiplicam-se em iniciativas, e todas são apresentadas como simples execução da Carta, em particular do seu artigo 73.º Como instrumento fundamental, é usada a Quarta Comissão da Assembleia Geral e no seio desta travam-se polémicas que atingem a violência. Defendem os afro-asiáticos um ponto de vista: as nações que são responsáveis pela administração de territórios não-autónomos têm obrigação de informar regularmente a Assembleia de como conduzem essa administração e de encaminhar esses territórios para a autonomia ou independência, conforme as aspirações dos seus povos; e a Assembleia tem o direito de analisar estas informações, formular as suas críticas, definir o processo por que o território deve atingir a autonomia ou independência. A esta tese opõem os europeus com responsabilidades ultramarinas uma argumentação cerrada: A Carta entrega ao critério discricionário dos países membros a definição do que considera como seus territórios não-autónomos; para os que forem assim caracterizados por parte das soberanias responsáveis, as informações a fornecer à ONU dizem apenas respeito a condições sociais, económicas e educativas, e não políticas, e estão sujeitas às limitações constitucionais de que apenas é juiz o governo do país membro; e a Carta não atribui à Assembleia qualquer prerrogativa de intervenção no processo constitucional ou político que possa conduzir um território não-autónomo à autonomia ou à independência, nem este objectivo resulta necessariamente da lei básica da ONU. Salienta-se a Bélgica: esta sugere que, no fundo, se trata de um problema de liberdade individual e de direitos humanos: nesse caso há que examinar qual a situação de todas as populações em todos os países, mesmo nos que sejam independentes. Ripostam os afro-asiáticos: se o objectivo não é político, então não há outro, pois que as condições materiais dos territórios, por óptimas que sejam, apenas interessam se o território for independente, e a independência tem de ser havida como objectivo primordial que por si só assegura as demais condições; e em qualquer caso a maioria, porque o é, está autorizada à interpretação da Carta, instrumento vivo e adaptável, que em cada momento parecer mais conveniente. Nestas coordenadas se arrastam as polémicas e os debates: tudo é entrecortado das acusações de imperialismo, colonialismo, opressão, genocídio, racismo, exploração, dirigidas aos países europeus ocidentais, e só a estes, ficando excluídos de investigação e ataque os domínios reservados dos grande impérios.

Eleonor Roosevelt (1949). Presidiu, na ONU, à comissão que elaborou e aprovou a Declaração Universal dos Direitos do Homem.


(...) Admitido Portugal nas Nações Unidas, o secretário-geral da organização, de harmonia com a prática desta, dirige ao governo de Lisboa uma nota perguntando se este administra algum território nos termos e para os efeitos do Art. 73.º da Carta da ONU. É inocente a nota, e singela no seu teor; e parece destituída de gravidade. Salazar estuda-a atentamente, e examina-a com Paulo Cunha; e é dada uma resposta negativa: nesta declara-se que Portugal não é responsável por qualquer território a que seja aplicável o Art. 73.º da Carta da ONU. Nada mais é dito, nem é recebida ou enviada outra correspondência. Nesta simples troca de notas, todavia, Salazar acaba de tomar uma decisão de profundo significado, das mais sérias implicações e extensas consequências. Que querem dizer a atitude de Salazar e a resposta do governo de Lisboa? Indicam às Nações Unidas que as províncias ultramarinas portuguesas não têm vocação para independência separada; sublinham que o governo português se arroga o exclusivo direito de interpretar e aplicar a sua ordem constitucional, e que neste domínio não admite interferências alheias; afirmam que Portugal não submeterá a sua administração ultramarina a qualquer sistema de censura internacional, e que portanto não transmitirá quaisquer informações à comunidade dos países; e finalmente notificam as Nações Unidas de que, se se respeita a letra do Art. 73.º, é repudiada a prática política e processual que à sombra deste a ONU fora estabelecendo gradualmente. Deste modo, Salazar assume uma posição, coerente no plano interno, que desafia a corrente política mundial. Na efectividade das coisas, executa os preceitos constitucionais sobre a unidade da nação, e leva às últimas ilações o conceito territorial, político e sociológico de um ultramar que é Portugal no seu perfil histórico. Dissera-o no discurso de 30 de Maio: os territórios portugueses não têm sequer que se tornar autónomos porque já são independentes com a independência da nação. E no plano internacional, por uma nota de algumas linhas, Salazar rompe as coordenadas em que se está movendo a comunidade de nações; proclama a sua rebeldia perante o anticolonialismo em moda; e afirma que os interesses da nação portuguesa são prioritários, não oscilam ao sabor de decisões de terceiros, e são oponíveis a tudo e a todos.

Enovelada no jogo da política interna, a alta-roda dos homens da situação e mesmo dos oposicionistas não se apercebe da magnitude da decisão de Salazar; e fica alheia a massa da opinião pública. Não é essa, no entanto, a atitude da ONU. Não está em funcionamento a Assembleia Geral, nem as respectivas comissões; mas as delegações permanentes dos países membros, em Nova Iorque, compreendem desde logo todo o alcance da resposta de Lisboa. Ficam perplexos os delegados das nações ocidentais: estas tinham aceite quase passivamente as imposições da Assembleia Geral, que as impelia no caminho do abandono da suas posições fora da Europa: de súbito são surpreendidas com a atitude de um governo do Ocidente que diz não à Assembleia e recusa a prática desta: e ficam embaraçadas entre o receio que sentem da ONU e a atitude de um amigo e aliado. Ficam desnorteados os representantes afro-asiáticos, e possuídos de exaltação emotiva: toda a orientação anticolonial, tenaz e pacientemente executada nos últimos anos, seria posta em causa, e poderia ser destruída, se a atitude portuguesa fosse acatada pela Assembleia: porque nessa hipótese era inevitável que os demais países ocidentais arrepiassem caminho e deixassem de se submeter aos ditames da maioria da ONU: e seria o colapso de toda a política de cerco ao Ocidente. Por estes mesmos motivos, os delegados soviéticos e de países satélites vêem o perigo da posição assumida por Portugal, e no sentido da sua impugnação trabalham intensamente junto dos representantes afro-asiáticos. E num outro dilema se encontram os delegados dos países latino-americanos: assimilando a origem das suas independências a uma sublevação anticolonialista, e desejando por interesse assumir uma atitude reivindicativa quanto aos Estados Unidos, sentem-se seduzidos pelas teses dos afro-asiáticos, cujo apoio pretendem conquistar para objectivos puramente latino-americanos; mas pelas raízes e afinidades nutrem pelo Ocidente Europeu, e em particular por Portugal e Espanha, uma simpatia e uma solidariedade que lhes torna constrangedora uma atitude hostil; e perante a resposta de Lisboa vêem-se embaraçados, e divididos.








Castelo de Guimarães



Castelo de Guimarães: Torre de Menagem



Espada atribuída a D. Afonso Henriques. Foi retirada do seu túmulo em 1834, na Igreja de Santa Cruz em Coimbra.















Para além destes aspectos, a entrada de Portugal nas Nações Unidas tem outra consequência imediata: se não se modifica a substância da política externa portuguesa, é alterado o seu estilo. Gradualmente, aos entendimentos bilaterais, às negociações no segredo dos gabinetes, à discrição nas conversas, vem acrescentar-se uma diplomacia de praça pública, de decisões rápidas, de ambientes indiscretos, de publicidade de atitudes, de tomadas de posição que, não obstante respeitarem a problemas alheios, se reflectem todavia nos interesses portugueses. Dispondo de posições mundiais, da Europa à Ásia, e tendo deixado a Europa de constituir centro exclusivo do poder, o governo de Lisboa fica envolvido nos conflitos de forças e choques de interesses que se produzem pelo vasto mundo, e em que os participantes definem a amizade ou a hostilidade de terceiros pela posição que estes assumirem na luta que os opõe. Do facto resultam pressões sobre Lisboa; mas também resultam possibilidades de, em troca da satisfação de pedidos alheios, obter contrapartidas em favor de desejos portugueses. Disperso por um mundo em tensão e luta, Portugal é vulnerável; mas, ao mesmo tempo, o seu papel adquire relevo porque a sua voz conta em muitos planos.

No conjunto, a entrada de Portugal na ONU confirma o cepticismo e apreensão de Salazar. Não acredita na eficácia da organização, nem na genuinidade dos seus propósitos. Sob uma capa legal, o objectivo é político, e político é o seu comportamento. Reflecte o peso das forças em presença, e destas é um instrumento, que utilizam consoante os desígnios próprios; e o preço há-de ser suportado pelos mais fracos, porque os mais fortes, se impõem as decisões, não pagam os custos materiais e políticos da sua execução. De momento, contudo, o organismo de Nova Iorque desfruta nos espíritos ingénuos de uma aura generalizada: é o governo mundial, o símbolo dos direitos humanos, a garantia da paz e a prosperidade para sempre e em toda a parte, o sacrário dos grandes princípios e dos grandes ideais, o altar onde ajoelham interesses egoístas e ambições de Estados e governos: e as suas decisões, havidas por sagradas, devem ser cumpridas com escrúpulo religioso. Mas para além do instante que passa, Salazar procura esquadrinhar o futuro. Não acreditando que o mundo caminhe para a unidade política e se transforme numa federação universal, e não correspondendo a ONU à estrutura natural da comunidade de nações, o chefe do governo português pensa que o organismo de Nova Iorque é efémero, e que tem um poder apenas mítico, enquanto lho for consentido pelas grandes potências; e está destinado a ir de crise em crise até à decadência. Dentro de vinte ou trinta anos, tudo será diferente. Deste modo, como obedecer a decisões que, emanadas de um organismo de força provisória, afectariam interesses portugueses a título permanente? Como e por que sacrificar esses interesses a umas Nações Unidas que não representam ideais ou princípios estáveis e duradouros, que devam condicionar as perspectivas históricas de um país, mas traduzem a manifestação de ambições e interesses alheios num momento transitório? Por outro lado, as necessidades reais dos países, e da sua colaboração, hão-de impor organizações regionais - o Pacto do Atlântico, a Organização Económica de Cooperação Europeia, outras ainda - como base suficiente para salvaguarda dos interesses legítimos. E nessas e na vontade nacional confia Salazar para se eximir às injunções da ONU. Por isso, a esta dá uma resposta que é um desafio: em matéria de ultramar, Portugal não possui territórios dependentes ou não-autónomos: estes são independentes com a independência da nação: e do que faz, ou não faz, contas nenhumas têm a prestar em Nova Iorque.

(...) No contexto das Nações Unidas, na lógica política da contracção europeia, definha a força ocidental; com esta, e para surpresa de Washington, sofre uma erosão a influência dos Estados Unidos, que encontram dificuldade crescente em manipular a ONU; e produz-se um esforço dos blocos afro-asiático e soviético. Muitos vêem nos factos a eficácia da Organização de Nova Iorque. Salazar vê nos factos a alteração do equilíbrio de poderes no mundo, que a ONU reflecte. E quando a União Soviética faz explodir a sua bomba de hidrogénio, num avanço tecnológico que frisa com o dos Estados Unidos, não se modifica por essa circunstância, de súbito, a posição: mas agrava-se, em desfavor do Ocidente, o desequilíbrio psicológico e político. E acentua-se a tendência para levantar no seio da ONU problemas de raiz nacional: a educação, a política económica, a política comercial, os direitos humanos; passa-se ao debate sobre o acesso aos mercados, à distribuição de matérias-primas e seus preços; e discutem-se conflitos internos, problemas de soberania, questões bilaterais. De tudo, são de confirmar as conclusões já tiradas: o anticolonialismo tem por alvo o Ocidente; atacada, a Europa concentra-se sobre si própria; nessa contracção, tem tendência para acreditar na supranacionalidade como defesa; os problemas nacionais são internacionalizados, com enfraquecimento das soberanias; e essa internacionalização, estimulada e explorada pelos novos impérios, conduz a um intervencionismo mundial praticado pelas forças em conflito. Perante esta sociedade que desponta, cabe a pergunta: é definitiva ou efémera? Está-se à beira de uma nova época e de uma nova arrumação da humanidade? Ou enfrenta-se uma vicissitude mais ou menos longa mas passageira? Num caso e noutro, há que tomar decisões diferentes, e todas são vitais para o futuro. Que fazer de Goa, que tanto significa na história de Portugal? E de Timor, que tantos esforços consumiu durante a guerra? E de Macau, uma jóia de família? E de África, de tão grande valor e importância? Salazar desabafa com homens de confiança: "Estou na ponte de comando mas em torno só vejo nevoeiro cerrado"».

Franco Nogueira («Salazar. O Ataque - 1945-1958, IV»).







«Não discutimos a Pátria, quer dizer, a Nação na sua integridade territorial e moral, na sua plena independência, na sua vocação histórica. Há-as mais poderosas, mais ricas, porventura mais belas; mas esta é a nossa, e nunca filho algum de coração bem formado teve o desejo de ser filho de outra mãe. Deixemos aos filósofos e aos historiadores o entretenimento de alguns devaneios acerca da possibilidade de diferente aglomeração de povos e até das vantagens materiais de outras combinações que a História não criou ou desfez; no terreno político e social, para nós portugueses que somos de hoje e velhos de oito séculos, já não há processo que possa ser revisto, debate que possa ser aberto, pedaço de soberania ou de terra que nos pese e estejamos dispostos a alijar de cansados ou de cépticos.

Sem receio colocámos o nacionalismo português na base indestrutível do Estado Novo; primeiro, porque é o mais claro imperativo da nossa História; segundo, porque é inestimável factor de progresso e elevação social; terceiro, porque somos exemplo vivo de como o sentimento pátrio, pela acção exercida em todos os continentes, serviu o interesse da Humanidade. Vocação missionária se tem podido chamar a esta tendência universalista, profundamente humana do povo português, devido à sua espiritualidade e ao seu desinteresse. Em qualquer caso ela não tem ponto de contacto com o suspeito internacionalismo humanitário de hoje a defender que as fronteiras se abatam para alargar as próprias em prejuízo das alheias. - Não discutimos a Pátria».

Oliveira Salazar («As Grandes Certezas da Revolução Nacional», discurso proferido em Braga, da Varanda do quartel de infantaria n.º 8, em 26 de Maio de 1936, por ocasião da grande parada e festas ali realizadas em comemoração do décimo aniversário do movimento de 28 de Maio).


«Lisboa, 14 de Fevereiro de 1964 - Recebi o embaixador Anderson, a seu pedido.

(...) Anderson perguntou se lhe podia dizer qualquer coisa quanto ao projecto "Loran-C". Respondi que não: cada vez se tornava mesmo mais difícil dizer fosse o que fosse: porque nós continuávamos sem "ver" com clareza os intuitos da política americana. Não era, nem nunca fora, nem queríamos fazer qualquer espécie de "balckmail": não estava isso nos nossos hábitos, nem nas nossas tradições, nem nos nossos princípios, nem no nosso poder. Anderson interrompeu para afirmar com vivacidade que tal recurso não nos daria qualquer resultado. Comentei que estávamos perfeitamente conscientes do facto: repetia-lhe, de resto, que tais expedientes não estavam dentro da nossa ética. Mas eu não podia deixar de lhe dizer, mais uma vez, que o projecto "Loran-C", como outros, constituíam uma forma importante de cooperação que nós não víamos como ter com um país que seguia uma política para nós hostil. Anderson contestou: e disse que, quaisquer que fossem as divergências em África, nós tínhamos de entender que o "Loran-C", como outros projectos, tinha por fim aumentar a capacidade de defesa e retaliação do Ocidente quanto à União Soviética, e que isso não poderia ser-nos indiferente. Repliquei que ele, Anderson, estava equivocado: e que ele tinha de compreender, e o seu Governo tinha de compreender, era que se os Estados Unidos fossem para nós hostis em África, e se perdêssemos a África portuguesa, passávamos a ser outra nação, diversa da actual, e que os nossos interesses passavam também a ser diferentes. Pelo contrário: só desejaríamos então diminuir e se possível eliminar os riscos a que estamos submetidos. Anderson disse que os Estados Unidos não nos hostilizavam em África. Com a maior afabilidade, eu observei que as nossas conclusões, ao longo dos anos, eram em sentido contrário. Anderson contestou a sua validade. Sempre muito afavelmente, eu insisti, e lembrei o recente discurso de Williams, e os seus numerosos discursos anteriores. Anderson refutou as minhas observações. Eu disse que os Estados Unidos nos procuravam impelir para um plano inclinado, por fórmulas aparentemente inócuas, mas no fundo com o objectivo de nos expulsar de África. Anderson tornou a negar. Então, com tom firme, indignado e grave, disse-lhe: "Pois bem, se tudo é como o Embaixador diz, então como explica que o Sr. Godley, chefe da divisão da África do Departamento de Estado, tenha há dias dito ao nosso encarregado de negócios em Washington que havia chegado a altura do Governo português 'negociar' com Holden"? Levantei-me, fui buscar o relato da conversa, mostrei-o a Anderson, repisei as palavras de Godley. Anderson ficou mudo, siderado, desorganizado, perguntou a data da conversa, tomou uma nota na sua agenda, e limitou-se a dizer duas vezes: "Compreendo a sua indignação".

Torre Loran na estação em Sand-Johnston Island (1963).



Um receptor Loran-C para uso na marinha mercante.







Localização de Taipé (capital da República da China) no norte da ilha de Taiwan (antiga Formosa).



Depois Anderson tirou do bolso um papel e mostrou-mo: era um despacho de telex dando conta de conversas que através de Macau estaríamos conduzindo com a China para efeitos do seu reconhecimento, consistindo a única dificuldade no facto de Portugal pretender preservar as suas relações com a Formosa. Ri-me com gosto, e propositadamente vinquei que só não compreendia a referência à Formosa: Nós não tínhamos que ser gratos a Taipé: sempre falava e votava contra nós no Conselho de Segurança: que mais do que isso poderia depois fazer o delegado de Pequim? Anderson disse que o perigo para nós não era esse: acaso já eu pensara nos perigos de uma embaixada de Pequim em Lisboa ou de Consulados em Angola e Moçambique? Disse-lhe que sim, e que isso nos não atemorizava: Embaixadas e Consulados ocidentais havia cuja actividade era infinitamente mais perigosa. Anderson perguntou o que queria eu dizer com aquela afirmação. Nada, disse eu, senão que estamos a par do que fazem entre nós as missões dos nossos amigos e aliados. Quando ele não fosse embaixador e eu não fosse ministro, talvez pudéssemos falar de outra forma. Anderson sorriu. Voltei a afirmar que sabíamos muita coisa sobre a actividade não diplomática das Embaixadas ocidentais. Anderson voltou a rir, e disse: "Efectivamente, desde que eu entrei para estas funções, tenho aprendido muitas coisa!"».

(...) Lisboa, 6 de Junho de 1964 - Recebi Anderson, a seu pedido. Deixei-lhe a iniciativa da conversa. Abordou, pela ordem que indico, os pontos seguintes.


Como eu lhe havia solicitado, pedira a Washington elementos sobre a situação interna na Argélia. Acabava de os receber. Podia resumi-los assim: caos administrativo; indústria e agricultura paradas; instabilidade política, com repressão e governo ditatorial; regime pessoal de Ben Bella, na mão de radicais da esquerda; B.B. ficara muito impressionado com a sua visita a Moscovo; assumira decerto importantes compromissos perante Kruschev, mas os Estados Unidos ainda não sabem quais; algum armamento russo tem desembarcado na Argélia, mas não tinham provas de que isso fosse feito ao ritmo de dois navios por mês; e todo o auxílio que Argel tem recebido da França é desperdiçado em demagogia. Em suma, concluiu Anderson, os Estados Unidos são "against everything B.B. stands for".

Parecia-lhe que a discussão e o voto na Comissão dos 24 "se tinham passado muito bem" para nós. Decerto: nós preferíamos não ter qualquer resolução, o que ele compreendia; mas, dadas as circunstâncias, Anderson pensava que o texto poderia ter sido pior. Comentei que o texto era "bad enough", e que não podíamos admitir qualquer resolução. Mas eu concordava que o seu teor era menos mau que o do ano passado. E já agora, com a habitual franqueza, queria dizer-lhe (com a mesma lealdade com que fazia críticas) que o discurso do delegado americano, àparte duas ou três expressões menos felizes, continha alguns elementos positivos, e de que não discordávamos, e por isso eu tinha muito gosto em lho dizer. Anderson disse que ainda não havia lido o discurso. E observou a sorrir: "vê que não foi inútil a minha ida a Washington?" Respondi que sempre estivera seguro de que fora muito útil. Deixei cair uma palavra dura para com a Dinamarca. Anderson disse que os americanos tinham tentado demover, em Nova York, o delegado dinamarquês de uma atitude hostil a Portugal; mas as instruções de Copenhague haviam sido peremptórias. Reiteradas pelo próprio ministro dos Estrangeiros, ao que supõem.

Centro de Manhattan em 1932, visto do Centro Rockefeller.




Bandeira de Nova Iorque




Selo de Nova Iorque



Estão inquietos com a situação no Congo. Há caos, incerteza, e ninguém parece capaz de manter a lei e a ordem. Os italianos estão a treinar a aviação congolesa; os belgas fornecem oficiais; e os Estados Unidos estão a ceder alguns aviões de transporte e apoio logístico. (Eu tinha há semanas perguntado a Anderson o que havia sobre a base de Kamina e o rumor de que se encontram no Congo cerca de 2 mil soldados americanos. Ficara de saber, mas sobre estes pontos não disse nada). Estavam com receio de Tshombé: iria libertar Gizenga? Seguir uma política de esquerdas? Eu disse-lhe que também não sabia. E perguntei: que se passou entre Tshombé e Macarthur, embaixador dos Estados Unidos em Bruxelas? Disse Anderson que nem sabia que os dois se houvessem encontrado, e ia procurar informar-se.

Tirou um papel dactilografado, e guiando-se por ele Anderson disse: o Sr. Carlos Lacerda afirmara em Washington que em Lisboa os portugueses lhe haviam assegurado (e comprovado com um documento) estarem os americanos ajudando os terroristas, fornecendo armamento, dando-lhes dinheiro; e que estes aspectos haviam sido focados pelo presidente do Conselho na sua conversa com o governador de Guanabara. Ele, Anderson, queria dizer com vigor que nada daquilo era verdade; que o documento era falso; e que os americanos nunca haviam ajudado os terroristas. E acrescentava que "coisas destas" só eram prejudiciais à causa portuguesa em Washington. (Anderson falou com muita energia e ênfase, embora sempre correcto). Muito serenamente, respondi a Anderson que nas minhas conversas com o governador Lacerda fizera efectivamente muitas críticas à política americana em África, e não tinha dúvidas em admitir que fora mesmo ao ponto de dizer a Carlos Lacerda que organismos privados americanos (recordava-me de ter citado o American Committee on Africa e o International Rescue Committee) têm auxiliado o terrorismo. Mas também lhe afirmava que em nenhuma ocasião sugerira eu a Carlos Lacerda que o Governo dos Estados Unidos, como tal, estivesse a fornecer armas aos terroristas ou a auxiliá-los. E quanto à conversa com o presidente do Conselho, eu não podia obviamente responder: mas do que o presidente já me havia referido eu não podia concluir que tais pontos houvessem sido abordados. Informar-me-ia, no entanto, e depois lho diria. Queria observar-lhe, porém, que Lacerda tivera aqui numerosas conversas com numerosíssimas pessoas: era natural alguma confusão da sua parte. Anderson pareceu ficar acalmado neste ponto.

Novo papel da pasta: desta vez era a fotocópia de um artigo publicado numa revista alemã e onde se lia, segundo uma tradução inglesa dactilografada que também me mostrou, uma declaração que o jornalista alemão Hunck me atribuía, e em que sou citado como tendo dito que os nossos inimigos em África não são os chineses, os russos, ou africanos: são os americanos; e que estes se querem apoderar de Angola, para a juntar ao Congo, tudo dominando, etc. Anderson negou com veemência tão absurdas acusações, e de novo disse que "coisas deste tipo" só nos prejudicam em Washington. Eu disse a Anderson que não conhecia o artigo. No próprio momento pedi informações ao nosso serviço de imprensa; e pude assim mostrar um exemplar da revista a Anderson, e esclarecê-lo de que o artigo era apenas um resumo de uma série de seis que Hunck havia publicado em jornais; e por isso não o traduzíramos; e por isso eu não o conhecia. Mas em nenhum dos seis artigos se poderiam decerto encontrar as mesmas frases, porque elas me teriam sido assinaladas. Isto pareceu impressionar Anderson. De resto, acrescentei, ele devia concordar comigo em que eu era "demasiado experiente" para dizer o que me era atribuído. Não, eu não fizera aquela declaração. Anderson comentou que Hunck o encontrara durante uma hora em Angola; mas no artigo dizia que viajou com o embaixador um dia inteiro; e dizia mais que Anderson fora incorrecto para crianças que cantavam em sua homenagem. "Já vê", observei, "trata-se de um jornalista anti-americano". E disse-lhes que ia investigar as possibilidades ou a vantagem de se publicar na revista um esclarecimento ou correcção.

Marginal de Luanda (anos 60).



Luanda (1968).



O coração da cidade de Lourenço Marques nos anos 60 (Moçambique).



Baixa de Lourenço Marques (princípio dos anos 60).




A Sé Catedral no princípio dos anos 60 (Lourenço Marques).



(...) Alusão minha ao caso do Loran-C. Disse a Anderson que poderíamos aprofundar um pouco mais as nossas respectivas posições. Estávamos preparando um memorandum com o que desejávamos obter em material; aguardávamos, por outro lado, que nos fosse dado um conhecimento mais pormenorizado das necessidades técnicas americanas para as instalações Loran-C. Anderson concordou. Ficámos de falar de novo no assunto.

Alusão de Anderson ao caso da tantalite de Moçambique. Aleguei de novo as nossas razões, e sublinhei a diferença de preços: os americanos pagam cerca de 4.500 dólares, os chineses e os russos cerca de 9.000. Anderson vincou a questão de princípio. Comentei que os princípios pareciam jogar sempre contra nós. E queria dizer-lhe: talvez nos F-86 tivessem os americanos alguma razão; mas não tinham nenhuma no problema da tantalite. Não se podia aplicar a Moçambique a jurisdição da COCOM, e quanto ao "Batlle Act", que ele invocava, não nos preocupava muito: auxílio americano em África, apenas recebíamos o da Caritas, e esse poderia efectivamente cessar. Anderson falou de auxílios à Metrópole, que poderiam ser anulados. Repliquei vivamente que não sabia de nenhuns, e além disso não podia admitir que o Governo americano considerasse Moçambique parte integrante da nação portuguesa apenas quando lhe convinha para aplicar o "Battle Act" contra nós; mas já assim não era quando tal integração servisse os interesses portugueses. Ou o "Battle Act" se aplicava a tudo, e isso queria dizer que os Estados Unidos consideravam tudo, como sendo Portugal; ou aplicava-se separadamente, e então a Metrópole só poderia ser punida pelo que fornecesse em materiais estratégicos a russos e chineses, e não pelo que fornecesse Moçambique. Anderson sorriu-se, e não replicou. Concluí afirmando que, no entanto, nada fora ainda exportado.

Mencionei Macau: havíamos preso terroristas chineses (da Formosa) com armamento americano, que se dispunham a seguir para a China com o objectivo de actos de sabotagem. Era isto um perigo que não podíamos admitir. Pedia-lhe para ponderar isto às suas autoridades. Anderson prometeu fazê-lo.

Washington, 18 de Junho de 1965 - Ao invés das ocasiões anteriores, Dean Rusk oferece-me desta vez um grande almoço no Departamento de Estado; estão o secretário da defesa Robert MacNamara, os chefes de algumas divisões, como Cleveland e Rostow; conselheiros especiais, como Thompson; outros ainda.

(...) Ao meu lado, Cleveland disse-me que se aproximava rapidamente um momento dramático: aquele em que os Estados Unidos terão de usar pela primeira vez o veto no Conselho de Segurança. Tornara-se a ONU completamente irresponsável, e os Estados Unidos não podiam aceitar que interesses vitais americanos fossem decididos por maiorias demagógicas. Único problema consistia em encontrar um motivo que justificasse o veto: mas decerto em breve surgiria. Comentei que me dava gosto de ouvir as palavras de Cleveland; não pelos embaraços em que os Estados Unidos se pudessem encontrar; mas porque via confirmada a opinião que há muito tínhamos de que a ONU não era organismo a que algum Governo idóneo pudesse entregar o julgamento dos interesses vitais do seu país. Cleveland disse que compreendia perfeitamente os meus sentimentos.







Nesta altura, Rusk eleva a voz e pede que se faça silêncio em torno da mesa: deseja que, para seu benefício e dos demais, eu "relate" a minha visita ao Brasil. Acedi prontamente; mas resolvi desde logo no meu íntimo fazê-lo com discrição e prudência. Fiz o elogio da integridade, da inteligência, da dignidade do presidente Castelo Branco; destaquei a distinção, o profissionalismo de Vasco Leitão da Cunha; referi-me ao general Costa e Silva como figura militar de prestígio, e acaso figura do futuro. Desenvolvi as minhas impressões favoráveis quanto à forma como a actual Administração brasileira enfrenta os problemas deixados pela demagogia do presidente Goulart. Sublinhei as preocupações de alguns chefes brasileiros pela infiltração comunista em alguns sectores da vida brasileira; e a ansiedade que me pareceu observar quanto à América Latina, em particular o Uruguai e a Colômbia. MacNamara e Rusk indicaram a sua concordância neste ponto. Rusk pergunta, com intuitos óbvios, se no Rio eu havia tratado da "construção da Comunidade lusitana". Digo que tinha conversado longamente sobre problemas luso-brasileiros, no espírito da maior cordialidade; e descrevi quanto era evidente uma muito melhor compreensão do Brasil perante a posição e a política de Portugal. Rusk declara que tem a mesma opinião. E quando vinquei a reacção favorável da toda a imprensa brasileira à minha visita, e forneci um ou outro pormenor, o secretário de Estado não ocultou o seu espanto, e pareceu impressionado.

(...) Declaro então que me vou ocupar de problemas luso-americanos. Tiro do bolso uma lista que havia preparado. Já que faláramos do Brasil durante o almoço, quero dizer ao secretário de Estado que tinha averiguado que a Embaixada americana naquele país assediava todos os deputados e senadores brasileiros, que houvessem visitado o Ultramar português, tentando dissuadi-los de exprimir quaisquer ideias favoráveis a Portugal. Ball comenta que não acreditava que "os Estados Unidos fossem tão eficientes". Observo-lhe que não é esta a reacção que eu esperaria: pensava que Ball se deveria mostrar indignado e dizer que não acreditava naquela atitude da Embaixada porque era contrária à política americana. Rusk intervém para dizer que vai averiguar os factos. Eu enuncio a seguir outras queixas: os discursos anti-portugueses de Mennen Williams, a conversa de Godley com o arquitecto de Habsburgo, o auxílio aos refugiados evitando o regresso destes, recusa de nos vender 60 morteiros e algumas viaturas, pressões sobre a Itália para que não nos vendesse alguns aviões de reconhecimento, atitude da Fundação Ford de auxílio financeiro a grupos terroristas, pressões em Lisboa para retirada de aviões F-86 da Guiné, novas exigências para a simples compra de motores de avião a serem usados dentro da área da NATO. Insisto na conversa de Godley com Habsburgo para salientar que aquele usara a expressão "recomeçar auxílio", cuja implicação é óbvia. Rusk não faz comentários nem esboça qualquer defesa: repete, como em tempos me havia dito, que os Estados Unidos se limitam a "comprar" alguma informação. A cada questão por mim suscitada, Rusk faz sinal aos secretários para que tomem nota. Parece surpreendido quando lhe falo das novas exigências para motores de avião a serem usados na área da NATO: declara que o assunto será resolvido a nosso favor. Por último, eu levanto a questão dos aviões canadianos: explico como os aparelhos haviam sido vendidos pelo Canadá à Alemanha, pretendendo nós comprá-los a esta, que anuíra, e chegara mesmo a assinar o acordo, e como os Estados Unidos haviam feito pressão no Canadá para que este por sua vez se opusesse, como se opôs, a que a Alemanha nos vendesse os aviões. Digo a Rusk que não tenho dúvidas quanto a este facto: fora referido por Lester Pearson ,[primeiro-ministro do Canadá] a Roy Wellensky [primeiro-ministro da Rodésia do Sul]: este contara-me Lisboa: e acrescentara mesmo que Pearson se mostrara muito penalizado com a pressão americana. Neste ponto, o secretário de Estado não consegue dominar a sua perturbação; agita-se; alteram-se as feições; e fico com a impressão de que se sentiu traído por Pearson. Não nega, fica em silêncio. Concluo por confessar a minha perplexidade em face de tudo, e sugiro que talvez o secretário de Estado queira fazer algum comentário que pudesse dissipar a ideia, necessariamente decorrente das queixas que eu apresentara, de que a política americana pretendia assegurar que falhasse a política portuguesa. Rusk mantém-se em silêncio. Ball intervém então. Entre Portugal e os Estados Unidos as divergências não eram de fundo mas de táctica. E este ponto leva ao exame aprofundado do conceito de autodeterminação, da força do nacionalismo africano, da segurança da África; e é debatida toda a problemática relacionada com aqueles problemas. Ball declara que os Estados Unidos estão muito favoravelmente impressionados com as realizações portuguesas em África; e informa que o relatório de Gilpatrick era altamente elogioso e com factos convincentes. Ball pensa, todavia, que é fundamental para nós a definição de objectivos políticos. Rusk observa que deveríamos encontrar uma fórmula ou processo para demonstrar ao Mundo que as populações de Angola e Moçambique querem aceitar o "status quo". Ball falou da necessidade de manter em África a "presença" e a "influência" portuguesas. Comento que não haverá uma coisa nem outra se forem quebrados os vínculos políticos. Ball exclama que os Estados Unidos não desejam que tais vínculos sejam destruídos. Rusk invoca a possibilidade de um plebiscito. Lembro ao secretário de Estado que a ideia já consta do relatório do secretário-geral da ONU apresentado em 1963; que a mesma fora rejeitada pelos africanos; que a ONU só aceita um plebiscito desde que sejam retiradas as forças portuguesas e seja ela a organizá-lo e a conduzi-lo; e que a Organização da Unidade Africana já declarara que somente reconhece os resultados de um plebiscito se estes forem contrários a Portugal. Ball recorda que o problema de um plebiscito fora examinado em cartas que trocara com o chefe do Governo português. Confirmo, e sublinho que justamente se fora forçado a desistir da ideia por ter sido repelida pela ONU e pelos africanos. Rusk declara que, no caso de ser feito um plebiscito, os amigos de Portugal nos apoiariam contra os africanos. Declaro que apenas poderíamos ir para essa solução se o apoio fosse prévio, isto é, se os Estados Unidos afirmassem, solene e publicamente, que, indo Portugal efectuar um plebiscito, aceitariam e apoiariam os resultados a que este conduzisse; nós não teríamos objecção a que os americanos e outros amigos nossos designassem observadores oficiosos para seguirem o plebiscito; mas nunca poderíamos consentir a intervenção das Nações Unidas. Rusk pergunta então se não poderíamos conseguir que alguns chefes africanos moderados começassem a defender em público a nossa política. Estranhei a pergunta, e observo que os Estados Unidos hostilizavam precisamente os países africanos que queriam colaborar connosco ou que pelo menos não nos queriam antagonizar, fazendo-lhe saber que cessaria o auxílio americano se fossem favoráveis a Portugal. Rusk declara que essa fase está ultrapassada, e insiste na ideia; e confessa que efectivamente alguns países africanos já lhe haviam manifestado o seu apreço pela política portuguesa. Ball conclui que tudo se resume em encontrar uma "fórmula táctica" que nos satisfaça e aos Estados Unidos: há que persistir.









Da esquerda para a direita: Llewellyn Thompson, Andrei Gromyko (ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética) e Dean Rusk (1967).



Da esquerda para a direita: Dean Rusk, Lyndon Johnson e Robert MacNamara (9 de Fevereiro de 1968).


Passo a tratar do problema dos Açores, da questão do Loran-C [sistema triangular de detecção electrónica que permite, ao que parece, servir a navegação de submarinos], das instalações que os Estados Unidos desejam em Cabo Verde para auxílio a voos espaciais. Indico que estes pontos se encontram em estudo; mas a opinião pública portuguesa não compreenderia que ampliássemos o auxílio aos Estados Unidos enquanto estes persistirem na política actual. Rusk diz que não devemos ligar aqueles três problemas às questões de África. Replico que para nós tudo faz um conjunto: a África é vital para o Ocidente: e a defesa deste, sem África, passava a ser secundária, se para mais houvesse de implicar sacrifício de Portugal. Aludo à base de Beja, para vincar os riscos que esta nos cria. Rusk pergunta por que não sai Portugal da NATO, se assim se sente mais protegido; e comenta que, se deixássemos de ser aliados, a opinião pública americana também não compreenderia a hostilidade que Portugal acaso viesse a ter com os Estados Unidos. Respondo ao secretário de Estado que o Governo português tem o sentido das responsabilidades, e que o problema era outro: o de saber se se pode pedir a um país que se sacrifique por aliados que o hostilizam. E torna-se à questão de África. Rusk e Ball repisam que agora a questão era de natureza táctica: impunha-se encontrar a "fórmula" que tivesse em conta os vários interesses e pontos de vista. "Nós só queremos ajudar vocês a ajudarem-se a si mesmos", declara Rusk. Sugiro que o não esclarecimento das queixas por mim feitas não se me afigura um bom passo nesse sentido. Rusk repete que é fundamental apurar os desejos das populações. Menciono Goa a esse propósito. Rusk retorquiu afirmando que um plebiscito teria salvo Goa. Observo: Nehru rejeitara a ideia peremptoriamente, e dissera que não aceitaria os Portugueses em Goa ainda que os Goeses o quisessem; um plebiscito em Goa levaria a um plebiscito em Angola e Moçambique, e este problema já o examináramos; e além disso os indianos apenas invadiram Goa quando viram que tinham "luz verde" dos Estados Unidos. Rusk não refutou esta afirmação. E menciono Macau e Timor, e pergunto se o secretário de Estado acha que qualquer plebiscito evitará um acto de força contra aqueles territórios. Rusk concordou que não evitaria: "Ali é preferível de momento nada fazer", remata o secretário de Estado.

(...) Lisboa, 31 de Março de 1966 - Recebi a seu pedido Antoine Pinay [antigo ministro das Finanças e presidente do Conselho da França]. Irradia encanto natural, e uma personalidade atraente, com um espírito vivaz, inusitado na idade que tem. Diz-me que esteve em Paris com Averell Harriman, e que este lhe afirmara ser necessário "abater" o presidente do Conselho [abater era aqui usado, evidentemente, no sentido político]. Pinay teria reagido, e defendido a política portuguesa. Harriman teria concluído que, pelo menos, era indispensável para o Ocidente levar o chefe do Governo português a dar independência a Angola. Pinay criticou o que classificou de "irresponsabilidade" dos Estados Unidos.

(...) Luxemburgo, 14 de Junho de 1967 - Conversa com Dean Rusk. Encontro efectuado no Gabinete da delegação dos Estados Unidos à reunião da NATO.

(...) Durante um momento falou-se da NATO. Rusk admitia a crise do PACTO: os franceses complicavam tudo; os aliados não queriam ocupar-se dos problemas reais no mundo. Eu disse ao secretário de Estado que tudo estava afectando a segurança da Aliança, e a do Ocidente, e que todos tínhamos sobejos motivos de preocupação.

Sentindo que se aproximava o fim da entrevista, fiz um apelo ao secretário de Estado. Em face da crise e dos problemas de segurança para o Ocidente, eu recusava-me a acreditar que uma Angola portuguesa, um Moçambique português, uma África do Sul e uma Rodésia ao lado do Ocidente, e tudo isto com os seus portos e caminhos-de-ferro, e aeroportos, e recursos - fossem indiferentes aos Estados Unidos. "Tudo isto, Dean, não vos pode ser indiferente!". "Sim, não é indiferente", respondeu o secretário de Estado "mas sob condição de que dure. Quanto tempo durará?"



Da direita para a esquerda: Franco Nogueira e Vasco Garin nas Nações Unidas (1960).




Dean Rusk nas Nações Unidas


Levantámo-nos. Mas ainda tive tempo para dizer, já de pé, que eu não sabia o que mais haveríamos de fazer para convencer os Estados Unidos de que não mudaríamos a nossa política; e além disso, se o problema era de duração, e se no caso de durarmos isso convinha aos Estados Unidos, então não estávamos mais perante questões de princípio e de consciência, mas em face de realidades práticas; e então a pergunta era esta: por que não nos ajudavam os Estados Unidos a durar em vez de nos hostilizarem?».

(...) Pretória, 26 de Julho de 1967 - Pontualmente, o Primeiro Ministro, Johanes Vorster, recebeu-me à hora marcada.

(...) Perguntei ao primeiro-ministro qual o estado actual das relações da África do Sul com a Inglaterra. Muito convictamente, o Dr. Vorster afirmou logo que os ingleses eram uns "dúplices". Repisou: "Sim, uns dúplices". Andavam sempre embrenhados em manobra e intriga. Andavam sempre a propor a "troca de um cavalo por outro". Talvez ele fosse um simples, mas não os compreendia. Passavam a vida a querer persuadi-lo de que o "tempo estava contra nós, sul-africanos", mas descobrira já que, no fundo, "o que os ingleses querem é que nos enforquemos e o que pretendem é ganhar para eles, esse tempo que dizem estar contra nós". E sugerem autênticos negócios. Por exemplo: durante meses disseram que garantiam a anexação do Sudoeste Africano por parte da África do Sul, mesmo com a aprovação pela ONU, em troca do apoio da República à destruição de Smith. "Eu disse-lhes que não. Disse-lhes que arranjaríamos para o Sudoeste Africano a solução que nos conviesse, mesmo sem a Inglaterra e sem a ONU. E disse-lhes que faríamos na Rodésia o que julgássemos ser justo (right), fosse qual fosse a vontade de Londres". Depois desta resposta, haviam desistido os ingleses de fazer novas sugestões de trocas e negócios, e também se tinham abstido de novas pressões.

Escutei sem comentários, e não subscrevi o que dissera dos ingleses, e solicitei depois ao primeiro-ministro uma palavra sobre as relações com os Estados Unidos, ao mesmo tempo que lhe dava uma súmula das nossas próprias relações com aquele país. Esclareceu o Dr. Vorster que tem tido as maiores dificuldades com Washington. Não percebia a política americana. Há pouco tivera uma longa conversa com o embaixador dos Estados Unidos. Dissera-lhe: "Então a estabilidade e a paz da República, a sua atitude ao lado do Ocidente, as posições que ocupa, tudo isto é indiferente para os Estados Unidos? Pois respondeu-me que tudo isso lhe era completamente indiferente, e que os Estados Unidos só confiavam na estabilidade que proviesse e fosse fundada na aplicação do princípio de 'um homem, um voto'. Observei ao embaixador que isso era o caos, a miséria, a inutilização de todo o esforço. Respondeu-me que assim seria nos primeiros cinquenta anos; mas depois haveria ordem para séculos; e era isso que interessava à política americana, e era nisso que jogavam". Continuou o primeiro-ministro dizendo que no entanto estava confiante, e não nutria receios excessivos. Era exacto que os Estados Unidos possuíam os meios materiais de atacar e destruir a África do Sul. Podem fazê-lo; mas o problema consistia em saber se o farão. Eles, sul-africanos, não tinham qualquer opção: apenas podiam lutar; e preferiam ser assassinados a cometer suicídio. Mas davam aos Estados Unidos uma opção: a de não atacarem.

(...) Washington, 17 de Novembro de 1967 - Eram 12 horas, Dean Rusk recebeu-me à hora fixada, no Departamento de Estado, e foi afectuosamente cordial o acolhimento.


(...) Disse ao secretário de Estado que queria falar-lhe do Congo e de recentes desenvolvimentos relacionados com o mesmo. Decerto já conhecia o teor da minha conversa com o subsecretário Katzenbach. Rusk fez menção afirmativa. Eu não ia portanto repetir-me, nem sublinhar os factos ou as fundadas razões que nos assistiam. Queria sobretudo dirigir-lhe um apelo; e seria um apelo à sua compreensão, aos seus sentimentos, ao seu sentido de justiça, até à sua amizade pessoal. Há sete anos vítimas de agressão do Congo; tendo perdido muitas vidas e bens; tendo enfrentado uma campanha violenta e tenaz no plano internacional - como julgava ou pensava o secretário de Estado que o povo português e o governo reagiriam perante a atitude dos Estados Unidos dando razão ao Congo no caso dos mercenários, defendendo o Congo, protegendo o Congo, e criticando e perante o mundo responsabilizando Portugal? Não lhe ocultava que causara entre nós a pior impressão a infeliz atitude americana, e não lhe escondia o sentimento de indignação e revolta, pela injustiça que se praticara, de que se sentiam possuídos os Portugueses. Rusk não fez comentário. Mas eu tinha de lhe dizer mais. Nas Nações Unidas não constituía segredo para ninguém que haviam sido os Estados Unidos os impulsionadores da reunião do Conselho de Segurança contra Portugal e que fora a delegação americana a única (salvo a Rússia, a Bulgária, a Índia, evidentemente) a insistir por uma "condenação" de Portugal - quando a própria Nigéria estava disposta a somente "lamentar" a atitude portuguesa. Corou ligeiramente o secretário de Estado, e cingiu-se a comentar, e em voz muito baixa e tímida, que não conhecia os pormenores que eu acabava de enumerar. Fiquei com a impressão de que Rusk desejou significar-me que à delegação americana na ONU (Goldberg) cabia a responsabilidade, e que esta agira sem as suas instruções, ou contra estas.

Já que falávamos de África, continuei, queria mencionar a questão do Biafra. Rusk decerto vira as notícias sensacionalistas na imprensa [alguma imprensa acusava Portugal de ser responsável pela secessão do Biafra, na Nigéria, o que não tinha o menor fundamento]. Parecia que nada se passava em África sem a intervenção portuguesa, ou provocado por Portugal, ou por culpa de Portugal. Invadíamos o Congo, e a Tanzânia; e atacávamos Brazzaville; e agredíamos a Guiné e o Senegal; e agora sustentávamos o Biafra contra Lagos, que tinha o auxílio da Rússia e, ao que se dizia, dos próprios Estados Unidos. Tudo isto era absurdo. Era fácil atacar Portugal, e para esconder actividades de outros serviam-se do nosso nome. Era o que estava acontecendo no caso do Biafra. Ora eu queria dizer-lhe que não estávamos ajudando o Biafra; muitos países europeus e africanos faziam-no, até da África negra; e os biafrenses estavam activos em muitas cidades, até em Nova York; e dispunham de muito dinheiro, mas este não provinha de fonte portuguesa. Nós somente concedíamos livre passagem de pessoas e mercadorias que transitassem legalmente. Praticávamos quanto ao Biafra o que praticávamos quanto à Rodésia, ao Congo, ao Malawi, à Zâmbia e outros. Nada mais. Eu queria que isto ficasse bem claro: se amanhã fossemos internacionalmente acusados, já o Governo americano sabia a verdade. Dean Rusk disse que tomava boa nota de quanto lhe referira; mas não lhe constava que os Estados Unidos nos tivessem arguido fosse do que fosse no caso do Biafra. Concordei que assim era e, em face do que eu esclarecera, decerto assim continuaria a ser.

(...) Passamos a outra sala para o almoço.

O secretário de Estado quis saber as minhas impressões da minha recente visita ao Brasil [feita no mandato do presidente Costa e Silva, sendo Magalhães Pinto o chanceler brasileiro]. Fiz-lhe um relato sóbrio e de forma geral favorável à actual Administração brasileira. Mas alarguei o âmbito das minhas observações para falar da penetração comunista no Brasil e na América Latina. Citei factos e conversas com entidades brasileiras; e descrevi com algum pormenor a reacção de pena e quase luto que eu encontrara em muitos brasileiros pela morte de Guevara, ocorrida enquanto me encontrava no Rio. Tudo isto pareceu impressionar Dean Rusk, e foi ouvido em silêncio pelos demais. E já que se falava no Brasil, e embora eu não tencionasse levantar esse ponto, queria chamar a atenção do secretário de Estado para a atitude hostil para connosco da parte da Embaixada dos Estados Unidos no Rio. Rusk mostrou surpresa. Perguntou se eu me referia ao campo cultural. Também a esse, disse eu, mas sobretudo ao terreno político. Rusk dirigiu-se a um secretário no extremo da mesa, que tomava notas, e pediu-lhe que registasse bem este aspecto.

Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro, Bahia, em 1500. Óleo sobre tela de Oscar Pereira a Silva (1922).




Escudo de Armas do Brasil








Brasil




Praia de Copacabana (primeira metade dos anos 50).



Copacabana (1965).



A verdadeira Garota de Ipanema: Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto ('Helô').














































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Perguntei depois ao secretário de Estado se se importava de me informar do pensamento actual do Governo americano quanto às Nações Unidas. Tomou Rusk um súbito calor, e com um tom ruborizado e emocionado, disse que as Nações Unidas estavam simplesmente impossíveis. Eram uma organização irresponsável; a Assembleia votava tudo da forma mais irreal, e nada se podia cumprir; noventa por cento dos votos correspondiam a 10% da população do Globo; quem pagava 64% do orçamento apenas dispunha de 8% dos votos; e tudo isto traduzia uma situação insustentável. Havia que fazer reformas. A Assembleia Geral tinha de ser limitada no seu poder, e apenas lhe deveria ser permitido debater alguns problemas, sem nunca votar qualquer resolução. Conviria talvez criar um outro orgão, uma espécie de Senado, com um número restrito de membros muito bem escolhidos, e a estes e só a estes seriam confiados os verdadeiros problemas. E depois o secretário-geral U Thant era um desastre: não era um chefe; andava sempre em busca de compromissos e transigências; e nunca cumpria a Carta. Ora o secretário-geral deveria ser o zelador da Carta por excelência, e só lhe competia... Mas neste momento Dean Rusk estacou de súbito, sorriu-se com bom humor, encarou-me afectuosamente, e disse: "Bem, mas tudo isto andam vocês portugueses a predizer há muito, há mesmo muitos anos. Não é assim?"

Confirmei, mas não insisti num assunto que obviamente constrangia Dean Rusk, tanto mais que já estava esclarecido. Alguém falou de Gibraltar. Rusk informou que não queriam os Estados Unidos meter-se no assunto: frente a frente estavam dois países muito antigos, que já entre si tinham relações antes dos Estados Unidos existirem, e que Gibraltar era também anterior à independência americana. Eu perguntei se esta doutrina só valia para Gibraltar ou aplicava-se a outros territórios. O embaixador Garin comentou do lado que era muito importante o que acabava de dizer o secretário de Estado. Este compreendeu o alcance da pergunta, não respondeu, e riu-se como quem é surpreendido em pecado.


(...) Toda a conversa do Departamento de Estado decorreu sempre em ambiente da maior cordialidade. À despedida, e como lhe recordasse a sua promessa, o secretário de Estado reiterou o seu desejo de vir a Lisboa na primeira oportunidade. Rusk dá-me sempre a impressão de homem sério, íntegro, de grande honorabilidade pessoal. Não tenho dúvidas de que compreende e apoia a política portuguesa muito mais do que se sente autorizado a revelar. Repisa sempre: "Os Estados Unidos são governados por mil pessoas, e peço-lhe que acredite que o secretário de Estado não está entre essas mil pessoas"».

Franco Nogueira («Diálogos Interditos», II).


«A França era outra coisa, "o elo que devemos agarrar a fim de puxarmos para nós toda a corrente europeia". Baixando os olhos para a barriga, [ Krushchev] recordou-se da sua recente visita a Paris.

- Eles festejaram-nos e trataram-nos com champanhe de uma maneira fabulosa. E da mesma forma fabulosa, nós contentámos a auto-estima de De Gaulle. Inundámo-lo com cumprimentos. É esse o truque a usar com ele.


Charles de Gaulle


Não havia qualquer forma semelhantemente fácil de manejar os alemães, pensava ele, mas a sua economia e a sua tecnologia representavam um prémio ainda maior. A Alemanha Ocidental tinha de convencer-se de que nunca poderia ter esperança de reunificação.

- Se for necessário - ameaçou Krushchev, nove meses antes de o Muro de Berlim se ter tornado uma realidade -, faremos uma demonstração de força para acalmar esses políticos alemães que não compreendem a situação.

Contudo, logo que eles tomaram conhecimento do inevitável, ele sentiu que seria possível conseguir concessões comerciais dos Alemães e explorar a sua economia para melhorar a da União Soviética.

- Não nos esqueçamos, foi a Alemanha que se tornou o nosso primeiro parceiro comercial depois da Revolução.

Quanto aos Estados Unidos, no tempo presente, ele via pouca esperança na sua mudança de atitude, mas havia muitas oportunidades para um "descrédito suave" dos Americanos na Europa.

- Metemos um pouco de medo aos países da NATO, o ano passado, com o espírito de Camp David - disse ele, recordando as suas conversações com o Presidente Eisenhower em 1959. - Temos de trabalhar um pouco mais para voltarmos os Estados Unidos contra a Europa e a Europa contra os Estados Unidos. Foi essa a técnica que Vladimir Ilyich (Lenine) nos ensinou - concluiu ele, agitando um dedo à frente da minha cara.

Enquanto dávamos os retoques finais no discurso de Krushchev perante a Assembleia-Geral, salientando os "êxitos do socialismo da União Soviética", alguns de nós começámos a interrogar-nos sobre se o discurso não estaria sobrecarregado com dados estatísticos das nossas realizações. Quando timidamente, sugeri a Krushchev que talvez fosse uma boa ideia encurtar o seu discurso, omitindo várias passagens que não tinham qualquer relevância em relação com os temas centrais das propostas soviéticas à ONU, ele ficou muito irritado.

- Essa gente, na ONU, tem de nos ouvir - declarou. - Tudo quanto fazem é conversar descuidadamente e estragar montes de papel todos os dias. Não podemos estar a preocupar-nos em poupar páginas quando se trata de doutrinação política que vamos levar a cabo na ONU. - Disse que Lenine tinha ensinado que o "socialismo goza do poder do exemplo" e que "é necessário mostrar pelo exemplo o significado do Comunismo". Krushchev lançou-se então entusiasticamente num sermão sobre a importância e a utilidade da aplicação do legado teórico do Marxismo-Leninismo ao trabalho prático, afirmando que ele próprio encontrara um guia adequado nas obras de Marx e Lenine.

(...) No meu novo posto como chefe do Conselho de Segurança e da Divisão de Assuntos Políticos da Missão, tinha a trabalhar comigo um corpo de mais de vinte diplomatas. Em breve vim a descobrir que, de facto, apenas havia sete que eram autênticos diplomatas: os restantes eram profissionais do KGB ou do GRU sob uma capa de diplomatas. Entre eles encontrava-se Vladimir Kazakov, um homem novo e enérgico, uma estrela em verdadeira ascensão no KGB, e Ivan Glazkov, major-general e chefe das operações do GRU em Moscovo.






Um razoável número de cidadãos soviéticos a trabalharem no Secretariado da ONU estava também incluído na minha divisão, numa violação clara dos regulamentos que regem os servidores civis internacionais. Os seus deveres extra na Missão produziam pouco trabalho útil e eram feitos a expensas do seu verdadeiro emprego no Secretariado. Dizia-se no Secretariado que os Soviéticos eram borrachões preguiçosos. Em muitos casos isso era verdade.

Yuri Ragulin, funcionário do Secretariado e genro do embaixador na Alemanha de Leste, Petr Abrasimov, era um dos exemplos da fraca imagem dos Soviéticos. Apresentava-se frequentemente ao trabalho a horas tardias, ou não se apresentava mesmo, como resultado das suas bebedeiras incessantes. Uma vez, numa festa num apartamento de um amigo na parte alta do West Side de Manhattan, ficou de tal modo embriagado que caiu de uma janela do décimo quinto andar quando vomitava para a rua. Teve uma sorte incrível: aterrou no telhado de uma igreja que ficava junto do edifício de apartamentos. Ficou gravemente ferido mas sobreviveu. Os bombeiros tiveram de o retirar do telhado. Se se tratasse de um vulgar diplomata em princípio de carreira, claro que teria sido logo demitido e mandado para casa, mas o sogro veio em sua ajuda.


Outra prática que provocava falatório depreciativo no Secretariado era a insistência do governo na devolução dos salários da ONU por parte dos nacionais soviéticos. No fim de cada mês, os empregados soviéticos do Secretariado alinhavam-se em frente da tesouraria da Missão para entregarem o dinheiro que ganhavam nas Nações Unidas. A Missão exigia que todos os cidadãos soviéticos empregados no Secretariado cambiassem os cheques referentes aos vencimentos antes de se dirigirem à tesouraria onde eram obrigados a entregar o dinheiro. Nessa altura, era-lhes pago o seu "salário" de acordo com uma escala estabelecida pelo governo soviético, o qual descontava um montante considerável do dinheiro recebido na ONU. Por exemplo, no meu tempo, o salário mensal de um funcionário superior da ONU (P-5) era de cerca de $2,000 por mês. A escala soviética estabelecia o salário para um tal funcionário ao mesmo nível do que era pago a um conselheiro da Missão (menos de $800 por mês). Desta forma, o governo soviético ficava com mais de $1,000 por mês do salário de um P-5 da ONU.


Naturalmente que havia ressentimento por esta extorsão, mas havia muito pouca resistência à entrega do dinheiro. Todos os meses, o departamento de tesouraria da Missão organizava uma lista com os nomes daqueles que tinham demorado, mesmo por alguns dias, a entrega do seu "excesso de fundos". Os nomes eram comunicados ao embaixador e à organização do Partido. "Devedores mal intencionados", aqueles que demoravam a entrega eram sujeitos a uma crítica pública nas reuniões do Partido. Mais ainda: o embaixador repreendia-os pessoalmente por falta de observação da "disciplina".


Estas devoluções forneciam lucros significativos à União Soviética. A Missão conseguia cobrir todas as suas despesas através dos vencimentos dos empregados da ONU. Os Estados Unidos são os grandes perdedores neste processo, pois são eles que têm o mais pesado fardo financeiro entre todos os contribuintes para o orçamento da ONU. Para juntar insulto à injúria, pelo menos metade dos nacionais soviéticos a trabalharem na organização internacional não são diplomatas, mas profissionais da KGB e do GRU. Através das devoluções, os Estados Unidos financiam indirectamente a actividade dos serviços secretos soviéticos.



Dag Hammarskjold




Pandita Nehru e Dag Hammarskjold (21 de Dezembro de 1956).















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U Thant na Casa Branca (1968).



O Secretário-Geral U Thant, sucessor de Dag Hammarskjold, conhecia bem esta prática, mas pouco podia fazer sobre o assunto. Se ele objectasse, os Soviéticos muito simplesmente negariam tudo e as coisas ficariam por aí. Os cidadãos soviéticos não se atreveriam a fornecer a prova».

Arkady N. Shevchenko («Ruptura com Moscovo»).


«O objectivo único da agitação estudantil organizada é destruir os fundamentos sobre os quais assenta a vida social contemporânea, derrubar o Governo [do Estado Novo] - como também é indicado nos panfletos - conduzir a uma acção revolucionária de rua, a partir das escolas, ou paralisar a vida universitária. Constituem simples degraus de uma escala cuidadosamente planeada e organizada algures no mundo».

Costa André, Secretário de Estado da Instrução e Cultura (ver «A morte do estudante Ribeiro dos Santos», in «Os Anos de Salazar», PDA, 2008, n.º 28).


«No Verão de 1973 a guerra colonial [leia-se Guerra do Ultramar] domina, mais uma vez, as atenções nacionais e internacionais. (...) internamente é desencadeada uma operação de mobilização a pretexto da realização no Porto, de 1 a 3 de Junho, do I Congresso dos Combatentes do Ultramar.

(...) alguns oficiais do Quadro Permanente, precisamente os mais sacrificados pela guerra, decidem boicotar o evento pondo a circular um abaixo-assinado demarcando-se do Congresso e dos seus resultados. A iniciativa parte de elementos próximos do então governador da Guiné, António de Spínola, que desde a sua passagem pela Guiné, discutiam a questão da guerra colonial, defendendo que a solução da mesma era de natureza política e não militar. Mas o grupo, onde pontificam os nomes de Ramalho Eanes, Carlos Fabião, Dias de Lima ou Firmino Miguel, alarga-se rapidamente a outros sectores. Contactado para assinar o documento, Vasco Lourenço é um dos oficiais que aderem e colaboram na iniciativa».

Maria Inácia Rezola («Os Anos de Salazar», PDA, 2008, n.º 29).



Da direita para a esquerda: Ramalho Eanes, Costa Gomes, Pinheiro de Azevedo e Vasco Lourenço.




Melo Antunes e Ramalho Eanes









«A catástrofe liricamente apelidada de "revolução dos cravos" teve antecedentes remotos: a sua origem longínqua situou-se em 1941, quando Roosevelt e a superfinança americana se conluiaram com Staline.

Num artigo publicado em O Dia (23/3/1980), duma série sobre os Rockefellers, Lourdes Simões de Carvalho transcreveu a carta que Roosevelt endereçou em 1941 ao Kremlin - carta que Le Figaro, de Paris, revelou a 7 de Fevereiro de 1951:

"Quanto à África, será preciso dar à Espanha e a Portugal compensações pela renúncia dos seus territórios para que haja um melhor equilíbrio mundial. Os Estados Unidos instalar-se-ão aí por direito de conquista e reclamarão inevitavelmente alguns pontos vitais para a zona de tutela americana. Será mais que justo.

Queira transmitir a Staline, meu caro senhor Zabrusky, que para o bem geral e para o aniquilamento do Reich ceder-lhe-emos as colónias africanas se ele refrear a sua propaganda na América e cessar a interferência nos meios laborais".

Acrescentou depois a citada articulista:

"Em 1973, esta promessa solene continuava por cumprir. Falha tanto mais embaraçosa para a parte faltosa quanto os soviéticos tinham honrado a sua.

Portugal, três décadas depois da cedência de Roosevelt à URSS das suas possessões africanas, interpunha-se ainda como um escolho inamovível na viabilização do contrato e lutava sozinho conta o condomínio russo-americano e respectivos mecanismos de conquista e anexação.

Os Rockefellers eram especialistas, na América do Sul, a manobrarem através de militares a quem a pala do boné delimita o horizonte das suas abstracções.

No dia 25 de Abril de 1974, capitães convictos de salvarem o povo das garras dos exploradores, apoiados por comunistas primários, estudantes analfabetos e intelectuais muito eruditos sobre o imperialismo dos EUA investiram contra a última barreira existente na Europa a esse mesmo imperialismo.

Ao largo, na costa, uma esquadra americana velava pronta a intervir em favor dos revoltosos marxistas para que as promessas de Roosevelt fossem honradas. A África foi partilhada de harmonia com o esquema habitual: ideologia redentora primeiro; depois, financiamentos saneadores e divisão equitativa dos lucros entre os parceiros sociais.

A Traição do 25 de Abril





















Frank Carlucci e Mário Soares



O agente de confiança de Nelson Rockefeller, Frank Carlucci, posando como embaixador dos EUA em Lisboa, com o seu homólogo da KGB, Kalinine, sob travesti semelhante, destacados para consolidar mais esta etapa, desempenharam-se com discrição e eficácia desta missão especial.

Os expoentes máximos do Round Table Business, organismo Rockefeller que agrupa os 178 maiores capitalistas do mundo, consideram hoje Portugal como uma das melhores coutadas europeias, tendo o caminho facilitado pela desertificação dos empresários nacionais, liquidados e afastados da competição pela aguerrida matilha comunista. Chase, Morgan, Ford, Rothschild e o Kremlin tinham vencido juntos mais um lance".

(...) a) As três internacionais. - Carlos Camposa, no prefácio do seu opúsculo "Salazar respondeu a Afonso Costa", tem esta curiosa observação de que o "25 de Abril" foi a sinistra obra de três internacionais:

- a vermelha (comunista e socialista);

- a capitalista ou doirada (América do Norte e plutocracia do Norte da Europa, em especial da Holanda e da Suécia);

- e a negra (clerical progressista), lembrando a propósito a acção dos "padres brancos" em Moçambique e de outros, as calúnias do Pe. Hastings, etc.

b) Em 1973: o Acordo de Paris - Se bem que ainda sem revelação de todos os pormenores, têm surgido referências concretas ao "Acordo de Paris" firmado em Maio de 1973 entre o PC e o PS. Perante a crescente dificuldade de vencer militarmente Portugal no Ultramar, a União Soviética promoveu esse acordo prometendo financiar a organização de um golpe de Estado em Lisboa, comprometendo-se o PC e o PS a conceder a "independência" imediata às Províncias Ultramarinas portuguesas entregando-as aos movimentos pró-soviéticos: PAIGC (Guiné e Cabo Verde), MPLA (Angola) e FRELIMO (Moçambique).

Sobre este acordo, ver: Jornal de Economia e Finanças, números 357 e 392; África - Vitória Traída, pelos generais Luz Cunha, Kaulza de Arriaga, Bethencourt Rodrigues e Silvino Silvério Marques, página 27; Angola - Os Vivos e os Mortos, de Pompílio da Cruz, página 149; A Rua, de 6/2/77, transcrição de uma notícia de Santana Mota publicada no diário O Estado de São Paulo - Não lhes perdoais, Senhor, de Rebelo Cotta; a página 28 diz que o tenebroso Rosa Coutinho e outros chacais do seu séquito executaram fielmente o plano gizado "em Moscovo, Paris e Lisboa"».

José Dias de Almeida da Fonseca («LIVRO NEGRO DO "25 DE ABRIL"»).












«É sobretudo no opúsculo Liquidação do Ultramar (Jornal de Economia e Finanças, 1980) que o Acordo de Paris aparece mais estudado:

"Nos princípios de 1973 ter-se-ia realizado, em Paris, uma conferência convocada pelo Partido Comunista onde, elementos heterogéneos da esquerda portuguesa, se comprometeram a levar a cabo uma revolta em Portugal, o mais tardar até 1975. Estiveram presentes, além do PCP convocante, a Acção Socialista Portuguesa, uma dezena de militares, católicos progressistas e representantes da maçonaria. Não era a primeira conferência ali realizada, com maior ou menor participação das chamadas esquerdas oposicionistas e mesmo simples descontentes. Mas o facto do PC russo ter enviado uma pequena delegação com instruções claras e poderes precisos para assumir compromissos financeiros, conferia-lhe particular importância.

A revista Faits et Idées que a chamada 'Frente Portuguesa de Libertação' publicava em França, afirmou em Agosto de 1976 que, nessa conferência - para a qual teria sido convidada - fora decidido o reforço da infiltração marxista nas forças militares portuguesas e elaborado um plano para intensificação do terrorismo nas províncias africanas. O sucesso da revolução implicaria a instalação na Metrópole de um regime 'democrático a caminho do socialismo' que poria termo à 'guerra colonial'. A independência da Guiné, Angola e Moçambique seria concedida aos movimentos terroristas de obediência comunista, sem condições políticas e económicas nem indemnizações. Os colonos deveriam ser repatriados a expensas de Portugal.






Embora nos meios políticos afectos à esquerda a conferência de Paris tivesse tido ampla repercussão, a sua realização e o clausulado suscitaram interrogações a que nunca foi dada resposta convincente.

Em primeiro lugar para quê uma conferência em Paris entre os PCs soviético e português? A linha de conduta dos comunistas portugueses foi sempre, fora de questão - mais na altura, se possível, do que hoje - fixada autoritariamente pelo Kremlin; a Acção Socialista Portuguesa não tinha qualquer implantação no país e os seus dirigentes careciam de prestígio. Nestas condições para quê a conferência? Teria sido convocada para provocar a presença e comprometimento de meia dúzia de militares e outros tantos ex-militares desertores que formavam o grupo de Argel? Dir-se-ia gente desprezível demais para justificar um tão grande interesse como então se afirmava ter-se verificado por parte da delegação russa.

Parecia mais fácil acreditar que Moscovo, com essa conferência, procurasse obter cobertura civil a uma operação militar já em preparação e, provavelmente, em estado mais adiantado do que então se julgava.

Nos princípios de 1973 o interesse da Rússia pela sorte de Portugal metropolitano era restrito demais para justificar a presença de uma delegação na conferência de Paris. Só o Ultramar lhe interessava e só em função desse interesse as questões portuguesas vieram a ser tratadas por essa delegação.

A 'guerra colonial' ao tempo dominada em Angola, controlada em Moçambique e, em condições de ser ganha na Guiné, podia terminar em meia dúzia de meses. Se assim acontecesse Moscovo teria deixado perder uma rara oportunidade para se instalar em Angola e Moçambique sem levantar protestos internacionais. Na política portuguesa passaria a oportunidade para adquirir por um prato de lentilhas, a uma minoria ávida de honras e benesses, uma herança de quinhentos anos de história.

O montante posto pela Rússia em Paris, à disposição da esquerda portuguesa, para financiar a revolução, foi objecto de muitas conjecturas. Na altura falou-se em cinquenta milhões de dólares; não parece, porém, que tão pouco chegasse para satisfazer tantos encargos, mesmo tendo em conta que as despesas com as tropas mercenárias cubanas desde logo ficara assente serem pagas directamente por Moscovo.

O governo russo não estava interessado em economizar rublos e, naturalmente, menos ainda, em poupar copeks [Aliás, como refere Faits et Idées, ficou assente que o governo saído da revolução deveria pagar integralmente todos os dinheiros recebidos. O que fez com a compra de açúcar a Cuba a preços superiores aos do mercado internacional e, à Rússia, compra de madeira de pinho e sardinhas, e venda de vinho a dois escudos o litro e sapatos a cem escudos o par]. Na guerra todas as economias são sempre dispendiosas. O que interessava ao Kremlin era levar os sectores democratas tradicionalistas da primeira República - ou pelo menos uma parte representativa -, a maçonaria e elementos progressistas católicos, tipo Capela do Rato, a alinhar com os socialistas e comunistas no apoio a um grupo de militares que se propusesse transferir a solução do problema ultramarino do plano militar para o plano político onde o Kremlin estava seguro de poder impor os seus pontos de vista.

Esse apoio, ainda que fosse confuso e mal definido, teria acção decisiva no clima revolucionário que dominaria as semanas posteriores à eclosão do movimento militar. Com ele seria possível proceder a uma descolonização sem complicações 'democráticas', passando as províncias ultramarinas directamente da soberania portuguesa, sem ouvir as populações, para o controlo de forças dependentes de Moscovo. Sobretudo se os meios de comunicação fossem habilmente utilizados para desviar a atenção do país dos problemas africanos, onde o destino de Portugal estava em jogo, para a ameaça de comunização imediata do quadrilátero europeu que Moscovo, na altura, não tinha, por certo, a menor intenção de levar a cabo.

A partir da conferência de Paris os acontecimentos pelos quais se traduziu a escalada de subversão no nosso país, sucederam-se em rápida cadência.



Mário Soares e Holden Roberto




Ramos da Costa, Tito de Morais e Mário Soares em Genebra (Novembro de 1964).







Em Maio a Acção Socialista Portuguesa transformou-se no Partido Socialista que, desde logo se declarou "radicalmente anti-colonialista" pronto a bater-se pelo 'direito à autodeterminação dos povos coloniais'; em Setembro o PC e o PS subscreveram um comunicado em que afirmaram ser objectivo das forças 'democráticas portuguesas' pôr termo à 'guerra colonial' propondo 'imediatamente negociações com vista à independência dos povos de Angola, da Guiné-Bissau e de Moçambique'. Entretanto em Julho, em volta de questões de ordem profissional, formou-se o chamado 'movimento dos capitães' que, no Outono, tendo relegado para segundo plano as suas reivindicações iniciais, tinha dado aos seus objectivos um nítido cariz político, pretensamente democrático mas, na realidade, de inspiração marxista.

Os milhões de dólares do Kremlin não tinham caído em terra sáfara".

Também na revista Newsletter de Boston (Agosto de 1976, Vo. I, n.º 2), se afirma (reportagem de John C. Wahnon):

"Os Secretários-Gerais do Partido Comunista Português (PCP) e do Partido Socialista (PS), juntamente com outros membros dos Partidos, reuniram-se em Paris em Maio de 1973 para estudarem as possibilidades de canalizarem o descontentamento então evidente em certos sectores das Forças Armadas Portuguesas no sentido de estruturarem um movimento capaz de derrubar o Governo Português. Desde o início, o PCP provou ser tão altamente organizado e conhecedor da situação que maravilhou e convenceu o PS a juntar-se ao movimento.

O PCP tinha fichas detalhadas de todos os oficiais portugueses e contava com um número surpreendente de membros e simpatizantes nas Forças Armadas e nos sectores de Serviço Público. O Secretário-Geral do PCP decidiu, contudo, por razões óbvias, que não se aventuraria em certas actividades para evitar que arriscasse a posição que tinha adquirido. Portanto, delegou no PS, então praticamente desconhecido e por consequência menos susceptível de causar suspeita, a responsabilidade de fazer o trabalho sujo. O PS atacou as medidas do Governo Português enquanto o PCP generosamente financiou as operações. Moscovo, a fonte desses fundos, só impôs uma condição:

'Independência imediata a todas as colónias portuguesas e transferência das respectivas soberanias, sem eleições, aos movimentos pró-russos'.

O acordo final, respeitante às condições impostas pela Rússia, foi assinado numa reunião a que compareceram cinco comunistas e quatro socialistas, no primeiro andar de um restaurante de Paris adjacente à Farmácia da Ópera. Há quem afirme que o PCP ou o PS, mas não ambos, assinou o acordo final com a Rússia. Seja como for, o acordo tinha duas cláusulas:

1 - Entrega de dinheiro: a Rússia contribuiria com dois milhões de dólares para financiar a organização do golpe de Estado que derrubaria o Governo Português.

2 - Compromisso: o PCP e o PS comprometiam-se a dar independência imediata às Colónias Portuguesas representadas na Reunião, para a ocasião, pelo PAIGC, MPLA e FRELIMO.

O que sucedeu em Moçambique, Guiné, Cabo Verde e Angola foi de tal forma vergonhoso que os responsáveis pela concessão da independência só se atreveram a cobrir a sua traição a Portugal, e às populações locais, com loucas generalidades de óbvio cultivo soviético. Os partidos opostos à FRELIMO em Moçambique, ao PAIGC na Guiné e Cabo Verde e ao MPLA em Angola, foram perseguidos e por decisões totalitárias e fascizantes proibidos de defender os ideais que sustentavam"».

José Dias de Almeida da Fonseca («LIVRO NEGRO DO "25 DE ABRIL"»).








25 de Abril de 1974: a Revolução da Perfídia


AS BATALHAS DAS ARMAS E DO DESENVOLVIMENTO


As duas grandes batalhas (luta armada e desenvolvimento) em que Portugal se viu envolvido, mostram a qualquer observador atento que o esforço exigido ultrapassava em larga medida as nossas capacidades ou potencial estratégico. Foi uma luta que se arrastou por mais de treze anos durante os quais provámos abundantemente ao mundo que na nossas veias corria o mesmo sangue dos nossos antepassados que na majestosa epopeia dos Descobrimentos projectaram Portugal para a cúpula dos países mais empreendedores e capazes a nível mundial. A gesta dos nossos navegantes passaria à História como o apogeu deste pequeno povo. Uma História que outros portugueses cinco séculos mais tarde e pelas mesmas paragens iriam honrar e fazer jus aos feitos gloriosos que os seus avós haviam realizado.

No campo militar batemo-nos com brio no cumprimento do dever e na salvaguarda da honra. Naturalmente que a guerra, este tipo de guerra, não se ganha pela força das armas, mas pode perder-se na ausência ou na falta de eficácia e empenhamento. Todavia durante mais de treze anos foram criadas as condições que permitiriam encontrar a tal solução política desejada que teria evitado o desmoronar do mundo português.

(...) A verdadeira e consistente descolonização que, sem qualquer exagero, pode e deve ser considerada de exemplar e espectacular, foi a do desenvolvimento que teve lugar com o início da abertura das hostilidades até ao assinar do cessar-fogo com os chamados movimentos de libertação. O próprio Mário Soares, ignorando o que era de facto a nossa África, e quando já estava mergulhado nas negociações para entregar a tutela dos territórios administrados por Portugal aos líderes destes movimentos, classificou de "fabuloso" o desenvolvimento que se tinha processado naquela terra a par da luta armada.

Samora Machel e Mário Soares. Ver aqui e aqui


(...) Era impensável que Angola, por exemplo, fosse em 1974 o terceiro maior explorador de café do mundo quando a região cafeeira se situava exactamente na zona mais afectada pela subversão (Quanza Norte e Uíje) e que, em Moçambique, tenha sido possível construir a barragem de Cahora Bassa (a primeira de toda a África e a quarta ou quinta de todo o mundo) numa zona onde a Frelimo concentrara o seu esforço de guerra, quando todos os materiais, mesmo os inertes necessários à sua construção, tiveram que ser transportados por via férrea ou estrada numa distância da ordem dos 500 quilómetros, atravessando áreas semi-desérticas. Mas mais importante foi a autêntica explosão estudantil que se verificou também durante o período de guerra, num sistema escolar devidamente organizado, funcional e com elevados índices de aproveitamento. O ensino superior tinha chegado a Angola e Moçambique e, inevitavelmente, teria de crescer para dar satisfação ao número cada vez mais elevado dos estudantes que terminavam o ensino secundário e pretendiam prosseguir os seus estudos. Em 1973/74 a realidade nos territórios africanos sob a jurisdição portuguesa era, sem qualquer margem para dúvidas, altamente promissora para a constituição de comunidades com padrões de vida substancialmente acima da média dos verificados nos países africanos que se tinham tornado independentes com os "ventos da História", especialmente na década dos anos 50.

Num artigo publicado num semanário, aquando da celebração dos vinte e cinco anos da "revolução dos cravos", afirmei: «Compare-se a situação dos países tornados independentes na década de 50 com os da África sob a administração portuguesa em Abril de 1974. Ninguém, minimamente isento e honesto, poderá deixar de verificar que, para todos os seus habitantes, a solução da defesa do Ultramar foi a que melhor defendeu os seus interesses e melhores condições de vida lhes proporcionou. Para isso apenas temos de comparar os "indicadores" que servem para definir, em cada momento, o bem-estar das populações».


(...) A PREPARAÇÃO E O GOLPE DO PCP

Recordemos que, fracassada a última jogada da URSS para quebrar a resistência nos territórios em África com o fortalecimento do potencial de combate do PAIGC, de imediato se lança para outros campos de acção e, muito especialmente, após o assassinato de Amílcar Cabral em Janeiro de 1973, morte que ainda se pretendeu imputar aos portugueses. Dentro da nova estratégia, a primeira preocupação centrou-se na eliminação da unidade da retaguarda considerada um dos pilares dos nossos sucessos nas frentes militar e social alcançados nos três teatros. Como exemplo dessa nova orientação merecem um realce especial as seguintes iniciativas:

- A Direcção da Organização do Sul do PCP, ainda em Janeiro de 1973, distribuiu um panfleto com o título Amílcar Cabral foi assassinado mas o PAIGC vencerá o qual terminava assim: «O dia 4 de Fevereiro, data do início da luta armada em Angola, e transformado em dia de solidariedade aos povos das colónias portuguesas, é este ano assinalado pelo acontecimento trágico do assassinato do secretário-geral do PAIGC - Amílcar Cabral. A indignação e o pesar sentidos pelos povos do mundo inteiro, ante tão grande perda para os Movimentos de Libertação das colónias portuguesas, serão transformados numa grande manifestação de solidariedade aos povos das colónias portuguesas e de protesto pelo assassinato de Amílcar Cabral, que sendo um crime da responsabilidade do colonialismo português, acarreta para o nosso povo a obrigação de se colocar na vanguarda desta jornada de solidariedade aos povos das colónias. 



Ao centro: Amílcar Cabral






Povo do Sul! Intensifiquemos a solidariedade para como os povos irmãos das colónias, responsabilizando o governo de Marcello Caetano por mais este crime! Exigindo que cessem os massacres na Guiné, Angola e Moçambique! Reclamando o regresso dos soldados e a Paz negociada! Enviando mensagens de condolências aos familiares de Amílcar Cabral e ao PAIGC.

Mulheres do Sul!

Impedi que os vossos filhos, maridos e noivos vão matar e morrer numa guerra injusta!. Exigi o fim da guerra colonial!

Jovens soldados!

Exigi o fim da guerra colonial! Recusai-vos a partir para as colónias!

Jovens trabalhadores e estudantes!

Protestai contra a guerra colonial, através de inscrições nos locais de trabalho e de estudo, nos transportes e nos muros, exigindo o fim da guerra colonial! Regresso dos soldados! Negociações com os movimentos de libertação!».

- O Comité Directivo da Resistência Popular Anti-colonial dirigiu uma mensagem "aos soldados e marinheiros, a todos os revolucionários na tropa colonial-fascista em que, depois de analisar os factos, naturalmente dentro da sua óptica, acrescentava:

«Nós, soldados e marinheiros, alistados à força na tropa colonial-fascista, devemos juntar a torrente da nossa indignação anticolonial ao grande oceano de oposição anticolonialista popular. Honremos a memória deste grande patriota guineense que desaparece sob os golpes do inimigo odiado. Intensifiquemos a solidariedade militante entre o povo português e os povos de Angola, Moçambique e Guiné. Denunciemos os assassinos de Amílcar Cabral. Guerra nos quartéis à guerra colonial-fascista!».

- A Federação dos Estudantes marxistas-leninistas difundiu um comunicado que salientava:

«A principal resposta a este assassinato será dada pelo povo da Guiné, mas também o povo português contribuirá para a vingança de Amílcar Cabral intensificando a sua luta!» Acrescentando que deviam: «cerrar fileiras em torno da sua vanguarda anticolonial, os Comités de Luta Internacional, para a vingança internacionalista de Amílcar Cabral, participando activamente e de todas as formas possíveis na denúncia de mais este crime e na intensificação da jornada anticolonial». Na realidade, alguns estudantes destes Comités organizaram a 9 de Fevereiro uma manifestação de rua, na Praça do Chile em Lisboa, que acabou por ser dispersa pela polícia.



Amílcar Cabral e Fidel Castro




Ver aqui







Mas já antes do assassinato de Amílcar Cabral, que ocorreu em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas, como resultado de dissidências internas, tinham-se reunido na capela do Rato algumas dezenas de pessoas nos dias 30 e 31 de Dezembro que aprovaram várias moções das quais se salientam:

1.ª Moção - «Um grupo de cristãos e não-cristãos em reflexão sobre os problemas da guerra em África e alguns deles em greve de fome por solidariedade para com as vítimas dessa guerra, protestam veementemente contra o silêncio dos bispos portugueses, denunciam esse silêncio como claro apoio e cumplicidade na política de exploração colonial praticada pelo governo fascista português».

2.ª Moção - Contém diversos pontos todos numa condenação sistemática da guerra colonial afirmando que a luta dos povos das colónias era uma luta justa, pois eles procuravam através dessa luta conseguir a sua libertação e emancipação efectivas.

Assinada por várias centenas de pessoas foi nesta altura divulgada uma moção de solidariedade com o seguinte texto: «Os signatários solidarizam-se com os cristãos que, na Capela do Rato, se manifestaram pela paz no mundo e repudiaram a guerra que o Governo português conduz em África».

A campanha de intoxicação da população mantém uma intensidade pouco usual no espaço nacional da Metrópole como consequência de dois factores distintos já aliás indicados, mas que de novo realçamos:

- o primeiro, decorrente da mudança de estratégia da URSS em concentrar o seu esforço em desfazer a "unidade da retaguarda" após não ter conseguido os objectivos previstos para a Guiné com o reforço do PAIGC;

- o segundo, como consequência da incapacidade de Marcello Caetano em redefinir uma política clara no panorama nacional que tivesse em atenção a evolução ocidental mas, muito especialmente, nas províncias ultramarinas. Aí tornava-se imperioso, face aos êxitos alcançados no campo militar, definir uma nova política que apontasse, a médio prazo, para uma solução política que pudesse compreender a manutenção da unidade nacional com uma larga descentralização do poder, uma federação ou confederação, uma comunidade ou outros Brasil's.





Por isso rapidamente a epidemia do vírus "anticolonial" alastrou pelo território nacional sem que qualquer antídoto fosse utilizado para o neutralizar. Não foi difícil o êxito desta campanha na medida em que, como disse o poeta, "um fraco rei torna fraca a forte gente", e não surgiu capacidade para esclarecer que, a par da guerra com as armas, uma outra guerra muito mais importante para as populações se travava além-mar: a guerra do desenvolvimento e do progresso. O povo, a massa anónima, aqui neste velho rectângulo, apenas sabia que os seus filhos, irmãos, parentes ou amigos, partiam para a guerra, mas ignoravam que na missão que iam cumprir tinham ao seu lado militares guineenses, angolanos ou moçambicanos enquanto outros promoviam o bem-estar daquelas populações. Era a outra face da moeda, aquela que, de facto, representava um verdadeiro salto qualitativo no seu padrão de vida.

(...) Perante este cenário não é de estranhar que outras acções viessem a ter lugar um pouco por todo o país, centralizadas numa contestação sistemática à "guerra colonial", com o objectivo de prevenir a tal solução política, que se adivinhava, e que deixaria os territórios em causa na esfera de influência do mundo ocidental, contrariando assim os objectivos da União Soviética. Em 27 de Maio de 1973 teve lugar, em Aveiro, o congresso da Oposição Democrática, devidamente legalizado, conforme era usual em períodos pré-eleitorais. Este evento, que congregou as personalidades mais destacadas da oposição ao regime, tornou público um texto onde, entre outros, destacava a sua posição em relação à "guerra colonial":

«Considerar o discurso do Ministro do Interior proferido a 25 de Maio como extremamente revelador de que o Governo se prepara para limitar ainda mais drasticamente a actividade da Oposição Democrática durante a próxima farsa eleitoral, com vista a impedi-la de promover uma larga discussão pública dos graves problemas que afectam o povo português, nomeadamente a guerra colonial, e de exprimir as mais prementes reivindicações populares por uma vida melhor, liberta da exploração, da opressão e da guerra».

Mas, também na mesma altura, mais concretamente em fins de Julho de 1973 ocorreu em Lisboa "um encontro de liberais" onde foi debatida a cessação da "guerra colonial" e se admitiu a hipótese duma solução federativa. A 24 de Setembro de 1973, o PAIGC, em Madina do Boé, proclamava a independência da Guiné-Bissau que, de imediato, foi reconhecida por cerca de oitenta países e, a 2 de Novembro, pela Assembleia Geral da ONU, enquanto a Comissão de Descolonização da mesma organização, a 7 de Agosto, tinha condenado a política ultramarina portuguesa.

Muitos outros acontecimentos tiveram lugar em Portugal que ilustram bem todo o cenário de mudança, de fraqueza, tibieza, incapacidade de decisão, ziguezaguear de um governo que não encontrava um rumo para os problemas de que enfermava o país. Para contrariar toda esta onda de derrotismo e condenação da política ultramarina iniciada por Salazar e continuada por Marcello, reagem muitos combatentes e ex-combatentes, que tiveram a percepção clara de que a subversão chegara até à Metrópole. As armas eram diferentes mas não menos eficazes na conversão dos espíritos e mentalidades para o "anticolonial". A guerra, apregoava-se com demagogia e cobardia, não fazia mais sentido e tornava-se imperioso encontrar uma saída, naturalmente política, porque os militares estavam cansados e começavam a desesperar. Mas os verdadeiros portugueses, que se tinham batido com honra e patriotismo, sentiam, sem sombra de dúvida, que se tornava imperioso denunciar todo o cenário de derrotismo com que se procurava condenar a sua acção.








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A ideia nasce, difunde-se e é acarinhada por todos aqueles que conhecem bem o tipo de "peixe" que os vendilhões da Pátria apregoavam com a aparente cumplicidade ou passividade das entidades responsáveis. Mas é curioso notar que entre os impulsionadores do movimento patriótico não se encontravam só ex-combatentes, aqueles que tinham participado duma forma activa e consciente na defesa dos interesses nacionais, algumas vezes com o risco da própria vida. Rapidamente esta onda de revolta se alastra a todo o território português e nasce a organização que irá pôr de pé o I Congresso dos Combatentes do Ultramar. Não dispõem de apoio governamental e, inclusivamente, os militares no activo, embora também combatentes, são impedidos de participar. Após algumas diligências aos níveis mais elevados, esta ordem é revogada e o Congresso, que teve lugar no Porto nos dias 1 e 3 de Junho, foi mesmo presidido pelo General Augusto dos Santos, na efectividade de serviço.

Os congressistas vieram de todas as partes, mesmo do estrangeiro, num total da ordem dos dez mil ex-combatentes que durante três dias debateram toda a campanha orientada para denegrir e condenar a sua acção. Os objectivos do Congresso podem bem ser sintetizados em dois pontos:

- Reatar e manter os laços de camaradagem criados ao serviço da Nação no Ultramar;

- Celebrar os serviços prestados pelos que responderam à chamada da Pátria e exaltar a honra da missão cumprida, bem como o seu valor e significado na História Nacional.

Nas palavras de abertura o Presidente da Comissão executiva afirmou:

«Saúdo todos os combatentes que lutaram fiéis ao ideal que nos une, aos combatentes de Portugal aqui presentes em corpo e alma, àqueles que não puderam vir, impossibilitados pelos seus afazeres ou pela distância de além-fronteiras, aos que jazem nas cadeiras de rodas e nas camas dos hospitais e aos que tombaram para sempre nas picadas escaldantes de Angola e de Moçambique ou nas valas húmidas da Guiné. Vós, antigos combatentes como eu, sois os filhos mais ilustres desta Pátria e ninguém nos ensinará o amor que a ela devemos, pois que, de armas nas mãos, não sucumbimos perante as detonações das emboscadas e as ciladas das minas traiçoeiras. E por isso, a mais do que ninguém, nos assenta com inteira propriedade, pela justeza do termo, o epíteto [atributo] de Patriotas.

Nada exigimos em troca e tudo demos em holocausto da Bandeira: a nossa juventude, o nosso suor jovem, o nosso sangue quente.

Todos nós respondemos à chamada desde que, em 1961, eclodiu, em Angola e depois na Guiné e em Moçambique, deixando-nos adivinhar a sanha encarniçada do exterior, a subversão que tentou e ainda tenta, com um ardor avassalador, destruir os alicerces duma Nação possuidora duma invejável posição histórica no mundo...».

Foram largamente debatidas cerca de trezentas teses enviadas e que foram divididas pelas três secções do encontro. O Congresso foi encerrado no Palácio de Cristal do Porto que foi pequeno para albergar todos os que quiseram dizer "presente". Nas suas conclusões, constantes no livro Nós nunca seremos a Geração da Traição publicado em Março de 1974, pode ler-se:

«Orgulhosamente sós e orgulhosamente unidos, fizemos frente ao mundo, ao mundo cego de paixões baixas, despertado pela ideia do assalto que julgou fácil, enlouquecido pela ambição da rapina e do domínio ou estupidificado pela ignorância do que somos, do que valemos e do que queremos. Mas - não duvidemos - o mundo está já convencido do que somos, do que valemos e do que queremos.






Certos de que não podem vencer-nos lá, de armas na mão, pois vitoriosamente aniquilamos todos os ataques que de fora nos têm movido e cujas principais vítimas são as populações autóctones, decidiram os nossos inimigos, nos últimos anos, minar a retaguarda.

Há muito já se afirma que a guerra nunca se perderá em Angola, em Moçambique ou na Guiné, mas que pode perder-se na Metrópole.

Tem de ser esta uma das razões, se não a principal, do nosso Congresso. Assim como os portugueses da Metrópole, pelo ar e pelo mar, acorreram rapidamente a Angola, assim hoje, aqui estão Angola e Moçambique representados pelos seus bravos Combatentes, a dizer presente, ante a explosão e alastramento do terrorismo na Metrópole. A guerra já não está só nas fronteiras de África. Estendeu-se a toda a Metrópole e acentuadamente no Porto. Temos de defender a nossa soberania em todas as parcelas do território português.

É um momento histórico este nosso Congresso, realizado com total independência, patrioticamente, e acima de quaisquer ideologias ou facções políticas. Seria, porém, negarmo-nos como Combatentes se não nos resolvêssemos a conhecer e a procurar os inimigos da Pátria em plena retaguarda, que abertamente, livremente e - o que é muito grave - impunemente, tudo fazem para conseguir uma derrocada da nossa resistência em África.

O inimigo instalou-se em liceus, em escolas técnicas, em universidades, em professores de moral, em empresas editoras, em comissões de várias espécies, mesmo de carácter oficial e até em organismos corporativos. Censura e ataca as virtudes militares. Aconselha a deserção. Corrompe a juventude, tenta arrancar-lhes da alma o ideal da Pátria. Exalta o agressor e amesquinha Portugal que se defende. Apregoa a paz da fuga, da derrota, da entrega, a paz da infâmia e da desonra».

Neste I Congresso ficou abordado que o II Congresso dos Combatentes teria lugar em Angola em 1974. Cerca de um milhão de portugueses, ao longo de treze anos, tinha pegado em armas para suster os ataques dirigidos do exterior contra aquelas terras e as suas gentes e ali, uns tantos, tendo reconhecido a alteração da estratégia do inimigo, não só a denunciavam como acertavam formas de a neutralizar como vinha acontecendo nos três TOs. Para encerrar o Congresso, o seu Presidente, General António Augusto dos Santos, afirmou:

«Vai chegando a seu termo este primeiro Congresso de Combatentes do Ultramar. Nele tomaram parte homens das mais distantes regiões do país que aqui vieram afirmar bem alto a sua fidelidade permanente a esta nossa Pátria portuguesa.

Se é justo render homenagem aos organizadores esforçados deste Congresso, por terem conseguido realizá-lo, vencendo todas as dificuldades, obstáculos e até incompreensões, temos nós de congratularmo-nos pela forma elevada, digna e patriótica como o Congresso decorreu.

Durante ele, revivemos e reforçámos os laços de sadia e forte camaradagem de armas que nos uniu em terras do Ultramar; hoje como ontem, irmanamos pela mesma fé inquebrantável nos destinos da nossa terra.

Esta fé e união, agora reforçada, deve e tem de prolongar-se para além do Congresso, como um dos seus melhores frutos, para nos mantermos vigilantes, fortes e unidos na defesa dos sagrados interesses de Portugal».


Em Dezembro de 1972, as Brigadas Revolucionárias fazem explodir uma bomba no Quartel-Mestre General.







Destruição de armamento destinado ao Muxima, nos armazéns da Doca de Alcântara: uma acção da ARA (braço armado do PCP).







Mas esta fé e união não se reforçaram nem prolongaram para além deste Congresso. Em 1974, o II Congresso não chegou a realizar-se conforme acordado. A tentativa para travar a subversão que lavrava na Metrópole não resultara em consequência do amolecimento que as tácticas da esquerda comunista, trotskista, maoísta e anarquista tinham provocado nas instituições do Estado e na população em geral. Como afirmou o Major-General F. Kitson em Low Intensity Operations: «A população em geral deve ser preparada para aceitar as ideias subversivas de modo a agir de acordo com elas quando a ocasião for oportuna».

Se na guerra em África tinha sido possível conquistar as populações, umas das principais armas do inimigo, na Metrópole esse controlo parecia escapar aos orgãos de poder. Não dava abrigo nem apoiava ou suportava o inimigo que manobrava na clandestinidade sem dar o rosto, mas através duma propaganda bem orientada e com objectivos perfeitamente definidos tornava essa população como que apática, cansada e talvez mesmo descrente duma luta que se arrastava no tempo e para a qual não via uma saída. Este "grito" dos ex-combatentes não tivera o impacto desejado, mantendo-se uma atitude de aparente neutralidade passiva e descrente activada pelas forças subversivas.

A União Soviética sabia que a subversão, neste novo cenário, só teria êxito se conseguisse envolver as Forças Armadas, mesmo que fosse só uma pequena minoria dos seus elementos. A este respeito, escreveu Anthony Burton em A Destruição da Lealdade: «Provavelmente existem células comunistas em todos os exércitos e, desde que não sejam demasiado evidentes, são toleradas pelas outras tropas, que, de qualquer modo, não estão interessadas em política. A propaganda exterior, quer escrita, quer via rádio, é eficaz e perigosa, principalmente se as tropas estão aborrecidas e se os chefes das células puderem especular com agravos - reais ou imaginários.

Não é necessário que as Forças Armadas adiram ao Comunismo para se revoltarem. Os elementos comunistas não necessitam de ser muitos ou particularmente visíveis, mas devem ser unidos, dedicados e estar bem preparados. Em muitos casos, os agitadores trotskistas são mais perigosos do que os agitadores comunistas.

A comunização das Forças Armadas pode ter lugar após a revolução e não necessariamente antes dela. Isto é particularmente verdadeiro num exército de recrutas».

Não tive esta percepção, visto que no período em causa (1972/73) me encontrava em Angola onde a vida das pessoas e as actividades inerentes estavam praticamente normalizadas.

Só em finais de Setembro de 1973, quando regressei à Metrópole, comecei a aperceber-me duma certa agitação no seio do Exército resultante da legislação já referida, e que vinha afectar a carreira dos oficiais do quadro permanente ao nível de capitães e majores.



A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS


Agitação académica de 69











Em 1968 teve lugar a segunda contestação estudantil da década que, associada a um surto de greves e reivindicações de toda a ordem, abalou a estabilidade do país já fragilizada pela mudança do Chefe do Governo. O PCP, na clandestinidade, não deixa de estar por detrás de toda esta agitação social e, ao contrário da sua atitude anterior, passa a aconselhar os mancebos a ingressar nas Forças Armadas para cumprimento do serviço militar obrigatório. A escassez de oficiais do quadro ao nível de capitães e subalternos leva a que estes recrutas, após um treino especial, ascendam rapidamente às funções de comandantes de grupos de combate e de companhia com responsabilidades operacionais acrescidas. Muitos destes elementos, ligados ao partido comunista e em coordenação com os poucos oficiais do quadro de militantes deste partido, mantêm a sua actividade normal de acordo com as directivas recebidas não deixando, contudo, de mostrar alguma insatisfação, e mesmo discordância, em relação à luta que estão a travar criando um clima de insatisfação entre o pessoal combatente. Estas infiltrações comunistas têm lugar em todos os teatros de operações, mas muito particularmente na Guiné onde, entre outros, prestava serviço o "célebre" Capitão Duran Clement ao qual, no dia 25 de Novembro de 1975, foi cortada a palavra na RTP e que hoje é membro do Comité Central do PCP. Desta forma se ia criando uma onda de desmotivação dos homens em armas e, mais tarde, um espírito de revolta que seria explorado até às últimas consequências quando a retaguarda soçobrasse.

(...) A União Soviética, ao concentrar o seu esforço na Guiné, não conseguiu impor-nos uma derrota militar. Pergunta-se mesmo se seria esse o seu objectivo primário ou se se tratava tão-só duma manobra de diversão! Esta estratégia obrigou-nos a concentrar o nosso esforço de defesa naquela região, já que o aparecimento dos mísseis Strella contribuiu para uma maior desmotivação dos nossos combatentes. A URSS sabia que uma possível, mas duvidosa, vitória militar do PAIGC poderia não ter reflexos negativos em Moçambique e muito menos em Angola. Afinal Portugal já sofrera uma derrota militar nas possessões portuguesas da Índia em Dezembro de 1961, quando já grassava desde há nove meses a guerra em Angola e este facto não afectara minimamente o espírito e o posicionamento das Forças Armadas face a este novo conflito.

A URSS sabia que só quebrando a unidade da retaguarda e abrindo brechas na coesão das Forças Armadas, teria hipóteses de conseguir os seus objectivos: estender a sua influência aos territórios sob administração portuguesa. Admite-se que a partir de 1970, quando se previa já, ou era evidente, uma derrota militar do MPLA no Leste de Angola, a União Soviética tivesse de rever a sua estratégia. Ao actuarem sobre o moral das tropas não queriam cometer o mesmo erro quando instalaram o marxista Allende no Chile sem o envolvimento das Forças Armadas. A World Marxist Revue, de Abril de 1974, diz a este respeito: «Para se ser bem sucedido, é necessário conquistar oficiais e os homens progressistas e patrióticos... Os comunistas devem sempre lembrar as palavras de Lenine de que só o descontentamento nas Forças Armadas não é suficiente para conseguir que o movimento seja bem sucedido; também é necessário um acordo directo com os elementos democráticos e revolucionários nas Forças Armadas».









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A quebra da unidade na retaguarda iniciou-se logo após o desaparecimento de Salazar, com as indecisões de Marcello Caetano, a crise estudantil de 1968 e o movimento grevista onde o PCP, na clandestinidade, era certamente o motor. No campo da coesão das Forças Armadas, a passividade de Caetano foi certamente influente, mas a formação de células comunistas nos quartéis e cadeias de comando começou a corroer essa coesão. Estas células eram formadas a partir de elementos do quadro assumidamente comunistas, ou outros ciosos de protagonismo, e o pessoal miliciano cuja endoutrinação era feita antes da sua incorporação e que constituíam os germes fomentadores da indisciplina e desmotivação das forças para o combate. Aliás esta estratégia do Kremlin para destruir a lealdade nas Forças Armadas, não se limitava só a Portugal. Os senhores de Moscovo sabiam que, com os americanos envolvidos desastrosamente na guerra do Vietname, teriam as mãos livres para castigar os exércitos dos países da Europa Ocidental. Anthony Burton no seu livro A Destruição da Lealdade afirma: «Além do mais, e para os revolucionários, esta é a imagem mais sedutora de todas; as Forças Armadas podem tornar-se - elas próprias - o veículo da revolução. Não é necessário envolver um grande número de militares. As Forças Armadas modernas são ainda mais tecnologicamente sensíveis do que as sociedades que servem. Um pequeno número de pessoal-chave pode sabotar eficazmente toda a máquina militar durante algumas horas cruciais». E depois de várias considerações conclui:

«Todas estas considerações levam à conclusão de que a lealdade nas Forças Armadas do Ocidente deve ser um dos objectivos principais da subversão».

No Reino Unido, desde longa data, foi necessário criar legislação específica para prevenir e punir toda e qualquer tentativa de subversão nas Forças Armadas. Durante muitos anos o principal diploma sobre a matéria era consubstanciado na lei «Decreto do incitamento à Revolta de 1797», que concretamente explicitava:

«Qualquer pessoa que tente, maldosa e deliberadamente, desencaminhar qualquer pessoa ou pessoas ao serviço de Sua Majestade, ou que incite ou estimule tal pessoa ou pessoas a cometer qualquer acto de rebelião, ou que faça ou tente fazer qualquer reunião amotinadora, ou que cometa quaisquer actos traiçoeiros ou rebeldes, deve, ao ser legalmente condenado por tal delito, ser culpado de traição».

Na década de 1910 tiveram lugar algumas acusações relacionadas com actos de subversão tendentes a provocar a deslealdade nas Forças Armadas. O socialista John Maclean foi acusado, sucessivamente, em 1915, 1916 e 1918, tendo sido condenado a cinco anos de trabalhos forçados. Em 1925, doze comunistas foram considerados culpados, segundo o mesmo decreto, por incitarem à deslealdade. Para neutralizar estas tentativas de revolta nas Forças Armadas a legislação de 1797 foi actualizada com o Decreto de Incitamento à Deslealdade, que teve a aprovação real em 16 de Novembro de 1934.

(...) A destruição da lealdade foi, pois, a estratégia estabelecida pela URSS para minar o potencial militar do mundo ocidental. Esta estratégia terá sido definida mesmo antes do desaire sofrido pelo MPLA na frente Leste de Angola com o apoio total da URSS. Segundo Vasco Lourenço, numa entrevista que concedeu aquando dos 30 anos do 25 de Abril a Ana de Sousa Dias, que incluiu os acontecimentos que teriam ocorrido durante a única comissão que cumpriu na Guiné de 1969 a 1971, tinha chegado à conclusão que aquela guerra era injusta e só poderia ter uma solução política. Segundo as suas próprias palavras esta evidência tinha-se-lhe imposto quando o seu guia preto guineense foi abatido pelos nacionalistas que lutavam contra a presença portuguesa naquele território. Na sua opinião não era admissível que os naturais desta colónia na luta pela libertação se matassem uns aos outros. Adiantou que este facto, e principalmente as muitas conversas que tinha tido com os alferes e furriéis que lutavam a seu lado pela mesma causa, o tinha levado a tirar esta conclusão. Estes milicianos já faziam parte do esquema montado pelos comunistas para levar à "destruição da lealdade" dos nossos combatentes e convencê-los da injustiça desta guerra. A mesma acção se desenrolava em Angola e Moçambique.






Este vírus teve origem, na sua grande maioria, nos estudantes universitários protagonistas da agitação académica nos anos de 1968/69 que, estimulados para o cumprimento do serviço militar, o foram disseminando pelas forças militares que se encontravam no Ultramar. Este vírus, que já tinha infectado o então Capitão Vasco Lourenço, iria provocar no pessoal que já aspirava a uma solução política para o problema que enfrentavam havia mais de dez anos, uma espécie de revolta ou abertura a tomadas de atitude que não se enquadravam dentro do espírito que presidira, durante mais de uma década, à luta que travámos com êxito nos três teatros de operação. Vasco Lourenço, na entrevista já referida, afirmou que as forças empenhadas na defesa da Guiné iriam, a curto prazo, ser esmagadas pelo PAIGC. É estranha tal afirmação na medida em que, tendo estado empenhado nesta luta durante dois anos, não tivera qualquer baixa entre os homens da companhia que comandava. Deste facto pode deduzir-se que o potencial de combate do inimigo não era tão eficaz nas suas acções quanto se fazia crer. Naturalmente que o objectivo era só um: minar o moral das nossas forças, não só na Guiné mas também nas outras frentes de combate. Recordam-se as palavras do ministro Almeida Santos quando vaticinava uma mais que certa derrota militar a curto prazo na Guiné donde resultava a necessidade de se encontrar uma solução política para as guerras do Ultramar. Pelo contrário, o General Costa Gomes, nas suas funções de CEMGFA, ao passar pela Guiné em Janeiro de 1974, afirmou que a Guiné "era defensável e tinha de ser defendida".

Mas Vasco Lourenço, segundo rezam opiniões recolhidas, não teria sido iluminado pelo episódio já referido da morte do guia, mas sim quando numa emboscada sofrida pelas suas forças ele saltou da viatura e se abrigou debaixo dela enquanto os seus homens faziam frente ao fogo do inimigo. Foi nesta situação de puro medo físico que ele foi iluminado e só então compreendeu a injustiça da guerra.

O vírus revolucionário, segundo os planos de Moscovo, nasceu na Guiné e rapidamente alastrou pelos restantes teatros de operações, não só às unidades como igualmente a outros orgãos das Forças Armadas empenhados em debelar a subversão e proteger as populações. Assim, o espírito de missão, a noção de dever, a mística que envolvera os nossos militares parecia enfraquecer facilitando a acção do inimigo.

Também na Metrópole as iniciativas de grupos mais ou menos organizados e liderados pelos comunistas levaram a efeito acções tendentes a incrementar o espírito anti-guerra colonial como por exemplo os comunicados de:

- Direcção da Organização Regional do Sul do PCP;

- Comité Directivo da Resistência Popular Anticolonial;

- Federação dos Estudantes Marxistas-Leninistas;

- Contestação da Capela do Rato;

- Congresso da Oposição Democrática em Aveiro a 27 de Maio de 1973;

- Encontro de Liberais em Lisboa em 6 de Junho de 1973.

E outros eventos como greves, demonstrações de rua, etc., todos com o mesmo objectivo de quebrar a unidade da retaguarda.

(...) O plano da URSS estava em marcha segundo os objectivos fixados e na Guiné nascera o vírus revolucionário que rapidamente alastrou a Angola, bem como a Moçambique e à Metrópole, onde o projecto de integração dos quadros milicianos no quadro permanente viria a ser habilmente aproveitado para lançar o conhecido MFA.



(...) O 25 DE ABRIL






Vasco Lourenço



28 de Maio versus 25 de Abril. Num e noutro caso, tudo leva a crer que tinham pelo menos um ponto em comum: os chamados agentes ou activistas. Simplesmente, enquanto uns agiram por fervor patriótico, no respeito pelos regulamentos e elevado sentido de responsabilidade, os outros agiram por convicção ideológica, ambição e, na sua grande maioria, infectados pelo vírus revolucionário de obediência estrangeira e que rapidamente alastrou a todos os territórios nacionais. Também enquanto que no 28 de Maio a acção decorre no respeito pela hierarquia, no segundo surgem os "sprinters" sempre a pretender ultrapassar o seu parceiro de corrida, como no final duma etapa com a chegada em pelotão duma prova de ciclismo. Temos de reconhecer a capacidade multiplicativa do vírus revolucionário que, afectando largas franjas do edifício militar, acabou também por contaminar grande parte da sociedade civil em que os agentes já não se centravam nos chamados "milicianos", mas nos activistas do aparelho comunista ainda na clandestinidade.

Mas Spínola não descansava e, com o apoio dos seus "correios", especialmente o Coronel Carlos Morais, manteve um contacto estreito com o movimento. O Prof. Dr. Veiga Simão, então Ministro da Educação, tenta forçar um diálogo conciliatório entre Spínola e Marcello. E em 16 de Março de 1974 os revolucionários dão um primeiro passo, mas "em falso". O Regimento das Caldas sai do quartel e dirige-se para Lisboa. Também Mafra sai, mas ao tomar conhecimento que as outras forças previstas no plano de acção, como Santarém e Vendas Novas não tinham saído, regressa ao quartel, consta que por directivas emanadas pelo então Major Otelo S. de Carvalho. Entretanto os oficiais envolvidos nesta acção foram presos na casa de reclusão da Trafaria. Embora continuem a subsistir algumas dúvidas quanto aos objectivos desta acção absolutamente extemporânea, concluiu-se que a hipótese mais plausível teria sido uma armadilha forjada pelos oficiais esquerdistas tendente a provocar o afastamento temporário de alguns oficiais, ditos spinolistas, para que estes não afectassem o futuro planeamento do golpe marxista que o PCP, obedecendo à URSS, queria lançar. Spínola era, de facto, um sonhador e ainda não se apercebera da ingerência do PCP em toda a conjuntura que iria levar ao 25 de Abril.

Entretanto apareceu o programa político do movimento que foi presente a Spínola cerca de oito anos antes do golpe. Este mandou-lhe introduzir algumas alterações, porquanto logo detectou a sua inspiração comunista.

As opiniões dividem-se quanto ao autor ou autores do programa: o Major Melo Antunes e uma comissão de militares do movimento, ou tão-só o Coronel Vasco Gonçalves. Em qualquer caso parece não restarem dúvidas de que tinha forte inspiração marxista-leninista.

A partir de 16 de Março viveu-se um período de aparente acalmia. Entretanto Mário Soares e Cunhal tiveram várias reuniões tanto em Paris como em Praga e estavam perfeitamente a par dos planos de conjura. O primeiro não queria perder o comboio. Aliás, está no seu feitio nunca perder uma oportunidade que o catapulte para o círculo dos grandes deste mundo. Mário Soares tem de participar mesmo que para isso tenha de fazer o jogo de Cunhal. Em 1 de Julho de 1992, o Brigadeiro Manuel Monge, numa entrevista concedida ao Coronel Manuel Bernardo, responde à pergunta:

«P - Achas que o Álvaro Cunhal fez em Paris algum acordo com o Mário Soares?

R - Não tenho conhecimento, mas acho possível. Pois acredito no facto de Cunhal pensar que tinha o menino nas mãos; então porque iria distribuir parte do seu poder com o Dr. Mário Soares? O que me constou [...] mas que ainda ninguém disse, mas tenho esperança que os arquivos secretos venham a revelar as identidades dos tipos do MFA que foram a Praga e a Londres falar com o Cunhal e os seus delegados. Espero que apareçam algum dia. Pelo menos nós, quando estivemos presos na Trafaria, no pós 16 de Março, tivemos notícias nesse sentido».

Até hoje não apareceram, embora outras fontes tenham vindo a fazer referência a encontros entre Mário Soares, Cunhal e um ou dois elementos do MFA onde as linhas gerais da política ultramarina tenham sido definidas. Estes encontros terão tido lugar em Paris, Praga ou em qualquer outro local da Europa, onde certamente não faltaria Melo Antunes, o dito cérebro da descolonização. Importa recordar que Mário Soares disse ser este o único dos "Capitães de Abril" que conhecera antes da revolução ter tido lugar, tendo-se encontrado com ele por várias vezes. O poder, apesar de muitos homens de incontestável valor que o integravam, estava podre e viria a morrer sem deixar saudades.




O 16 de Março não travara o processo. A DGS teve conhecimento da sua evolução e informou as entidades superiores; chegou mesmo a receber instruções para prender os oficiais implicados. O director da Polícia Política, Major Silva Pais, negou-se a fazê-lo e teria mesmo afirmado que o problema era do foro militar. Assim, não competia à DGS, mas às forças Armadas, prender os oficiais envolvidos no movimento. Este foi o princípio seguido aquando do 16 de Março, metendo os oficiais envolvidos na casa de reclusão da Trafaria. Também alguns oficiais acusados de atitudes subversivas acabaram por ser transferidos de unidade, como foi o caso de Melo Antunes e Vasco Lourenço, colocados nos Açores.

Nada disto impediu que o projecto prosseguisse e, numa luta permanente pelas funções que mais agradavam a cada um, os "capitães" lá iam preenchendo os lugares segundo a estratégia montada pelo PCP e bem conduzida no seio dos revoltosos pelo sempre diligente e fiel discípulo Vasco Gonçalves. Quase não se dá por ele, mas vai manobrando as forças de acordo com os interesses do partido; é um pau mandado, que irá ser protagonista de cenas tragicómicas e de quem o PCP se serviu como "marionette".

A falha do 16 de Março veio, sem dúvida, provocar algumas alterações nos planos iniciais, falando-se até numa antecipação da data prevista para o golpe. No dia 24 de Abril tudo parecia estar devidamente planeado e pronto a arrancar. Nessa noite, Otelo contactou com o Coronel Carlos Morais a quem informou de que a revolução se desencadearia pelas três da madrugada do dia 25 e que os sinais de código relacionados com a preparação da saída dos quartéis seriam às 22:55 do dia 24 com a canção "E depois do adeus", de Paulo de Carvalho, transmitida pela Estação dos Emissores Associados de Lisboa e o sinal confirmativo das operações com a canção "Grândola Vila Morena", de José Afonso, a ir para o ar na Rádio Renascença pelas 00:20 já do dia 25. Otelo pediu na altura ao Coronel Carlos Morais para transmitir estas informações ao General Spínola que se encontrava em casa e onde o "correio" chegou cerca das 20:30.

Perguntar-se-á porquê estes sinais de código para encetar uma operação militar? As FA dispunham de meios humanos e materiais para coordenar e comandar as forças envolvidas em operações. Assim aconteceu durante aqueles 13 anos de guerra no Ultramar e o tipo de guerra que enfrentávamos obrigava a um contacto permanente entre os vários grupos de combate envolvidos. Esta ligação era obrigatoriamente conseguida através de meios electrónicos. Para a revolução, para coordenar meia dúzia de colunas que marchavam para Lisboa, houve necessidade de utilizar os meios de comunicação social. Porquê?

O verdadeiro motivo é que havia outras forças, não militares, envolvidas nas acções previstas nos planos elaborados por Moscovo para a tomada do poder em Portugal. Estas "forças" não dispunham de meios nem de técnica para coordenarem os movimentos e acções entre si e que se devia estender a todo o país. Recordem-se as afirmações feitas por Carlos Brito na noite de 24 de Abril. Na página 70 da revista Visão de 11/07/2002: «No balanço de uma vida, Brito continua a eleger o 25 de Abril como o melhor que lhe aconteceu, a ele e ao país. O golpe não o apanhou desprevenido. Era dos poucos que sabia o que ia acontecer nessa madrugada. Acompanha a célula militar do PCP e fora informado por alguns oficiais milicianos. A reunião marcada para a data com os militantes da UEC, nos arredores de Lisboa, converteu-se em jogo de sueca. Carlos Brito tentava não deixar transparecer a expectativa. Quando começaram os primeiros sinais, na rádio, pôde sossegar os camaradas: "É um golpe de gente boa". Correu a avisar os outros amigos e funcionários, seguiram-se as orientações em relação à PIDE e à libertação dos presos políticos, telefonou à mãe. Entretanto saboreou, pela primeira vez, os pequenos gestos autorizados pela liberdade: "Tomei uma bica na Estação de Oeiras"».









Álvaro Cunhal e Carlos Brito



Os activistas da estrutura do PCP, que desde a década de 30 tinham vivido na clandestinidade, surgem da sombra no enfraquecido todo nacional com missões bem definidas para remover os obstáculos que ainda se opunham à sua acção na tomada do poder. À hora prevista, as colunas saíram dos seus aquartelamentos, ou por coordenação entre elas, ou pelos sinais de código emitidos pelas estações de rádio. O "estratego", Major Otelo Saraiva de Carvalho, encontrava-se no quartel da Pontinha donde orientava, tomava conhecimento ou conduzia efectivamente o movimento das colunas. Não se sabe ao certo quem foi o estratego, apesar de Vasco Lourenço, desterrado em S. Miguel, reclamar para si esse papel visto, como ainda recentemente afirmou, ter sido ele próprio quem planeou toda a operação, mas acrescentando que, se as coisas corressem mal em Lisboa, ele e o Melo Antunes, seu parceiro de "cativeiro", estavam prontos a controlar as unidades militares da ilha! Mas as forças entraram em Lisboa pelos itinerários previstos e sem qualquer incidente. Apenas, já na capital, quando a força comandada por Salgueiro Maia atravessava o Terreiro do Paço, ao entrar na Rua da Alfândega, deparou com uma força militar comandada pelo Brigadeiro Junqueira dos Reis que parece ter dado ordem aos blindados para disparar sobre a coluna dos revoltosos. Este incidente foi rapidamente solucionado sem qualquer confronto e à coluna de Salgueiro Maia foi alterado o objectivo, conforme afirmou Vasco Lourenço, devendo seguir para o Largo do Carmo porquanto Marcelo Caetano e alguns dos seus ministros haviam-se refugiado no quartel da GNR. Entretanto, o "povo que mais ordena" foi surgindo de todos os lados assim como os cravos vermelhos, símbolos do comunismo. (O cravo vermelho foi inicialmente símbolo do trotskismo, mas quando este movimento e o seu lider, Trotski, foram aniquilados por Lenine, este passou a adoptar o cravo vermelho como símbolo do comunismo).

Era procedimento, sempre que se verificassem situações graves a nível nacional, o Governo seguir para o Comando Operacional da Força Aérea, em Monsanto, onde tinha todas as condições de segurança e meios de comunicação que lhe permitiriam continuar a governar. Por razões que não se conhecem, o Presidente do Conselho dirigiu-se para o Quartel do Carmo. Poderá admitir-se que ele só pretendia segurança e sabia que não tinha o mínimo de condições para continuar a dirigir os destinos da Nação. Recorde-se que, cerca de oito dias antes, tinha pedido a sua demissão ao Presidente da República e que este recusara. Entretanto, os centros nevrálgicos de Lisboa, como estações de rádio, RTP, centrais telefónicas, comando militar, etc., tinham sido ocupados por civis e milicianos às ordens do PC e bem orquestrado ou enquadrado o povo por toda a parte, e muito especialmente, nos grandes centros, saltam para a rua vitoriando o triunfo dos revoltosos.

Spínola, durante o dia 25, a pedido de Marcello (que pretendia que o poder não caísse na rua) vai ao Carmo, devidamente fardado e com o seu inseparável monóculo, e aceita a rendição de Marcello Caetano.

Antes desta rendição ter tido lugar, Salgueiro Maia permitiu que algumas rajadas de tiros fossem feitas contra a fachada exterior do quartel, vendo-se perfeitamente os buracos provocados pelo impacto das balas. Naturalmente que todas as portas estavam fechadas, mas um capitão da GNR, sabendo duma porta lateral não fechada, veio até ao Largo do Carmo e conversou com Salgueiro Maia. Ignora-se o teor da conversa, mas não andará longe dum acalmar dos ânimos, informando que o Presidente do Conselho já se rendera e só aguardava a chegada do General Spínola para se retirar. Recentemente, por alturas de mais um 25 de Abril, disse-se que Salgueiro Maia terá entrado no Quartel do Carmo para aceitar a renúncia de Marcello. Isto não passa de ficção que tem como finalidade "dourar" a figura de Salgueiro Maia como grande herói, assim justificando a proliferação de símbolos (estátuas, pontes, ruas, praças) para imortalizar a memória de um militar honesto, simples e leal. Estou certo que, se fosse vivo, seria o primeiro a não permitir tais honrarias. Mas tudo serve para imortalizar o 25 de Abril.






Ver aqui



(...) Também a 25, anuncia-se a formação de uma Junta de Salvação Nacional formada pelos Generais Spínola e Costa Gomes e Brigadeiro Jaime S. Marques, do Exército, Comandante Rosa Coutinho e Pinheiro de Azevedo, da Marinha, e Coronel Galvão de Melo e Brigadeiro Diogo Neto, da Força Aérea.

Desconhece-se se a Junta foi iniciativa do General Costa Gomes ou uma sugestão do Coronel Vasco Gonçalves, o certo é que a sua formação era algo bizarra:

- os Generais Costa Gomes e Spínola parecem normais, visto terem recusado fazer parte da "brigada do reumático";

- o Brigadeiro Jaime Silvério Marques seguiu para a Direcção dos Envios e Transportes, da qual era director, tendo ido, como normalmente, no dia 25 para o serviço; nesse mesmo dia, preso ou não, apareceu como membro da JNS;

- O CMG Rosa Coutinho era tido como um militar exemplar em todos os sentidos, mas alguém lhe tida dado a volta e mostrou-se claramente um homem às ordens do PC;

- o CMG Pinheiro de Azevedo, tido como bom militar, ignora-se por que foi escolhido e por quem;

- o Brigadeiro Diogo Neto era tão-só um operacional, encontrava-se em Moçambique e foi indicado pelo seu amigo Spínola com o qual tinha servido em Angola e na Guiné;

- o Coronel Galvão de Melo, que deve ter sido indicado pelos "capitães" da Força Aérea, estava na reserva; profissionalmente, era um bom piloto e, de resto, era corajoso, mas controverso. Numa entrevista que deu em Agosto de 1974, afirmou: "Havia oito anos que deixara as Forças Armadas voluntariamente, por não achar digno ascender ao posto de general dentro dos condicionalismos existentes, mas fui convidado pelo MFA para desempenhar parte activa no movimento revolucionário do 25 de Abril, ao qual devo, e só a ele, as estrelas de general, que desta vez aceitei usar".

Nessa mesma noite, a Junta apresentou-se à Nação através da RTP com todos os seus membros, com a excepção de Diogo Neto que ainda não chegara de Moçambique. É curioso notar que quando entraram no edifício onde funcionava a RTP, alguém se lembrou de perguntar quem era o Presidente da Junta. Olharam-se interrogativamente e pediram ao administrador da estação presente que lhes arranjasse uma sala para uma reunião limitada aos seus membros presentes. A reunião demorou 15 minutos e o General Spínola foi o escolhido, não se conhecendo os fundamentos da escolha porquanto o General Costa Gomes era mais antigo e também um militar com uma excelente folha de serviços. Foi a primeira alteração que a "revolução dos cravos" introduziu na cadeia hierárquica o que se iria repetir vezes sem conta. Depois Spínola falou à Nação com uma postura de seriedade, mas sem conseguir explicar ou deixar claro como seria o amanhã. E é nesse amanhã que nos começámos a interrogar quem afinal mandava no país. O Governo em bloco e o PR tinham sido demitidos; as cabeças começaram a rolar em todos os sectores do Estado e nas empresas civis, mas havia uma euforia convenientemente manipulada pelos donos da revolução: os comunistas, os antifascistas e muitos oportunistas. Os exilados regressam em massa. Vem o 1.º de Maio, o dia do trabalhador, amplamente festejado por todo o País, mas com o seu ponto mais alto em Lisboa, onde Cunhal e Soares, lado a lado, discursaram às massas no Estádio 1.º de Maio. Os portugueses, ingenuamente, festejaram. Havia alegria e sorrisos por toda a parte, que a curto prazo se iriam converter em dor, medo e lágrimas. Sobre este período da nossa história apareceram nos livros que se têm publicado muitas versões, mas importa salientar as duas mais significativas: a daqueles portugueses que consideram o 25 de Abril a maior catástrofe que podia ter acontecido e a versão dos antifascistas e oportunistas que se revêm no golpe e consideram que tudo é imperioso sofrer para se salvar a "democracia" e a liberdade. (...) Na realidade, o que se apregoa a sete ventos é que o 25 de Abril se fez para terminar com a criminosa e hedionda guerra colonial e daqui ser a grande preocupação dos novos senhores do poder proceder à descolonização dos territórios sob o "jugo" português. A descolonização que um dos principais responsáveis da revolução, Melo Antunes, acabaria por classificar de tragédia! (in «25 DE ABRIL DE 1974. A REVOLUÇÃO DA PERFÍDIA», Prefácio, 2008, pp. 54-57; 70-79; 84-89; 102-109).



Melo Antunes






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Continua


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