quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O que é o Ideal Português

Escrito pelos organizadores do Colóquio sobre «O que é o Ideal Português» (1962)








Introdução

Na sequência da invasão de Goa a 28 de Dezembro de 1961, tiveram lugar, na Casa da Imprensa, de 20 de Junho a 25 de Julho de 1962, uma série de conferências sobre o Ideal Português dedicadas a Álvaro Ribeiro. «Sabedores de que uma independência política se não explica, nem garante, senão a partir de uma autonomia cultural», os organizadores do Colóquio, situando-se num movimento de exigência filosófica, artística e religiosa, procuraram sustentar a «defesa intransigente das províncias ultramarinas portuguesas». Ora, os trechos que ora publicamos constituem uma parte substancial da «síntese conclusiva» do Colóquio, em que se vislumbram «as proposições patrióticas e nacionalistas» perante «o estado de abastardamento de grande número de intelectuais portugueses».

Entretanto, convém salientar que as teses dos conferencistas não obedeceram a fins 'ideológicos', pelo que querer ver uma aproximação entre essas teses e o salazarismo é um erro, no mínimo, crasso. Caem assim por terra as distorções ideológicas vindas, no pós-25 de Abril, de um Eduardo Lourenço, de um João Medina ou de um Eduardo Prado Coelho ao serviço do socialismo dominante. Ou, ainda, se quisermos, de um 'Miguel Real', que acabou dando a filosofia portuguesa como que encerrando a «história a sete chaves no porão de um navio negreiro, atirando» não só «as chaves ao mar profundo», mas forçando ainda «os vindouros a abrirem-no através de sucessivas explosões sociais», entre elas a do «25 de Abril de 1974», ou a da «perda desonrosa do Império» (M. Real, Agostinho da Silva e a Cultura Portuguesa, Quidnovi, 2007, p. 81).

Enfim, um rol de baboseiras e parvoíces que intoxicam o mercado livreiro e vão ao encontro da cultura triunfante instalada nas escolas e instituições universitárias. Porém, Franco Nogueira diz-nos o que mais importa, nomeadamente quando afirma que os conferencistas se mostraram simplesmente sensíveis à unidade nacional perante a ameaça proveniente do cerco mundialista a Portugal: 

«E mesmo alguns de novas gerações mostram-se sensíveis ao problema. Um grupo que se intitula de jovens intelectuais – António Quadros, Fernando Morgado, Francisco Sottomayor, Fernando Sylvan, Jorge Preto, outros ainda – sugere mesmo uma política ultramarina integracionista, um esquema de povoamento, uma reparação de injustiças, uma revisão de alianças» (in Salazar, Livraria Civilização Editora, Vol. V, 1984, p. 249).

Não há, por conseguinte, uma identificação com as teses do 'Movimento do 57' e a cultura oficial e situacionista do Portugal de Salazar. Quando muito, há tão-só uma consciência, por parte daquele Movimento, da crescente hostilidade do internacionalismo invasor contra o Portugal pluri-continental e pluri-racial defendido pelo regime de Salazar até às últimas consequências. Isto para já não falar da manifesta e ostensiva traição da Universidade no seio do próprio regime salazarista, que, como escreveu António Quadros, lá ia convertendo as novas gerações «ao marxismo comunista, ao socialismo internacionalista ou ao catolicismo progressista de simpatias marxistas» (in A Arte de Continuar Português, Edições do Templo, 1978, p. 24).

Miguel
Bruno Duarte





O Ideal Português

Síntese conclusiva




A existência de um ideal tão amplo e transcendente como o português, confere-nos uma insubstituível missão no mundo: a de unir e irmanar, em vez de extremar e dividir continentes e raças. A defesa intransigente das províncias ultramarinas, sancionada pelos organizadores deste Colóquio e garantida por um pensamento que preconiza soluções ousadas e fundamentadas, tem como principal alicerce o reconhecimento e a consciência de que, no mundo de hoje, nenhum ideal está mais apetrechado do que o português, desde que lhe seja possível realizar-se dentro da máxima exigência do seu movimento próprio, para promover a evolução humana, no sentido alto e profundo que atrás teorizámos.

A reacção do público, manifestada na sua participação nos debates e nos comentários da imprensa, quer à organização do Colóquio, quer às proposições feitas nas várias teses, confirmou, inteiramente, três pressupostos iniciais já previstos por todos os autores delas. O primeiro, cifra-se no efectivo sentimento patriótico latente na alma de todo o português e manifestado, com maior ou menos veemência, sempre que a sorte ou o azar da história de algum modo ferem a integridade da Pátria; as crónicas guerreiras de Portugal estão cheias destas instintivas e por vezes veementes reacções populares, ante todas as perfídias, ataques ou traições perpetrados contra a casa lusitana. Sentimento de éfemera duração, por vezes, é a mais profunda expressão da força antropológica portuguesa, sem a qual nenhuma das empresas gigantescas, cometidas ao longo do espaço e do tempo pelo povo lusíada, teria sido possível. Sentimento que se manifestou, dentro e fora desta sala, pelo aplauso sincero ou pela presença concordante, de muitas pessoas não directamente interessadas em questões de ordem cultural, artística ou filosófica. O segundo pressuposto, evidenciou-se de maneira cabal, pela repugnância, de tantos modos manifestada, para com a aceitação de fórmulas portuguesas de pensar, de criar e de agir. Para muitos, presentes ou não neste Colóquio, não houve uma tese, um pensamento, uma inspiração ou uma obra, que pudesse inteiramente assumir-se como manifestação portuguesa, pois a todos procuraram radicações, influências e propósitos comuns, ou derivados, de formas culturais estranhas ou estrangeiras. Uma articulação efectiva do ser com o pensar, da educação com a política, da filosofia com a educação e da religião com a filosofia, são proposições cujo nacionalismo as massas intelectualizadas portuguesas têm manifesta dificuldade em aceitar. Dificuldade, por vezes expressa em forma de choque, que é bastante para explicar o estado de abastardamento de grande número de intelectuais portugueses, para os quais constituem meros acidentes, de motivação indeterminável, o facto de se nascer num dado País, de se viver num dado ambiente espiritual, de se falar numa dada língua. Dificuldade que pode explicar-se de dois modos, no fundo derivados da mesma causa: a desnacionalização dos costumes, das estruturas sociais e dos métodos e fins da educação. Por um lado, os detentores de certas formas de cultura valorizada no estrangeiro e recebida nas escolas, liceus e universidades de Portugal, não podem, a não ser que ponham em crise a sua formação intelectual - e isso não estão dispostos a fazer, ou já o não podem fazer - aceitar como válidas concepções e ideologias que contrariem, na raiz, as concepções e ideologias que se habituaram a respeitar, ou que servem para uma egoísta ilustração e considerações sociais. É o caso dos profissionais do ensino que, pagos pelo Estado português, negam a aceitação das teses culturais portuguesas; por outro lado, estão as vítimas, com maior ou menos grau de inocência, de um sistema educativo, que adultera profundamente as naturais tendências dos portugueses para a interrogação e a especulação filosóficas, para a busca de caminhos e de respostas às interrogações primordiais de todas as culturas: quem somos? donde vimos? para onde vamos? Vítimas, sim, e do mais condenável delito de lesa pátria, que é o cometido contra a sua própria alma. No decorrer destes debates, foram feitas proposições tais, cujas consequências extremas são a renúncia, a derrota, a traição a todas as proposições patrióticas e nacionalistas - e tudo isso, na inconsciência aparente das enormidades proferidas. Uma das teses propostas e, por infelicidade, largamente verificada, foi a de que o modo mais eficaz para uma nação ser dominada por outra, consiste na aceitação da sua cultura e abastardamento consequente dos valores espirituais próprios. É este o modo por que sempre as hegemonias nacionais se exercem, não sendo o domínio pelas armas mais do que a confirmação do domínio cultural. E é lástima verificar, através de tantas objecções à propositura dum ideal português, que a grande massa da população escolarizada em Portugal está pronta a aceitar o domínio de nações como a França e a Alemanha, cujas culturas e cujas missões históricas são o oposto das nossas.






O outro pressuposto, e o mais animador, verificou-se igualmente no decorrer dos debates: é o da esperança, manifestada como último recurso, em face da falência de tantos outros, de residir de facto numa afirmação de portuguesismo a única salvação da Pátria ameaçada, pelas mesmas forças em que tantos depositaram fé. Quando tudo à sua volta se está manifestando contrário, agressivo ou beligerante, os portugueses são levados a procurar em si mesmos a força da sua manutenção e sobrevivência sobre a face da Terra.

Com espanto primeiro, com tristeza depois, estão agora todos verificando uma verdade, de há muito sabida por alguns: a de que Portugal se encontra sozinho, sem amigos nem comparsas, no teatro do Mundo; de que não colhe em seu proveito o apoio em correntes saídas de mananciais estranhos; de que não há ninguém, próximo ou remoto, fora de si mesmo, com a preocupação de salvar da catástrofe possível a integridade portuguesa. Então, os portugueses, como única via ou tábua de salvação, voltam-se para si mesmos, interrogam esperançados os poucos que afirmam ter natural razão e forças de sobra para se manter íntegro e ainda ajudar aos outros povos, na dura peregrinação pela Terra. Daí, o depositar-se esperança na resposta ao desafio lançado pelos inimigos da Pátria, de todos os pontos do globo. Daí, as interrogações que se formulam se acaso será verdade numa realidade especificamente portuguesa.

É em face deste aspecto da questão, tão claramente evidenciada pelo decorrer dos debates, que podem restar aos organizadores do Colóquio alguns motivos para se congratularem com o resultado nele obtido. Também eles, na sua passagem infeliz pelos estabelecimentos de ensino, desde a escola primária, à universidade e, alguns, até ao professorado, foram em dado momento enformados pelos ideais e noções desnacionalizadores, que estão na base da nossa educação. Também eles, leram Kant e Hegel e Sartre, com a devoção dos esperançados e dos submissos; ouviram e retiveram as superioridades culturais da França, da Alemanha, da Inglaterra; acataram a autoridade espiritual romana; discutiram, apreciaram, louvaram artistas, romancistas, pensadores, de mensagens tão brilhantes quanto falsas - e estudando em tratados estrangeiros, ilustrando-se nas culturas estranhas, nem reparavam, sequer, no facto de tais tratados, culturas e autores, nem ao de leve mencionarem o nome ou os valores culturais de Portugal. Só quando mais tarde, libertos das pesadas grilhetas universitárias, puderam actualizar-se como portugueses e mergulharam com ânsia na busca e no estudo de manifestações culturais portuguesas, se deram conta do logro em que jaziam e do delito sem nome dos que omitem, por malícia, por inépcia ou vesânia, a prodigiosa riqueza espiritual portuguesa, de que apenas fomos capazes nós os organizadores deste Colóquio, de dar uma remota notícia.






Assim, das três reacções previstas às teses propostas, a nossa desconfiança e o nosso combate convergem, apenas, contra os que teimosamente impedem, com preconceitos e prejuízos desnacionalizadores, a livre interrogação e afirmação de uma cultura nacional; contra os enquistados em cómodas e feitas modalidades de exploração económica da ânsia de saber do português; contra os que, por uma, ou outra, ou por ambas as razões, estão, consciente ou inconscientemente, tramando a queda ou aniquilamento da Pátria portuguesa. Aos outros, aos que procuram com maior ou menor discernimento, mas, com, idêntica isenção e liberdade crítica, entender ou aceitar as proposições culturais que reputamos salvadoras para a integridade e autonomia portuguesas - para esses, vai o nosso aplauso e agradecimento, pois são os que nos garantem não ter sido vão o nosso esforço e nos fazem esperar, confiadamente, no florescimento futuro da Pátria portuguesa (in O que é o ideal português, Edições do Templo, pp. 226-231).

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