sábado, 9 de janeiro de 2010

Aristóteles e as Mutações (ii)

Escrito por Mário Ferreira dos Santos



S. Tomás de Aquino


Para Tomás de Aquino, em todo género, o ser mais perfeito é exemplar e medida dos outros seres do género.

Deus é o exemplar de todos os que participam da sua bondade (como bem e bom).

Para ele o efeito tem sua perfeição própria; seu limite, é o que é, nem mais nem menos. E diversos epítetos apresentam toda essa ausência de excessos, como de defeitos, essa moderação, esse "justo meio", e daí resulta uma ordem, uma disposição harmoniosa.

A causa de tal harmonia chamar-se-á medida de seus efeitos. Deus tudo dispôs com medida e, por isso, é medida de tudo.

(...) Em cada instante, há um ser que é o melhor de sua série. Entre todas as macieiras do mundo, há de haver, agora, neste instante, uma que seja a mais perfeita, a que melhor corresponde, não apenas ao esquema abstracto macieira nem apenas ao esquema concreto imanente na macieira, mas à forma, na ordem universal do ser. A macieira mais macieira de todas.

Todo o género tem um termo que é a perfeição do género. E esse termo se dá, de facto sempre, e em potência, porque o perfeito de hoje poderá ser superado amanhã, pois a perfeição absoluta da macieira só caberia à forma essencial, porque esta é macieira.

Estas digressões mais comezinhas à dialéctica platónica que à aristotélica, levar-nos-iam à afirmação de que um ser que atingisse a perfeição da forma essencial, do eidos platónico, por exemplo, ou do arithmós plethos (o número de conjunto) pitagórico, seria materialmente inalcançável. No segundo caso, seria compreensível, porque o número da harmonia platónica, os arithmói harmonikoi são sempre indefinidos, portanto nunca alcançáveis, materialmente, na sua perfeição extensista e definitivamente acabada, como a relação entre o diâmetro e a circunferência, ou a hipotenusa e o quadrado, dão sempre um número indefinido.


"Escola de Atenas"


A forma essencial na ordem ontológica é perfeita e jamais alcançada pela materialidade, que dela pode potencialmente aproximar-se sempre, como o número de ouro pitagórico, que jamais alcança um termo finito.

Assim, o esquema concreto de um ser aqui e agora, esta macieira, por exemplo, imita a ideia exemplar (na linguagem de Tomás de Aquino), o eidos platónico, a forma escotista, ou o arithmós plethos pitagórico, mas, como imitante jamais o repetiria perfeitamente, pois do contrário com ele se identificaria, deixando de ser o ente material, aqui e agora, para tornar-se o ente ideal, não topicamente localizável, infinito e perfeito da essência ontológica, que está na ordem do Ser Supremo. Consequentemente, a perfeição, como termo final, é a ideia exemplar ontológica (e um teólogo poderia dizer teológica, porque está em Deus) jamais identificada senão formalmente com as coisas, e nunca existencialmente.

Ora, tais digressões exigem outros estudos de metafísica, que não caberiam nesta introdução tratar, mas que apontam, pelo menos, possibilidades pensamentais, e supinamente controversas, que exigem grande subtileza de espírito e ideias muito claras para penetrar num terreno, aparentemente fantasioso para o ignorante de tais assuntos.

E para tornar mais simples o que dizemos, bastaria atentássemos para estes pontos: se esta macieira é macieira é por que nela o que, pelo qual, ela é isto e não outra coisa. É através de, ou por algo que ela é uma macieira e não uma pereira. E naquela macieira, ali, que é semelhante a esta, também há nela um pelo qual ela é macieira e não outra coisa, que nela também se repete, como naquela primeira. Há, portanto, em ambas, e em todas as macieiras do mundo, algo pelo qual elas são macieiras e não outra coisa, e esse algo é o que os filósofos chamam forma.

Flor de macieira


Nas macieiras, há uma forma da macieira. Mas essa forma que está nesta, está naquela também. Portanto, essa forma não é algo material, porque o que é material ocupa um lugar e não poderia estar, simultaneamente, em tantos lugares e tão distantes. Essa forma é uma proporcionalidade intrínseca, uma "ratio", uma estrutura que a ordena como tal, e que se repete, em seu número (que não deve ser apenas considerado quantitativamente, o que é maneira bem grosseira de ver os números, mas também qualitativamente, como os viam os pitagóricos). No ser, o que o constitui onticamente repete o número, imita-o, como um triângulo qualquer imita a proporcionalidade intrínseca do triângulo (três ângulos, cuja soma é igual a dois ângulos rectos). Posteriormente, o homem constrói desse esquema imanente nos seres um esquema em sua mente, um esquema abstracto noético, que intencionalmente o repete, com os conteúdos da mente humana, mas que imitam o que há fundamentalmente na coisa. Temos, assim, um esquema concreto, na coisa (in re) e um esquema abstracto noético, o conceito, em nós, após a experiência, após o acto de abstracção realizado pelo nosso espírito, que separa da coisa esse quê, quid, essa quididade, que é formal, e realiza o esquema formalmente (post rem) da coisa.

Mas o que sucedeu naquele ente era um arithmós, dirá o pitagórico, que era possível actualizar-se nele, pois, do contrário, terá vindo do nada. E como não veio do nada, veio do ser. Portanto, já era no ser numa modalidade diferente da que existe aqui e agora, era no ser como algo essencial e não existencializado ainda, estava, portanto, na ordem do ser (ante rem). E nessa ordem é um único, um só, perfeito, imutável, como é perfeito e imutável o triângulo (o autotrigonon, o triângulo-em-si, de Platão) que as coisas repetem. E essa perfeição do triângulo-em-si, que nós matemática e formalmente podemos esboçar, não é materialmente perfeito, nunca.

O triângulo é sempre perfeito como ideal, mas as formas triangulares que se repetem na matéria são sempre escalarmente imperfeitas, e não seria possível realizar um triângulo materialmente perfeito, cuja soma de seus ângulos fosse absolutamente igual a dois ângulos absolutamente rectos. No entanto, poderíamos construir triângulos (é uma possibilidade ao menos) cada vez mais perfeitos, mais próximos dessa perfeição, sem jamais atingi-la.

Com essa sintética explanação, cremos tornar claro o pensamento tanto de Platão como o de Pitágoras, bem como o que pensava Tomás de Aquino, pois aceitava tais formas como ideias exemplares, únicas e perfeitas, que pertenceriam à mente divina, ao Ser Supremo, fonte de todos os seres finitos.

Não queremos com isso forçar conciliações de pensamento, mas apenas mostrar que o nosso modo de ver os esquemas, encontra também uma positividade no pensamento de grandes figuras da filosofia (in Mário Ferreira dos Santos, Aristóteles e as Mutações, pp. 14-16).




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