quarta-feira, 24 de junho de 2020

«Assim fomos abrindo aqueles mares, que geração alguma não abriu...»

Escrito por Luís de Camões







Luís de Camões (Padrão dos Descobrimentos).



Estas sentenças tais o velho honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As asas ao sereno e sossegado
Vento, e do porto amado nos partimos.
E, como é já no mar costume usado,
A vela desfraldando, o céu ferimos,
Dizendo: Boa viagem! Logo o vento
Nos troncos fez o usado movimento.

Entrava neste tempo o Eterno lume
No animal Nemeio truculento;
E o Mundo, que com tempo se consume,
Na sexta idade andava, enfermo e lento.
Nela vê, como tinha por costume,
Cursos do Sol catorze vezes cento,
Com mais noventa e sete, em que corria,
Quando no mar a armada se estendia.

Já a vista, pouco e pouco, se desterra
Daqueles pátrios montes, que ficavam;
Ficava o caro Tejo e a fresca serra
De Sintra, e nela os olhos se alongavam.
Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam.
E, já depois que toda se escondeu,
Não vimos mais, enfim, que mar e céu.

Assim fomos abrindo aqueles mares,
Que geração alguma não abriu,
As novas Ilhas vendo e os novos ares
Que o generoso Henrique descobriu;
De Mauritânia os montes e lugares,
Terra que Anteu num tempo possuiu,
Deixando à mão esquerda, que à direita
Não há certeza doutra, mas suspeita.


Panorama arqueológico de Pafos


Citera ou Kythera no grego.



Localização de Citera na Grécia



Ilha da Madeira



Passámos a grande Ilha da Madeira,
Que do muito arvoredo assim se chama;
Das que nós povoámos a primeira,
Mais célebre por nome que por fama.
Mas, nem por ser do mundo a derradeira,
Se lhe avantajam quantas Vénus ama;
Antes, sendo esta sua, se esquecera
De Cipro, Gnido, Pafos e Citera.

Deixámos de Massília a estéril costa,
Onde seu gado os Azenegues pastam,
Gente que as frescas águas nunca gosta
Nem as ervas do campo bem lhe abastam;
A terra a nenhum fruto, enfim, disposta,
Onde as aves no ventre o ferro gastam,
Padecendo de tudo extrema inópia,
Que aparta a Barbaria de Etiópia.

Passámos o limite aonde chega
O Sol, que para o Norte os carros guia;
Onde jazem os povos a quem nega
O filho de Clímene a cor do dia.
Aqui gentes estranhas lava e rega
Do negro Sanagá a corrente fria,
Onde o Cabo Arsinário o nome perde,
Chamando-se dos nossos Cabo Verde.

Passadas tendo já as Canárias ilhas,
Que tiveram por nome Fortunadas,
Entrámos, navegando, pelas filhas
Do velho Hespério, Hespéridas chamadas;
Terras por onde novas maravilhas
andaram vendo já nossas armadas.
Ali tomámos porto com bom vento,
Por tomarmos da terra mantimento.

Localização de Cabo Verde









Àquela ilha aportámos que tomou
O nome do guerreiro Santiago,
Santo que os Espanhóis tanto ajudou
A fazerem nos Mouros bravo estrago.
Daqui, tanto que Bóreas nos ventou,
Tornámos a cortar o imenso lago
Do salgado Oceano, e assim deixámos
A terra onde o refresco doce achámos.

Por aqui rodeando a larga parte
De África, que ficava ao Oriente:
A província Jalofo, que reparte
Por diversas nações a negra gente;
A mui grande Mandinga, por cuja arte
Logramos o metal rico e luzente,
Que do curvo Gambeia as águas bebe,
As quais o largo Atlântico recebe;

As Dórcadas passámos, povoadas
Das Irmãs que outro tempo ali viviam,
Que, de vista total sendo privadas,
Todas três dum só olho se serviam.
Tu só, tu, cujas tranças encrespadas
Neptuno lá nas águas acendiam,
Tornada já de todas a mais feia,
De víboras encheste a ardente areia.

Sempre, enfim, para o Austro a aguda proa,
No grandíssimo golfão nos metemos,
Deixando a serra aspérrima Leoa,
Co'o Cabo a quem das palmas nome demos.
O grande rio, onde batendo soa
O mar nas praias notas, que ali temos,
Ficou, co'o Ilha ilustre, que tomou
O nome dum que o lado a Deus tocou.


Curso e bacia hidrográfica do rio Congo ou Zaire



Ali o mui grande reino está de Congo,
Por nós já convertido à fé de Cristo,
Por onde o Zaire passa, claro e longo,
Rio pelos antigos nunca visto.
Por este largo mar, enfim, me alongo
Do conhecido Pólo de Calisto,
Tendo o término ardente já passado
Onde o meio do Mundo é limitado.

Já descoberto tínhamos diante,
Lá no novo Hemisfério, nova estrela,
Não vista de outra gente, que, ignorante,
Alguns tempos esteve incerta dela.
Vimos a parte menos rutilante
E, por falta de estrelas, menos bela,
Do Pólo fixo, onde inda se não sabe
Que outra terra comece ou mar acabe.

Assim, passando aquelas regiões
Por onde duas vezes passa Apolo,
Dois Invernos fazendo e dois Verões, 
Enquanto corre dum ao outro Pólo.
Por calmas, por tormentas e opressões,
Que sempre faz no mar o irado Eolo,
Vimos as Ursas, a pesar de Juno,
Banharem-se nas águas de Neptuno.

Os Lusíadas (Canto V)





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