quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Dois humanismos – duas liberdades

Escrito por Leonardo Coimbra

 

«Nada mais objectivo que a ciência moderna, diz-se.

Se objectivo é coincidência da representação com o objecto, pode dizer-se com muitas restrições ainda; mas se objectivo é acordo de todo o saber com toda a realidade, nada menos objectivo que a ciência.»

Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).


«Se (...) a doutrina das categorias perdura na filosofia moderna, temos de reconhecer que tal perduração pouco ou nada tem a ver, em rigor, com o pensamento categorial. Ainda admitiríamos que representasse uma involuntária homenagem à filosofia clássica se ela não se explicasse pela desesperada verificação de que as ciências modernas não possuem fundamento, nem razão de si, nem finalidade positiva. E desde o seu já remoto início, a filosofia que lhes deu origem sofre essa desesperada verificação. O que as caracteriza é a recusa do real como uma totalidade incindível, dividindo-o em tantos sectores quantas as ciências que de cada um deles fazem seu objecto. Ora as categorias residem no ponto de encontro de todo o real com todo o pensamento, entendendo por todo o real que nada é real se não o implicar, e por todo o pensamento que nada é pensamento se não o implicar. O que a filosofia moderna pretendeu foi que cada ciência e respectivo sector da realidade sejam o que são sem implicarem a totalidade do pensamento e do real e, apesar disso, lhes correspondam suas próprias e exclusivas categorias. Pretendeu escapar à primeira conclusão extraída da necessidade das categorias que há pouco enunciámos: a de que não há predicados exclusivos de um único ser ou coisa. O derradeiro filósofo moderno, M. Heidegger, ainda defendeu esta pretensão. Disse ele: “As ciências particulares estudam diversos campos objectivos (...). Em nosso entender, reconhece-se que cada um destes campos objectivos pertence a determinados sectores da realidade. A estes correspondem, segundo a sua objectividade, uma estrutura e uma constituição determinadas. Vemo-nos assim perante uma tarefa que geralmente se designa pelo nome de doutrina das categorias” (M. Heidegger, “Traité des Catégories et de la Signification chez Duns Scott”, trad. Francesa, ed. Gallimard, Paris, 1970, p. 42).

Mais adiante, percorrida a descrição desta tarefa, Heidegger conclui: “Uma conclusão necessária nos parece: as dez categorias aristotélicas e uma doutrina que nelas se fundamente, revelam-se, não só incompletas, mas também hesitantes nas suas determinações e inexactas porque lhes escapa a consciência de uma distinção entre os sectores da realidade”.

Esta tarefa de encontrar categorias próprias de cada ciência, e só dela, que Heidegger faz remontar a Duns Escoto, no início da filosofia moderna, não tem lugar na filosofia clássica. O que não significa que, aí, as ciências que dela derivaram, ou tal como dela derivaram, se não distingam entre si. Distinguem-se, sem dúvida, mas mantendo-se em cada uma, incindível, a totalidade do real, pois todas estão igualmente suspensas da categorias lógicas, lugares de encontro de todo o real e todo o pensamento. E quando, na filosofia clássica, se fala das categorias próprias de cada ciência, do que se fala é das modalidades das categorias lógicas que convêm ao distinto conhecimento e à distinta manifestação da totalidade do real próprios de cada ciência. É o caso da ciência económica. Suas categorias dizemos serem a propriedade, o mercado e o dinheiro. Não figuram elas entre as dez categorias lógicas mas são modalidades de três dessas categorias: a propriedade é um modo da substância, o mercado um modo da acção, o dinheiro um modo da relação 

Orlando Vitorino («Exaltação da Filosofia Derrotada»).

 


«A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre é o mais significativo dos escritos extensos do período da transmutação. Obra vária e por vezes complexa, não é sempre fácil seguir através dela o essencial pensamento. A primeira parte é, especulativamente, do mais alto interesse; consiste a segunda numa aplicação e comentário da primeira.

“A tragédia do homem – começa o autor – está na ignorância de si e do Universo em que vive, ou antes, convive. A sua vida é uma relação, antes, um sistema de relações com esse Universo. A felicidade seria o acordo e a harmonia dessas relações, de modo que ao crescimento do homem em conhecimento e amor correspondesse o alargamento totalizante dessas relações e o seu aprofundamento significativo.”

Todas as formas de pensamento pelas quais o homem pretende conhecer-se e estabelecer ligações com o Universo, podem receber a designação de “humanismo”, visto que, antes de alguma coisa exprimirem, exprimem ao próprio homem e à sua situação cósmica e religiosa. O autor classifica as várias formas de humanismo sob as seguintes designações: humanismo idealista; humanismo cristão, humanismo antropolátrico, humanismo exaustivo.

O primeiro, que com Platão e Aristóteles precede o humanismo cristão, é apresentado no seu alto valor especulativo, mas também nos seus limites para a redenção eficaz e total. O humanismo antropolátrico e o humanismo exaustivo são apresentados, respectivamente, como consequência do cristianismo e como sua degenerescência.

O humanismo exaustivo é o último estádio do antropolátrico, estádio que o homem europeu está actualmente atingindo. Nele se encontram ténues e quase obliteradas as relações entre Deus e o homem e, consequentemente, entre o homem e a autêntica natureza. Já o filósofo não vê nesta, como via na forma anterior, o homem em suas profundas relações, deificando-se a si mesmo e aos seus mais altos atributos, mas exaurindo suas relações cósmicas e religiosas, deificando a mais extrínseca forma do seu ser, da sua acção e das suas obras. “Este humanismo de conquista, exaustivo de tudo o que não é homem ou humano serviço, é a forma de vontade do cientismo técnico, como o foi do homem essencialmente mágico”.

A segunda parte do livro, mais complexa, apresenta-nos a Rússia contemporânea como extrema e apocalíptica realização do humanismo exaustivo com suas titânicas seduções. Para esta realização se encontrava a Rússia mais predisposta por virtude de uma concepção transcendentalista vaga e pouco eficaz da religião. – O estudo do pensamento e da literatura profética russa vem a seguir como confirmativo da visão anterior. Profundamente atento às implicações metafísicas e religiosas que sempre a política supõe, Leonardo Coimbra mostra como a pequena influência da religião cristã na visão e no conceito de natureza, como também no direito e nas instituições sociais da Rússia, condiciona a dessacratização da natureza e do homem da estepe, sobre os quais, em sua desqualificada nudez, vai agir, com ingenuidade heróica e sombria, a técnica política cujo originário condicionalismo, por um grandioso paradoxo, como já dissera no livro sobre S. Francisco de Assis, Visão Franciscana da Vida, fora ainda o amor cristão.

O autor conclui, mostrando que as minoradas virtudes do homem social e o cientismo técnico jamais poderão constituir substituto eficaz da “caridade, que é o verdadeiro coração da justiça” e que o unanimismo social e a estatolatria jamais poderão constituir um final para o homem.»

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).



«Leonardo Coimbra efectivamente abusa da pontuação, surpreendendo inesperadamente o leitor com a colocação de pontos finais. Muitas da suas frases, que parecem complementares e subordinadas às outras, mais bem ficariam ligadas por outros sinais de pontuação. Esta forçada separação representa, contudo, que a frase que nos parece dividida não foi apreendida em pura iluminação de receptividade interior mas por tentativas, num adejar especulativo, até à formulação completa. A intuição mística, que se atinge pela tripla via, pelo trivial, e que se transforma em ciência pelo quadrivial, ainda estava distante.»

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).

 

Dois humanismos – duas liberdades 

O que é o humanismo?

Não interessa saber o que seja sob o ponto de vista histórico o humanismo, pois isso nada resolveria a não ser que a noção de humanismo assim exposta fosse inequívoca e bem determinada.

Ora, claro está, que a noção genética de humanismo será a referência a uma certa forma de cultura dum certo agrupamento humano.

No nosso caso histórica era a referência à cultura clássica, uma concepção da vida de origem greco-latina.

Ora não só há impossibilidade de fusão real entre o grego e o latino, mas entre as interpretações gregas encontramos marcadas as mais diversas tendências de pensamento. E, sobretudo, a consciência intelectual aparece em vários níveis de aprofundamento, mais ou menos livre e mais ou menos consciente da directriz e essência da sua actividade.

Deixemos, pois, a referência histórica do humanismo para o estudarmos no campo das suas possibilidades como síntese interpretativa da experiência.

O humanismo é uma referência ao homem.

Se o homem é tomado como uma realidade bem definida e, permita-se a expressão, como realidade planificável, não é difícil encontrar no homem o sistema de referência a que terá de obedecer toda a realidade.

Mas, se o homem é ele mesmo contradição e luta, terá de haver uma valorização das suas possibilidades para referir o negativo ao positivo, o menos ao mais, o insignificante ou pouco significativo à significação que caracteriza e é norma.

Ou o homem é o solitário do Universo ou ele é, pela consciência intelectual, moral e religiosa, o próprio centro do Universo, onde passam os fios de luz da sua significação, ondem batem frementes as palpitações cardíacas da vida universal.

Os dois pólos extremos do humanismo: um humanismo de conquista, servindo o Universo escravo à vontade omnipotente do homem; um humanismo de amor, fazendo da consciência humana o lar onde adquirem luminoso verbo as taciturnas ansiedades das coisas e dos seres, lar onde a luz e o calor são a libertação alada, a recordação saudosa do beijo originário da Criação.



Pólos extremos, dinamizando correntes opostas, cujas águas, no entanto, se misturam na experiência humana, que é um turbilhão dos seus choques, separações e reencontros, mais que a pureza das polarizações originárias.

Como exemplos extremos teríamos, dum lado, o mecanismo tecnológico das divagações do purismo bolchevique, de outro lado, o puro cristianismo de certas almas capazes de todo o amor compreensivo, de todo o aprofundamento intelectual da vida e das cousas até à alma que as anima ou à ideia que as informa. 

O humanismo conquistador 

O homem é tudo, o resto nada mais que matéria oferecida à sua ambição e conquista.

(...) Apresentamos os aspectos mais extremistas deste pensamento, que olha o Universo como um curso do Acaso, onde só tem significado a consciência e a vontade do homem.

Este extremismo é, com efeito, a máscara do cientismo contemporâneo, chamando cientismo ao conhecimento exterior da ciência pelo seu conteúdo já constituído ou, menos ainda, pelas maravilhas do seu poder de aplicação.

Como o pensamento científico é, mesmo quando desinteressado, voltado para a acção material, claro está que uma degradação utilitarista deste pensamento, como é o cientismo, será sempre a epopeia do domínio universal do homem.

É a contraposição ocidentalista ao recolhimento de certas formas do negativismo oriental.

O que no orientalizado Schopenhauer é a descoberta da consciência crítica, é, nestes humanistas, a formação da consciência técnica.

A ciência dá ao homem o poder de humanizar o Universo, de insculpir o seu autógrafo no grande Acaso da existência; para Schopenhauer, Kant deu aos homens a consciência crítica capaz de lhes revelar a fantasmagoria que é o Universo dos fenómenos.

Os primeiros modelam o Universo pelas normas do seu querer; os segundos negam em si mesmo esse querer e o Universo, que é um simples fantasma desse querer, apaga-se como no anteparo a imagem a que de repente faltou a luz projectora.

Tese e antítese, expressão do mesmo humanismo absorvente, fazendo do ser um simples comentário, insignificante acompanhamento da autêntica realidade humana: nos técnicos o homem fenómeno, em Schopenhauer o homem numenal; mas sempre o homem e só o homem.

Um incendeia o Universo para nele acender a luz única do humanismo; outro apaga o Universo para adormecer no silêncio dessa noite a solitária consciência do homem.

E a passagem do homem fenómeno para o homem númeno é ainda um simples progresso do humanismo, a simples transposição da consciência espontânea para a consciência crítica.

É ainda o homem o único ser significativo do Universo, unicamente se mudou o sentido do seu esforço: da vigília para o sono, da acção heróica que unifica os plurais pela assimilação conquistadora, para o repouso das conquistas realizadas sem a emergência de novas pluralizações a conquistar.

O homem fenómeno canta a epopeia do trabalho da realização do universal Império do Homem; o homem númeno vê a inutilidade desse trabalho pois o Império é realizado pela objectivação duma Vontade, que se exerceria sem fim e sem destino, só por se exercer.

O primeiro projecta a luz do seu esforço num remoto além e vai-se contente a olhar a esteira do caminho; o segundo engloba caminho, anteparo e projector na mesma realidade, que é a sua consciência negadora da vontade.

Arthur Schopenhauer

Kant tinha guardado a pessoa espiritual da terrificante fusão panteísta nos abismos da matéria; mas Schopenhauer entrega essa mesma pessoa à dissolução universal, de onde apenas poderá salvar-se não um espírito possuindo-se na reflexão unificante da verdade e do amor, mas uma Energia, una, invisível, informe, anterior às suas ilusórias objectivações pluralizantes.

Kant preserva ainda a pessoa moral da sua idolatria cientista, Schopenhauer navega, por ambivalência, em plena idolatria científica, limitando-se a apor um sinal algébrico negativo às valorizações da ciência e à vontade que as anima.

A afirmação muda-se em negação, e, por uma estranha ironia, o filósofo vibra em dialéctica hegeliana no ritmo tese-antítese, mostrando mais uma vez que o ódio também une e que o seu inimigo Hegel apreendeu bem o processo do movimento pendular das opiniões de superfície.

Kant é um filósofo do Espírito, Schopenhauer é um filósofo da Natureza: o pessimismo do primeiro resulta das dificuldades de inserção do Espírito nos fenómenos, pode acabar na heróica afirmação dum reino dos fins; o pessimismo do segundo é o reconhecimento da guerra universal da natureza e acaba no optimismo da dissolução dessa natureza no grande sono do não-querer.

Para um e outro é, no entanto, a ciência um conhecimento certo, um absoluto que vai pesar sobre toda a valorização da realidade.

Para Kant o seu absoluto é meramente formal e fora das suas formas podem ficar outras realidades, como, por exemplo, a da vida espiritual.

Para Schopenhauer reincidindo no cientismo, a crítica de Kant serve para mostrar que o formalismo científico é um puro construtivismo duma actividade mais profunda, que, por intuição, encontramos na vontade.

O cientismo vulgar parte dessa vontade de domínio de que os determinismos científicos são instrumentos de acção.

Essa vontade espalha-se sobre toda a natureza, invade todo o real até à integral humanização.

Para Schopenhauer esses determinismos são malhas ilusórias dum ilusório tecido, que é o fenómeno.

A realidade é, já e de pronto, aquela mesma vontade que parte à conquista; mas aqui a conquista é inglória, porque as terras conquistadas são sonhos, fantasmas da própria ambição conquistadora.

Por isso não interessa a conquista, não vale espalhar a vontade, corporizar os sonhos, pois o Universo é já conquistado, como fantasia da vontade criadora.

Recolhe-se a vontade, viva da ilusão universal, e nada mais fica que o repouso dessa mesma vontade adormecida...

Kant olha o magnífico desenvolvimento da ciência moderna das eminências da física de Newton.

É o problema da existência de tal maravilha que ele se propõe resolver.

Encontra a solução numa separação do real em representado ou representável e incognoscível, ou cousa para nós e cousa em si.

De resto este subjectivismo de representação é um novo aspecto do prolongamento do subjectivismo das qualidades segundas, claramente afirmado por Leonardo da Vinci e já alargado por Berkeley até às qualidades primeiras.


Kant pressupõe, no entanto, na cousa em si articulações oferecidas à presa das formas da representação.

O mundo da ciência é, por este pressuposto, um mundo real.

O universo moral da liberdade, responsabilidade e mérito fica possível pois que a cousa em si pode exceder a cousa para nós e é real pois que, embora o não apreendamos na representação, o apreendemos no imperativo da lei moral.

Fenómeno e númeno, cousa e espírito são em Kant as formas em que se revela a dualidade que a ciência newtoniana implicava: o universo silencioso das cousas inertes, a actividade do espírito que desarticulando os complexos do conhecimento percepcional, atinge e apreende as linhas estruturais daquelas mesmas cousas.

Schopenhauer que não é um homem de ciência sofre o conhecimento científico que lhe expõe um Cosmos incolor e emudecido.

Para este Cosmos desvalorizado encontra Kant um significado dando-o com[o] um produto da Representação.

Mas Schopenhauer, que esquece o pressuposto kantista das articulações da cousa em si oferecendo-se à informação do nosso conhecimento, vê toda a Representação como uma pura fantasmagoria de lendários contos de Fada.

O Universo físico oferecido à vontade conquistadora dos cientistas materialistas aparece a Schopenhauer como inútil fantasia duma produtividade criadora. Mas uma vez desvalorizado este mecânico Universo na inércia surge a voz da actividade produtora desta fantasia uivando a ferocidade da sua fome.

E o espectáculo da inércia muda-se na guerra sem tréguas dos seres vivos devorando-se uns aos outros.

O pessimismo byroniano é agora a visão duma natureza de perpétua guerra, destruição e morte.

A vida, que já em Kant se apresentara como uma complicação da matéria e um prenúncio simbólico da finalidade moral, canta alto as ilíadas da mútua chacina e dos seres, as odisseias das suas insídias e manhosas torpezas.

E a vida reintroduz a realidade, que a ciência apagara na inércia, pois que as aparências deixam de ser puras criações da Representação desinteressada para serem objectivações da cousa em si, que é a Vontade apreendida em nós antes da deformação da representatividade.

Por uma reversão romântica a realidade faz-se movimento, animação e vida.

Mas este movimento é choque de mundos nas órbitas, cruzamento feroz de mandíbulas, sulco sangrento de garra; mas esta vida é guerra de todos contra todos, cego sacrifício do indivíduo ao doloso génio da espécie...

Nem podia deixar de ser, visto que a harmonia do espírito que unifica e a liberdade do amor que une são impossíveis num Universo físico, mera representação duma Vontade sem luz, feita apenas duma insaciável fome de querer.

Em relação às tendências cientistas do humanismo de conquista fez-se o salto da tese à antítese: da inércia patente dum Universo planificado à magia e ocultismo dum pluralismo de seres, digesta membra[1] duma universal Vontade.



Quintus Horatius Flaccus, por Anton von Verner


Tese e antítese, aliás no mesmo plano de puros humanismos de conquista.

Os determinismos da ciência servidos a uma vontade de domínio ou o poder mágico duma vontade absorvente obrigando tudo o que existe às exigências últimas do seu querer de afirmação ou de negação.

A magia e o cientismo são assim dois aspectos da mesma ambição de tudo reduzir ao humano: espalhando a face humana nos longes de todos os mundos, absorvendo a vastidão do ser no seu centro criador, que é a vontade humana.

O cientismo pinta todo o Universo com as cores humanas, o magismo escraviza todas as vontades à vontade do homem.

Quando todas as vontades são apenas múltiplas na sua objectivação pluralizante e em si uma e só vontade, claro é que todas as manifestações da vontade se devem subsumir na direcção da vontade humana, consciente de si e do universal ludíbrio.

O ocultismo é realmente em Schopenhauer tão claramente como em seus cultores de hoje uma expansão da universal vontade do humanismo conquistador.

O espiritismo contemporâneo ocupa um lugar intermédio entre o ocultismo mágico da vontade conquistadora de instrumentação anticientista e a vontade de conquista de instrumentação de mecanicismo cientista.

A teosofia faz apelo a uma ascética naturalista do querer, dinamizando a vontade como uma energia vitalizante. O esforço do pensamento garante-se pela energia fluídica do próprio pensamento, criando elementais, forças-pensamentos, que actuam de fora, com a relativa independência de seres quase autonomizados.

Os sábios orientais, os misteriosos magos do Tibete, dirigem as forças planetárias por meio de correntes de pensamentos e, no Ocidente, qualquer de nós tem recebido cadeias da sorte, geradoras, pela força-pensamento, que acumulam, do bem ou do mal, conforme as apoiamos do nosso bem-querer energético ou lhe subtraímos a energia cortando-lhe o curso da sorte pela recusa da força do nosso concordante pensamento.

O espiritismo, por vezes aliado do ocultismo teosófico, tende, nas correntes científicas que estudam a fenomenologia, para as explicações de humanismo de conquista de moldes cientistas, como já vimos nos sonhos um pouco ridículos dos que seriam amanhã os agentes da Ressurreição pela consolidação das fugazes manifestações ectoplásmicas do medianismo moderno.

"Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, tal é a lei", inscrição traduzida do francês no túmulo de Allan Kardec. Ver aqui


Cemitério de Père-Lachaise, em Paris.



In «DISPERSOS, IV - FILOSOFIA E RELIGIÃO», Editorial VERBO, 1991, pp. 34-41.


[1] Deve ser disjecta membra. Cf. Horácio, Sátiras, I, 4, 42. [Nota do Padre Dias de Magalhães].

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