quinta-feira, 7 de abril de 2011

Sebastião José (iii)

Escrito por J. Lúcio de Azevedo





As extravagâncias de uma corte perdulária concorriam de certo para tornar inevitáveis estes atrasos; mas é licito afirmar, por outra parte, que em geral não presidiu à administração pombalina o critério, nem a justa economia, de que dependem as boas finanças. Podia supor-se que o dinheiro, regateado às dívidas do príncipe, zelosamente se aplicava aos serviços da nação, de sua natureza mais importantes. Longe disso: o tesouro esvaía-se por mil canais em despesas inúteis. Só o custeio das cavalariças reais importava em quantia enorme. Bastará saber-se que, por morte de D. José, os cavalos e muares vendidos foram em número de 2 mil, e ainda restavam 800 para o serviço. O teatro lírico era outro sorvedouro nunca extinto. O célebre castrado Gizielo ganhava 30 mil escudos por ano, e mais 22 mil francos para prato, além de casa e carruagem. O rei, doido por música, não passava sem o seu preferido divertimento quando ia a Salvaterra. Wraxall ouviu que a despesa com a ópera, no paço, importava em 40 000 libras esterlinas cada ano. O embaixador francês Baschi diz que só a sala e o vestuário custavam 250 mil francos por mês. Do que não resta dúvida é que as exibições eram sumptuosas, e nada se poupava para que o espectáculo não fosse somenos ao melhor que no género havia então na Europa. As touradas, outra distracção favorita do soberano, faziam também a carga assaz pesada do orçamento da coroa. O ministro que, para tranquilamente exercer o poder despótico, precisava lisonjear os gostos do amo, assentia em tudo isto. O resto seria pouco para remunerar a clientela de Pombal, para o socorro às indústrias, introduzidas com sacrifício do erário, para a reedificação de Lisboa, ficando sem se lhes acudir outras verbas, das mais urgentes, da pública administração.

O Exército já sabemos em que estado se encontrava por ocasião da guerra com a Espanha. A competência especial do conde de Lippe como organizador; a colaboração de oficiais estrangeiros, alguns deles distintos; a complacência do Governo em os atender, enquanto o perigo durou; a nova disciplina então introduzida, tudo isso contribuiu para elevar material e moralmente o valor da força armada, em um período curto, seguinte à campanha. Mas logo depois, com a ausência de Lippe, que era a vontade motriz, a decadência antiga reapareceu. Dalrymple, que tinha para o informar oficiais seus compatriotas, com isso e o que viu, faz da organização militar portuguesa a mais desvaforável ideia. Em Valença, primeiro lugar onde esteve, havia um regimento de artilharia e outro de infantaria. «Julgo que nunca vi tropas assim», diz ele, no sentido deprimente. Os oficiais viviam descontentes, os soldos eram mesquinhos; não se faziam promoções, de modo que, por exemplo, em um regimento de Viana todos os postos acima de tenente, excluindo o coronel, estavam vagos. Em tais condições a disciplina era frouxa. Os soldados andavam rotos, traziam as armas enferrujadas, o correame sujo e dilacerado. A guarnição do Porto ainda pior. Soldados de sentinela pediam esmola (33). Logo que Lippe se foi embora começaram a faltar os fardamentos e também os recrutas, relata o enviado francês, conde Saint-Priest (34). Em 1773, foi necessário reduzir o efectivo do Exército. A este respeito comunica Lebzeltern: «Esta providência tornou-se indispensável, porquanto o erário não poderá por mais tempo comportar tão avultado gasto com as forças armadas» (35).

Não era mais florescente a situação da Marinha. A administração naval continuava a ser encargo do Provedor dos armazéns de Guiné e Índia e Arsenal de marinha, funcionário vitalício, a quem incumbia a construção, aparelho e armamento de esquadras. Pombal, na sua faina reformadora, não se lembra de eliminar esta entidade anacrónica e inerte. Em 1765, consistia o efectivo em dezoito navios, e esses, dizia Saint-Priest, mal providos de tripulações. No tempo de Dalrymple, segundo colheu, dezassete navios, sendo seis fragatas. Cada ano, refere Saint-Priest, saíam dos estaleiros duas fragatas, mas o desleixo era tal que em pouco tempo apodreciam, de maneira que o total jamais passava de vinte (36). No fim do reinado deviam-se aos operários do arsenal muitos meses de paga. Então compunha-se a armada de doze navios, «a apodrecerem no porto de Lisboa», dizia o marquês de Clermont d'Ambroise, ministro de França. «É lástima», continua o diplomata, «ver em tamanha decadência esta nação, que em um século de ignorância se coibiu de glória, abrindo aos outros povos da Europa caminhos até aí desconhecidos» (37). Tudo isto desenha a situação do País em traços bem diversos daqueles com que a orgulhosa apologia do ministro a representava (38).






No ramo da instrução pública, tão encarecido na forma que Pombal lhe imprimiu, igualmente se manifesta a insuficiência da sua obra, que em uma boa parte falhou. Nem tudo se deve atribuir ao espírito retrógrado da seguinte administração. A reforma obedecera, como sabemos, ao intuito de proclamar a nocividade dos jesuítas, e comprovar que eles, em dois séculos, tinham arruinado a literatura em Portugal. A questão não foi iniciada pelo ministro; já vinha de trás. Promanava da rivalidade entre as confrarias do Oratório e de Loiola, por causa dos discípulos. Verney abrira o tiroteio em 1747, com a publicação do Verdadeiro Método de Estudar. Os jesuítas replicaram, e o prélio veio a disputar-se principalmente em torno da sintaxe latina: de um lado, a nova gramática de António Pereira de Figueiredo, oratoriano; do outro, a velha Arte do padre Manuel Álvares. Daqui se partiu para generalizar que os jesuítas tinham derruído a mentalidade portuguesa, como se outras causas evidentes não houvesse para explicar a decadência material e intelectual da nação. A disparidade entre a causa e o efeito salta aos olhos menos sagazes.

Pombal não podia desprezar a indicação. O primeiro acto, após o atentado de Setembro contra o rei, e fechadas as aulas dos jesuítas, foi proibir o compêndio de Álvares, e mandá-lo substituir pelo de Figueiredo (39). Suprimidas as escolas da Companhia, ficaram em muitas partes as classes menos abastadas sem ensino. Em 1761, havia professores régios somente em Lisboa, Coimbra, Porto e Évora, e no Brasil em Pernambuco. Nas outras povoações, a reorganização do ensino gratuito efectuava-se lentamente. Os mestres particulares estipendiados, a custo viviam. O que se fazia activamente era extirpar tudo quanto provinha dos jesuítas. São típicos os seguintes trechos de um relatório do principal Almeida, director-geral dos estudos, em 1765: «Em Pernes mandei a justiça a casa de um mestre, em mãos de cujos discípulos se achavam os livros de que usavam os denominados jesuítas. Suspendi o mestre e o privei para sempre de ensinar, mandando-lhe queimar à porta todos os ditos livros. Da mesma forma procedi nesta corte na Rua Formosa... Mandei fazer buscas por casa dos livreiros. No Porto, Coimbra e Santarém foram achados muitos dos sobreditos livros, que foram queimados publicamente e os livreiros presos...» (40). Trinta dias de cadeia e multa pecuniária, a estes mercadores culpados de empeçonharem a mocidade com as regras do padre Álvares e a Prosódia de Bento Pereira, outro autor condenado.

A reforma da Universidade fora encarregada à Junta da Providência Literária, para esse fim instituída. Eram nela figuras proeminentes o reitor D. Francisco de Lemos, o bispo de Beja, Cenáculo, e o ajudante de Pombal, José de Seabra. A capacidade deste último, pelo que mostrou no reinado seguinte, devia ser medíocre. Presidia umas vezes o cardeal da Cunha, outras o marquês de Pombal, mas é evidente que o primeiro, mesquinho de inteligência, o segundo sem preparação especial, escasso concurso podiam levar aos trabalhos. A parte técnica pertence aos profissionais; de Seabra e Pombal partiria a inspiração do Compêndio Histórico da Universidade, relatório da comissão, que dilui e amplifica os postulados da Dedução Cronológica, e na crítica não desdiz deste e dos mais escritos antijesuíticos da mesma origem.


Transcorridos alguns anos da queda do ministro, lamentava-se já a decadência da Universidade, atribuindo-se à falta dele a situação. O académico António Ribeiro dos Santos - na frase de Camilo, o mais douto homem do século -, dizia sobre a espécie, em carta a um amigo: «Que havia ele fazer agora, se fez pouco no princípio, se edificou um edifício ruinoso, como havia agora ter-se em pé?... Este ministro apesar de tudo quanto disseram dele os seus panegiristas, não talhou um plano útil, que honrasse a sua nação e o seu século» (41). O mesmo censor mostrava que Pombal, «profundo em algumas partes da administração política, não tinha nem plano, nem sistema no todo; tudo fazia por pedaços e a retalhos, de que depois senão uniam as partes, nem se ajustavam entre si» (42). O juízo evidentemente é exacto, e bem se ajusta, como ao mais, à reforma dos estudos.

Meses passados da queda do ministro, em Setembro de 1777, o reitor da Universidade, D. Francisco de Lemos, fazia ver ao Governo a necessidade de se restaurarem os estudos das humanidades, que se achavam na última decadência (43). O Colégio dos Nobres, tão falado, entrara em caducidade antes da morte de D. José. Com um rendimento de 40 000 cruzados, e os professores pagos pelo Subsídio literário, imposto estabelecido pelo marquês, não tinha meios para sustentar ao menos 50 alunos. «Nos primeiros 10 anos», arguia um dos pedagogos do estabelecimento, «nele se criaram uns 30 fidalgos, dos quais aí estão e fazem vulto os que nele vingaram, e se aproveitaram, mas depois que deu esta primeira camada nunca mais medrou nem luziu» (44). Defeito certamente da organização. A falta de unidade no plano meditado pelo ministro para transformar o ensino, permitiu que no reinado seguinte o espírito de reacção contrariasse com vantagem a maior parte do que ele ultimamente dispunha. Vimos o que diziam da Universidade. Menos de um ano depois que o novo Governo principiara, a Mesa Censória, criação de Pombal, composta de apaniguados seus, propunha que os estudos menores se confiassem ao santo zelo e ciência das corporações religiosas, e assim se fez, em consequência do que muitos professores seculares foram dispensados (45).

Não se compadecia com o espírito de progresso, que o estadista pretendera inculcar à Universidade, a existência de peias, que tinham por objecto conservar a nação um viveiro de eunucos intelectuais. O sistema de reformas de retalhos, que Ribeiro dos Santos reprovara, vinha a dar nisso. Pombal só fizera a menção de libertar as inteligências por agravo dos jesuítas. O seu espírito estava longe, muito longe das ideias que naquele tempo agitavam a Europa. Com aprazimento seu, a Mesa Censória proscrevia os filósofos, Spinoza, Hobbes, La Mettrie, Voltaire, Diderot e quantos outros! simultaneamente com as produções de fantasia literária, a Nova Heloisa, de Rousseau, os Contos, de Lafontaine, e o licencioso Sophá, de Crébillon; tudo em fim que na vida mental do século XVIII representava o arrojo, o saber, o requinte e a graça. Locke podiam-no ler somente aqueles a quem a Mesa facultasse especial licença, e cujo espírito, reconhecidamente calmo, não corresse o risco de se perder na trama das concepções ousadas do escocês. Como estes muitos mais (46).



Voltaire



Define a situação o dizer-se que, em 1776, não foi permitido divulgar-se a tradução de um Elogio de Descartes, porque - diziam os censores - não estava o povo português ainda acostumado a ver na sua língua escritos que afervoravam «o espírito da dúvida, do exame, da independência e da liberdade». Aos vendedores de livros defesos, as leis impunham, além do confisco, seis meses de cadeia, e em caso de reincidência dez anos de degredo para Angola (47). Mas até nesta parte o propósito que se tinha em vista falhou. Condenar os livros era apontá-los à curiosidade ardente dos espíritos, sequiosos de ideias novas, aculeados pelo atractivo do risco e da proibição. Todavia, só quando o ciclone das guerras napoleónicas, varrendo a Europa, chegou até nós, as inteligências puderam cabalmente emancipar-se da tutela dos censores e da Inquisição.

Entretanto, aproximava-se a hora em que o ministro, saciado dos gozos da ambição e do poder, ia conhecer os travos do infortúnio, menos ásperos todavia do que ele os fizera sentir a outros, que repelira como incómodos ou suplantara como rivais. A apoplexia espreitava a D. José e, após vários assaltos, a 12 de Novembro de 1776, prostou-o de vez. (...)

Com a desaparição do monarca, e a certeza do desfavor em que o potentado da véspera, agora sem amparo caía, o rancor, por tantos anos contido, o apetite de vingança, rompia em clamores de ameaça, em vozes de desprezo, em chufas cruéis. As prisões abriam-se para trazerem à vida comum centenas de pessoas, cuja lembrança no decurso dos anos se apagara, e que, para muitos como ressuscitados, vinham contar as tristezas do seu encerro, a brutalidade dos carcereiros e a lenta agonia dos que, sem conforto, quase à míngua, nas lôbregas enxovias, a morte havia libertado. No paço bradavam os fidalgos da facção de D. Pedro, os amigos e próximos daqueles que, por desejarem o casamento dele tinham pago com duros encarceramentos a audácia de tais votos. Nas ruas o povo, pela primeira vez em tantos anos, podia vociferar as suas queixas sem temor da repressão. Carvalho de escuta aos ecos, que de fora lhe levavam os rumores das maldições em cada hora sentia no peito um golpe, semelhável ao que em Belém rompera as arcas do duque de Aveiro. No primeiro de Março renovou o pedido de exoneração dos empregos, e manifestou o propósito de se ausentar de Lisboa. Comparava-se a Sully na desgraça, e dava a entender, na fingida modéstia, igualá-lo nos méritos. A narrativa que fazia da situação do ministro de Henrique IV no desfavor era alegoria da sua própria. Desta vez foi-lhe a suplica deferida. Houvera o pensamento de despedir o velho ministro sem formalidades, como um servo incapaz ou infiel, mas prevaleceu o parecer, mais decoroso, de se lhe aceitar a demissão como pedida. O decreto é de 4 de Março. Conserva-lhe os honorários de secretário de Estado, e faz-lhe mercê de uma comenda com seus rendimentos. Mas nem uma palavra de apreço ou reconhecimento de tantos serviços! A minuta que Pombal oferecera, e que certamente havia de os rememorar enfaticamente, fora rejeitada. A estima do soberano falecido, pelo ministro, era a só recomendação alegada.






Para o público, que esperava algum áspero procedimento foi uma decepção. Entretanto, ninguém se iludiu com o significado. Se, à primeira vista, a dispensa dos cargos a pedido, com a mercê pecuniária, podia tornar-se por tácita aprovação do passado, soube-se logo também que o marquês fora posto de sobreaviso para responder por seus actos qualquer dia, logo que as acusações, vagamente formuladas, tomassem fundamento jurídico. (...)

Fora não acalmava a tormenta, pelo que Lebzeltern comunicava: «De dia para dia crescem os meus receios pela sorte do marquês de Pombal. A nação cada vez mais se regozija da sua queda. Excitada pela narrativas dos que saem dos cárceres, referindo os cruéis tratamentos recebidos, incessantemente trazem aos pés queixas e acusações contra ele, de modo que a constância dos novos ministros em o defenderem, e a piedade e doçura da rainha dificilmente lograrão poupá-lo a um destino trágico» (54). Contaram-se os presos políticos: excediam de 800, e faltavam muitos, dizia-se que três vezes esse número, falecidos nos longos cativeiros. Com os que saíam dos calabouços da Junqueira e de São Julião apareciam também outros das presigangas no Tejo, junto ao Barreiro. Era, dizia o ministro de Espanha, marquês de Almodôvar, una especie de ressucción de muertos. A voz pública, consoante à regra, exagerava ainda. Dizia-se existirem cárceres subterrâneos, nas arcadas da Praça do Comércio, nas ruínas da Patriarcal. Notícias de boca, pasquins e sátiras escritas propagavam verdades e mentiras, alimentavam nos ânimos a indignação e o desejo de vindicta.

Em Abril arrancou-se do pedestal da estátua de D. José o busto do ministro. A sindicância nas secretarias de Estado ia-se realizando. Logo se deu por falta de quantidade de documentos públicos, muitos dos quais se dizia estarem entre os papéis particulares do ministro. Senhor absoluto da administração, fazia em sua casa o verdadeiro arquivo do reino. Faltavam os processos do Conselho de Estado relativos aos infantes de Palhavã e a tantos fidalgos encarcerados - talvez nunca se escrevessem -; o dos Távoras e duque de Aveiro, guardados por ele em lugar secreto, alegava, com medo que dele se apossassem os jesuítas. Outros importantes documentos, reservados de publicação por conveniências do Estado, confessava guardar enquanto vivo, como sendo «as últimas armas puramente defensivas para reparar os golpes de seus gratuitos e já perdoados inimigos» (55).

O exame à fazenda pública demonstrou achar-se ela em condições deploráveis. Os que ainda defendiam a administração de Pombal - Jacome Ratton registou a asserção (56) - diziam ter ele deixado em cofre 78 milhões de cruzados em moeda, além de muitos milhões em diamantes. Verificou-se existirem 1740 contos, pouco mais de 4 milhões, e uns 5 a 6 milhões em diamantes (57).

O rei falecera devedor insolvente. Dos seis artigos que formam as recomendações finais à filha, que vai ser rainha, um refere-se a esse molesto assunto que o pungia. Dolorosa cena! O senhor absoluto de uma opulenta monarquia, dono das riquezas do Brasil, experimenta, na hora extrema, as angústias do remisso pagador, a quem chega da antecâmara o murmúrio dos credores importunos. Pagar a todos: mas como? Com esse problema se achou logo a braços o novo Governo. No paço, a certos criados deviam-se 14 anos de salários. Determinou a rainha que se lhes desse tudo imediatamente. Fizeram-se economias. Lebzeltern dá notícias destes esforços: «Para solver os débitos tem-se vendido enorme quantidade de cavalos e muares, e também carruagens. Suprimiram-se as touradas, passando-se a vender as rezes, que todos os anos se reservavam para este espectáculo, tão querido do rei. Cuida-se igualmente de acabar com as touradas e representações teatrais. Tudo isto produzirá uma economia anual de dois milhões de cruzados» (58). De 3 mil operários, que trabalhavam no arsenal, despediram-se 4 quintas partes, ficando apenas 600. Esta gente nada recebera nos últimos 2 anos. O Governo resolveu pagar-lhes logo a dívida de 6 meses, e o restante em prestações trimestrais de igual soma.




D. Maria I



Tudo isto, vindo a público, aumentava as iras contra o regime anterior. A viradeira, como se apelidou a reacção contra Pombal, chegou então ao auge. Todos os que no tempo do poderio adulavam o déspota, cobriram-no agora de baldões. Poetastros da ínfima classe, trovadores das alfurjas, bufarinhavam versos satíricos. O número destes é imenso; chega para volumes.

Os vates que, na inauguração da estátua, em loas de asquerosas bajulações, erguiam às nuvens o ministro omnipotente, herói do dia, babujavam agora:


Patrícios meus, clamai sobre o tirano,
Saiba o mundo que foi o tal marquês
Ladrão, traidor, cruel e desumano.


Ou então:

Morreu el-rei é certo
Vos hão-de pregar a peça;
O povo todo começa
A queixar-se do passado
E não fica sossegado
Senão com a vossa cabeça.

O ódio popular, destilado nas cantigas afrontosas, estendia-se à família, aos adictos de Pombal:


Do baboso da Redinha
De um mau pai filho infiel.
..............................................
Libera nos, domine!

Do reverendo Mendonça.
Bernardo em procedimento
...............................................
Libera nos, domine!

Do reverendo Mansilha,
Que foi grande provador
Do livor que tudo é
Libera nos, domine!


Sobre alguns destes já tinham recaído sanções: o abade de Alcobaça, parente do ministro, Madalena de Mendonça, irmã dele, prioreza de um mosteiro, depostos das suas dignidades; frei João de Mansilha, procurador da Companhia dos Vinhos, amigo muito do peito, encarcerado no Convento de São Domingos, por determinação do núncio.

Certos de que já não havia represálias a temer, nem tergiversações da justiça, apareciam os que contra o ditador tinham direitos a reivindicar. Começavam as demandas. «O marquês», refere o medianamente informado Lebzeltern, «de nenhum modo quer pleitos, e conciliatoriamente vai restituindo aos antigos donos as propriedades, que abaixo do justo preço havia comprado» (59). A principiar pelo fisco. No mês de Julho pediam-lhe as décimas atrasadas. Pina Manique, o futuro intendente de polícia, que acumulava o cargo de juiz, com os de superintendente dos contrabandos e contador da fazenda, intervinha para que o dízimo do peixe de Paço de Arcos, uma das melhores prebendas do marquês, lhe fosse tirada, revertendo à casa de Bragança, que em outro tempo a fruíra. Os particulares vinham juntamente. Um reclamava-lhe o preço do Pinhal da Queimada que, segundo a escritura de compra, não fora pago no acto; outro o de um casal, trocado por um padrão de juros, que o ministro se esquecera de entregar (60). De toda a parte apareciam credores, que no tempo das grandezas jamais ousariam declarar-se, e até por mercê tomariam a negligência do devedor.

À saída de Belém deixara Carvalho ao Conde de Oeiras uma relação de dívidas, que devia ir satisfazendo à proporção dos recursos; dívidas por obras nas propriedades de Lisboa e dinheiro emprestado por diversos, algumas quantias sem juros, cerca de 45 contos ao todo (60). Mas depois apareceram muitos mais. Ainda em 1781 um tal João Collings, negociante inglês, lhe reclamava o pagamento de duas pipas de vinho do Porto, fornecidas para Londres, em 1740, no tempo da sua embaixada (61).

Palácio do Conde Oeiras


Ao mesmo tempo, os devedores, perdido o temor antigo das sumárias execuções, ou pior, que o capricho do credor poderia impor-lhes, cobravam ânimo, para, sob todos os pretextos, esquivarem o pagamento. Do decrépito leão todos agora zombavam. O desterrado lamentava-se: «Tenho visto com sobeja clareza que os mesmos que me foram mais obrigados, e me deveram tudo o que hoje possuem, tanto em bens como em honras, procuram depenicar na minha fazenda, desde que viram que lhes não podia frutificar a minha protecção» (63). A viúva de Hermano Braamcamp, cônsul da Holanda, muito protegido de Pombal, que o favorecera com o contrato dos diamantes, exigia-lhe certo pagamento, de pouca monta, a que o ministro por conta de outrem se obrigara. Este glosava o caso assim: «Se fosse capaz de me arrepender do bem que fiz aos ingratos, acharia mais um grande estímulo para me pesar de haver posto a família dos Braamcamp no estado de nobreza e de estimação em que os pus, com os meus bons ofícios» (64). E assim uns e outros acudiam a lembrar-lhe que, para com os grandes, na desgraça, perde a gratidão humana os seus direitos (ob. cit., pp. 272-276; 278-279; 282-285).



Notas:

(33) Voyage, cit., 165. 175.

(34) Quand. Elem., VII, 205.

(35) Duhr, Pombal, 46.

(36) Quand. Elm., VII, 185.

(37) Idem, id. 45..

(38) Latino Coelho, que não é suspeito da desafeição a Pombal, escreve: «Todos os testemunhos são conformes em atestar que nos últimos anos do reinado de D. José o Exército havia quase retrocedido ao estado em que jazera em tempos do seu predecessor» (Hist. Política e Militar, III, 85). E em outra parte: «O Marquês de Pombal era por índole e sistema pouco propenso aos assuntos militares. Não admira pois que, apesar da sua inflexível hombridade em zelar a honra nacional, não elevasse a Marinha portuguesa ao grau de força e perfeição, que poderia esperar-se do seu longo e ousado ministério» (Idem, II, 352).

(39) Decreto de 28 de Junho de 1759.

(40) Teófilo Braga, História da Universidade de Coimbra, III, 359.

(41) Teófilo Braga, História da Universidade, III, 571.

(42) Idem, 570.

(43) Idem, 591.

(44) Repres. do professor Sousa Farinha ao príncipe regente, História da Universidade, III, 353.

(45) Mem. do pofessor Santos Marrocos, História da Universidade, III, 592.

(46) Veja-se na História da Universidade, III, 60 e seg.., a relação das obras proibidas pelo edital de 24 de Setembro de 1770.

(47) Teófilo Braga, História da Universidade, III, 49, São dignos de ler-se os pareceres da censura, transcritos na p. 65 e seguintes do mesmo volume.



Teófilo Braga, por Columbano Bordalo Pinheiro




(48) Rel. de 24 de Novembro a 13 de Dezembro de 1776, Duhr, 170.

(49) Relação compendiosa do que se tem passado e vai passando na enfermidade de el-rei meu senhor, Colecção Pombalina, Cod 695.

(50) Declaração entregue por Martinho de Melo ao marquês de Pombal, 4 de Março de 1777.

(51) 4 de Março de 1777, Duhr, Pombal, 174.

(52) Carta ao morgado de Oliveira, 5 de Maio de 1777, Zeferino Brandão, O Marquês de Pombal, p. 63.

(53) 19 de Março de 1777. Esta e outras cartas de que se fazem extractos sem menção de procedência, na Colecção Pombalina, Cod. 713 e 714.

(54) 8 de Abril de 1777, Dhr, Pombal, 176.

(55) Segunda apologia, «Introdução ad perpetuam rei memoriam», Colecção Pombalina, cod. 695.

(56) Recordações, p. 186.

(57) Deixando o poder, Pombal entregou à rainha vários relatórios justificando a sua administração. O que respeita à fazenda tem o título seguinte: Terceiro Compêndio que tive a honra de levar aos pés da Rainha Minha Senhora, com o fim de aliviar o cuidado, que entendi lhe devia estar causando a consideração de haver ficado inteiramente exausto de meios do seu real erário. [segue-se o inventário que pela sua extensão não reproduzimos aqui].

(58) 17 de Maio de 1777 Duhr, 48.

(59) 7 de Setembro de 1777, Duhr, 177.

(60) Carta de 15 de Julho de 1777.

(61) Cartas e outras obras selectas do marquês de Pombal, V, 65.

(62) Carta na Colecção Pombalina, Cod. 706.

(63) Idem ao conde de Oeiras de 31 de Julho de 1777.

(64) Idem ao mesmo, de 6 de Outubro de 1777.


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