domingo, 27 de março de 2011

O mito da Atlântida

Escrito por Platão





Estátua de Poseidon 
















Sócrates - (...) se, por exemplo, alguém vir animais belos, quer pintados quer realmente vivos, mas em repouso, é tomado pelo desejo de os ver em movimento, esforçando-se em alguns desses combates que parecem convir aos seus corpos; pois o mesmo sinto eu relativamente à cidade que descrevemos. Com efeito, ouviria com prazer quem me relatasse que os esforços em que a cidade se envolve são combates que trava contra outras cidades; que se distingue ao partir para a guerra e, na guerra, manifesta as qualidades que adquiriu por via da educação e da instrução, seja nas operações militares, seja nas conversas e negociações com cada uma das cidades. Porém, quanto a estas coisas, ó Crítias e Hermócrates, conheço-me e sei que nunca serei capaz de elogiar suficientemente estes homens e esta cidade. No que me diz respeito, isso nada tem de espantoso; mas formei a mesma opinião acerca dos poetas, quer os do passado, quer os de agora; não é que despreze, seja de que maneira for, o género dos poetas, mas é claro para todos que a classe dos imitadores imitará com mais facilidade e maior excelência aquelas coisas no seio das quais foi instruída; e que aquilo que é exterior à instrução de cada um se tornará difícil de imitar adequadamente através das acções, e ainda mais difícil de imitar através das palavras. Já quanto ao género dos sofistas, embora pense que são muito experientes nos discursos e noutras coisas belas, receio que, errando de cidade em cidade, nunca dispondo de domicílio próprio, deixem escapar por completo aquilo que possam fazer e dizer os homens versados em filosofia ou em política, e tudo quanto estes realizam, quer na guerra, quer nos combates, relacionando-se uns com os outros por meio de actos e de discursos. Resta então o género dos que têm as vossas faculdades, que participa, por natureza e por instrução, em ambas, a filosofia e a política. A Timeu, aqui presente, que pertence à mais bem governada das cidades de Itália, Lócrida, e não fica atrás de nenhum dos seus habitantes, seja em fortuna ou em nascimento, foram confiados os mais elevados cargos e as maiores honras da cidade e, pelo menos em minha opinião, ascendeu aos cumes de todos os ramos da filosofia. Quanto a Crítias, todos os que aqui nos encontramos sabemos que não é ignorante em nenhuma das coisas que temos estado a discutir. No que diz respeito a Hermócrates, temos de confiar nos diversos testemunhos que afirmam que é competente para todas estas coisas, seja por natureza, seja por instrução. Foi por isso que ontem, considerando estes factores, e tendo-me vós pedido que discorresse acerca da constituição das cidades, acedi com todo o gosto a satisfazer-vos, sabendo que ninguém para além de vós, se o quisésseis, seria capaz de apresentar a sequência do argumento - de facto, tendo envolvido a cidade numa guerra conveniente, sois actualmente os únicos capazes de lhe proporcionar todas as coisas que pertencem a essa guerra. Tendo, pois, discorrido acerca das coisas que me foram atribuídas, compete-vos a vós tratar daquelas a que agora me refiro. Acordastes, depois de terdes discutido uns com os outros, conceder-me hoje a hospitalidade dos argumentos; pois aqui estou eu, preparado para eles, e ansioso por aquilo que vai ser-me oferecido.







Hermócrates - E com certeza, ó Sócrates, que, conforme disse aqui o Timeu, nem nos faltará a boa vontade, nem nos furtaremos ao compromisso. De tal maneira que ontem, logo que saímos daqui e chegámos a casa de Crítias, ao quarto que ele reserva aos hóspedes, e ainda antes, pelo caminho, reflectimos sobre estas coisas. Aqui o Crítias fez-nos um discurso que tem origem numa tradição antiga; repete-o agora, ó Crítias, aqui a Sócrates, a fim de que ele examine connosco se é apropriado ou inapropriado à injunção anterior.

Crítias - Assim farei certamente, se Timeu, o nosso terceiro conviva, estiver de acordo.

Timeu - Estou de acordo, sim.

Crítias - Ouve então, ó Sócrates, um discurso que, sendo muito bizarro, é totalmente verdadeiro, como afirmou certa vez Sólon, o mais sábio dos Sete Sábios. Sólon era parente e grande amigo do meu bisavô Drópides, como ele próprio declara muitas vezes nos seus poemas. Ele contou ao meu avô Crítias - e o ancião, por sua vez, contou-no-lo de memória - que no passado esta cidade realizou grandes e espantosas obras, que o tempo e o desaparecimento dos homens tornaram invisíveis. E havia uma que era a maior de todas. Talvez fosse conveniente recordarmo-nos dela agora, para te dar darmos graças, e simultaneamente louvarmos a deusa com justiça e com verdade na sua festa, como se lhe cantássemos um hino.

Sócrates - Falaste bem. Mas que obra é essa que Crítias refere, de que já ninguém fala, mas que terá sido efectivamente realizada por esta cidade na antiguidade, segundo aquilo que ouviu dizer a Sólon?

Timeu - Vou então expor-vo-la; trata-se de uma história antiga, que ouvi a um homem que não era novo. De facto, nessa altura, Crítias afirmava ter já perto de noventa anos, e eu teria no máximo dez. Encontrámo-nos por acaso no dia de Cureotis da Festa das Apatúrias [festa das Panateneias, celebrada em honra da deusa Atena]. A cerimónia que habitualmente tinha lugar durante a festa e se destinava a nós, as crianças, teve lugar como das outras vezes. Os nossos pais organizaram concursos de recitação de poemas. Foram declamados muitos poemas de muitos poetas e, sendo os poemas de Sólon uma novidade naquele tempo, muitos de nós cantámo-los. Então, alguém da nossa fratria, fosse por ter essa opinião, ou por um certo desejo de agradar a Crítias, declarou considerar que, para além de ser o mais sábio nas restantes coisas, Sólon era também, pela sua poesia, o mais liberal [homem livre] de todos os poetas. Então, o ancião - lembro-me muito bem - ficou completamente encantado e disse a sorrir:

- De facto, ó Aminandro, se ele não tivesse feito da poesia um passatempo, mas se tivesse aplicado como fizeram outros, e tivesse terminado o relato que trouxe do Egipto para cá, e se não tivesse sido forçado a negligenciar por completo a poesia da cidade aquando do seu regresso, sou de opinião de que nem Hesíodo nem Homero nem outro qualquer poeta teriam gozado maior reputação do que ele.




- E que relato era esse, Crítias? - perguntou Aminandro.

- Tratava ele - respondeu - do maior, do mais célebre e do mais digno de todos os empreendimentos em que esta cidade jamais se envolveu; porém, o tempo e o desaparecimento daqueles que o produziram impediram que esse relato chegasse até nós.

- Conta-nos desde o princípio - disse Aminandro - o que contava Sólon, e a quem ouviu esse relato como verdadeiro.

- Há no Egipto - disse ele -, no Delta, junto à extremidade onde a corrente do Nilo se divide em dois, uma província chamada Saítica, e a principal cidade desta província - de onde era natural o rei Amásis - tem o nome de Sais. De acordo com os seus habitantes, a fundadora da cidade foi uma deusa, cujo nome em Egípcio é Nêith, sendo Atena o seu nome grego, de acordo com os mesmos habitantes. Estes são muito amigos dos Atenienses e afirmam ser, de certa maneira, seus parentes. Ora, Sólon relatava que, tendo sido conduzido a essa cidade, foi muito apreciado por eles; e que, questionando os sacerdotes mais versados acerca das coisas antigas, descobriu que nem ele próprio, nem nenhum outro Grego, sabia quase nada, por assim dizer, acerca destas coisas. Certa vez, querendo levá-los a falar das coisas antigas, empreendeu falar-lhes das coisas mais antigas desta cidade, de Foroneu, de quem dizem ser o primeiro homem, e de Níobe, e narrou-lhes o mito de Deucalião e de Pirra, da forma como passaram pelo dilúvio e da geneologia dos seus descendentes; e, evocando o número de anos a que remontavam os acontecimentos referidos, esforçou-se por calcular os respectivos tempos. E um dos sacerdotes, que era muito velho, disse-lhe:

- Sólon, Sólon, vós, os Gregos, sois sempre crianças; um Grego não pode ser velho.

Ao ouvir isto, ele perguntou:

- O que queres dizer com isso?

- Sois todos jovens na alma - disse ele. - De facto, nenhum de vós tem nela opiniões antigas, recebidas por tradição, ou qualquer conhecimento encanecido pelo tempo. E a razão para isso é a seguinte. Os homens têm sido e continuarão a ser destruídos de muitas e variadas maneiras, as mais terríveis das quais se devem, quer ao fogo, quer à àgua, devendo-se as menos importantes a uma miríade de razões diversas. Com efeito, conta-se entre vós que Fáeton, o filho de Hélio, tendo atrelado o carro de seu pai, mas não sendo capaz de o conduzir pelo caminho de seu pai, pegou fogo a tudo o que havia sobre a terra, tendo ele próprio sido fulminado e destruído. Ora, isto é narrado sob a forma de mito, mas a verdade é a seguinte: verifica-se uma variação nos corpos que circulam no céu à volta da terra, produzindo, com longos intervalos de tempo, a destruição do que existe à superfície da terra por um excesso de fogo. E assim, todos quantos habitam nas montanhas e em lugares elevados e locais secos perecem em maior número do que aqueles que habitam junto aos rios e ao mar. Quanto a nós, o Nilo, que já nos salva noutras circunstâncias, também nos salva desta dificuldade, transbordando; mas quando os deuses inundam a terra, purificando-a por meio das águas, salvam-se aqueles que habitam nas montanhas, os vaqueiros e os pastores, mas aqueles que moram nas nossas cidades são arrastados pelos rios para o mar. Neste país, nem então nem em qualquer outro momento, corre a água do alto sobre os campos mas, pelo contrário, toda ela mana naturalmente de baixo. E diz-se que é daí que vem e é essa a razão pela qual são conservadas as mais antigas tradições. A verdade, porém, é que em todos os locais de onde os não afastem um frio excessivo ou um calor ardente, o género dos homens está sempre presente, seja em maior ou em menor número. E assim, tudo o que tiver acontecido, quer entre vós, quer aqui ou em qualquer outro local de que tenhamos ouvido, se for belo ou grandioso ou tiver qualquer outra coisa que o distinga, tudo isso terá sido escrito desde há muito e sido conservado aqui nos nossos templos. Entre vós, porém, e entre os restantes povos, todas as vezes que vos acontece estarem equipados com as letras e todas as coisas de que as cidades têm necessidade, de novo, passados os anos habituais e como se fosse uma doença, caem sobre vós e os outros os fluxos do céu, restando entre vós apenas os iletrados e os ignorantes, de tal maneira que voltais ao princípio, tornando-vos outra vez como que novos, sem nada saberdes, nem do que aconteceu aqui, nem do que se passou entre vós nos tempos primitivos. O certo é que as genealogias que traçaste há pouco, ó Sólon, passando em revista o que ocorreu entre vós, diferem muito pouco de histórias para crianças. Em primeiro lugar, apenas vos recordais de uma inundação da terra, quando tinha havido muitas outras anteriormente; por outro lado, não sabeis que o melhor e mais belo género dos homens nasceu no vosso país, nem que foi dele que nasceste, tu e todos os outros habitantes da vossa cidade, dado que sobreviveu uma pequena semente; e perdestes isto porque, ao longo de muitas gerações, os sobreviventes morreram sem terem registado a sua voz por meio da escrita. Mas houve um tempo, ó Sólon, antes da maior das destruições por meio das águas, em que a cidade que agora é Atenas era a melhor para a guerra, distinguindo-se ainda por ser a mais bem governada em todos os aspectos; diz-se que as obras mais belas foram aí produzidas, bem como as mais belas constituições, de entre todas aquelas de que ouvimos falar debaixo do céu.



Rio Nilo visto do espaço









Ouvindo isto, Sólon afirmava ter ficado maravilhado e, cheio de entusiasmo, ter imediatamente pedido aos sacerdotes que revissem com a maior precisão tudo o que dizia respeito aos cidadãos dos tempos antigos.

Ao que o sacerdote respondeu: - Com certeza que o farei, ó Sólon, quer por ti, quer pela vossa cidade e ainda mais pela deusa, a quem coube em sorte a vossa cidade e esta, as quais instruiu e educou, sendo a vossa a primeira das duas - com uma diferença de mil anos -, e tendo vós recebido a vossa semente de Gaia e de Hefesto, e a nossa a segunda. Afirmam os nossos escritos sagrados que a ordenação desta nossa cidade remonta a oito mil anos. Serão, pois, as leis daqueles cidadãos que viveram há nove mil anos que te explicarei de forma breve e, de entre as obras que realizaram, dir-te-ei qual foi a mais bela; para a exactidão dos pormenores, voltaremos depois atrás com calma, tomando e percorrendo os próprios escritos. Investiga então as suas leis, comparando-as com as desta cidade. De facto, encontrarás actualmente nesta cidade muitos exemplos de leis que existiam entre vós; em primeiro lugar, o género dos sacerdotes separado e posto à parte dos restantes; depois dele, o género dos artesãos, em que cada um exerce a sua profissão isolado, sem se misturar com os outros artesãos, o género dos pastores, o género dos caçadores e o género dos agricultores. Quanto ao nosso género dos guerreiros, viste certamente que permanece separado de todos os géneros; e a lei prescreveu que não se ocupe de nenhuma outra coisa, para além daquilo que diz respeito aos combates; por outro lado, quanto ao tipo de armamento que utilizam, composto por escudos e lanças, que nós fomos os primeiros, de todos os povos da Ásia, a utilizar, foram-nos mostrados pela deusa, da mesma maneira que vós fostes os primeiros a utilizá-los no vosso território. Já no que diz respeito ao pensamento, vês com certeza com que cuidado a lei se ocupou imediatamente dele na nossa cidade, começando pelo que diz respeito ao mundo ordenado, até às coisas da adivinhação e da medicina - que tem em vista a saúde -, partindo dos conhecimentos que são divinos para descobrir as coisas humanas, e fornecendo-nos todas as outras matérias que se seguem a estas. Tais foram, pois, no seu todo, a ordenação e a composição que a deusa estabeleceu, tendo sido vós os primeiros que assim ordenou; escolheu o local onde nascestes, considerando que havia nele um equilíbrio das estações capaz de produzir os homens mais bem dotados de pensamento. E, sendo esta deusa amante da guerra e amante do saber, procurou um local passível de vir a produzir os homens mais semelhantes a ela, e foi esse o primeiro que escolheu e estabeleceu. E é aí que vós habitais, servindo-vos destas leis, e governados por leis ainda melhores, sobrepondo-vos a todos os homens em todos os domínios da excelência, como convém àqueles que foram gerados e educados pelos deuses. Muitas e grandes foram, pois, as obras da vossa cidade, que foram registadas e são admiradas nesta cidade. Más há uma que se sobrepõe a todas pela sua grandeza e excelência. Com efeito, dizem os escritos que, a certa altura, a vossa cidade deteve uma potência insolente que, tendo partido ao ataque do oceano Atlântico, avançava simultaneamente por toda a Europa e pela Ásia. É que, nessa altura, esse oceano podia ser atravessado, porque havia uma ilha diante da passagem a que vós chamais os Pilares de Hércules [estreito de Gibraltar], que era maior do que a Líbia e a Ásia juntas, e a partir da qual os navegadores de então podiam avançar para as outras ilhas, e partindo dessas atravessar para o continente que tinham diante, o qual circunda este verdadeiro mar. Efectivamente, tudo quanto existe no interior desta passagem de que falámos [o mar Mediterrâneo] assemelha-se a um porto de abrigo com uma entrada apertada; mas para além está o oceano, e a terra que o rodeia, a que podemos verdadeiramente chamar, com a maior correcção, um continente. Ora, nesta ilha da Atlântida constituiu-se uma grande e maravilhosa potência de reis, cujo domínio se estendia a toda a ilha, e a muitas outras ilhas, bem como a partes do continente. Já no que diz respeito ao lado de cá da passagem, governavam a Líbia até ao Egipto e a Europa até a Tirrénia [Itália Ocidental]. E esta potência, tendo reunido todas as suas forças num só exército, avançou para o vosso território e o nosso, e para todos os que se encontravam no interior dessa passagem, tentando conquistá-los num único ataque concertado. Foi então, ó Sólon, que a potência da vossa cidade se tornou manifesta a todos os homens, pondo em evidência a vossa excelência e os vossos recursos militares; efectivamente, erguendo-se acima de todas as outras, graças à sua força de alma e às suas artes guerreiras, primeiro conduzindo todos os Gregos, e depois ela própria isolada por necessidade, abandonada pelos restantes, correndo perigos extremos, venceu os invasores e arrebatou o troféu, evitando que aqueles que nunca tinham sido conquistados o fossem então, e libertou benevolentemente todos quantos habitamos no interior dos limites de Héracles. Nos tempos que se seguiram, porém, houve terramotos e inundações excessivas. E aconteceu que, durante um único dia e uma noite terríveis, todo o vosso exército foi devorado de uma só vez pela terra e a própria ilha de Atlântida se afundou no mar e desapareceu. Foi por isso que, actualmente, esse oceano se tornou inexplorável e impossível de atravessar, devido aos espessos lodos de superfície que a ilha depositou ao afundar-se.






Foram estas, ó Sócrates, em resumo, as coisas que disse o velho Crítias, que as tinha ouvido a Sólon. (in Timeu, Instituto Piaget, 2004, pp. 54-62).


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