quarta-feira, 5 de julho de 2023

Vida Conversável

Registo extraído de uma conversa com o Professor Agostinho da Silva



António Quadros e António Telmo


«Quanto ao Agostinho da Silva, não constitui surpresa para mim o que me diz sobre ele. Desempenha perfeitamente o papel de décimo terceiro discípulo de Leonardo Coimbra. No Brasil privei com ele diariamente durante três anos. O Álvaro Ribeiro andava a dizer nos últimos meses da sua vida que Agostinho da Silva era o maior valor da sua geração. E acrescentava: “Que pena ter desperdiçado esse valor e não ter realizado a obra de que era capaz.” Ele sim, Álvaro Ribeiro merece o secreto nome de terceiro discípulo.

(...) No Jornal de Letras, se não estou em erro, Agostinho da Silva deu uma entrevista em que considera os jornalistas superiores de longe (sic) aos filósofos. Ou ele nunca leu Leonardo, Bruno, Marinho, Álvaro ou, se os leu, o seu  maçonismo de contágio veda-lhe saber o que é uma verdadeira manifestação do espírito. “A pedra que se põe de lado” não é a pior pedra mas a melhor. Quem tem sido posto de parte pelos construtores do socialismo é Álvaro Ribeiro. A interpretação que Agostinho da Silva faz do Quarto Evangelho, análoga à alemã do Fausto, pondo no princípio, não o verbo ou o pensamento, mas a acção, pertence já ao passado.»

António Telmo para António Quadros (Carta XXII, Extremoz, 28 de Julho de 1987, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).

 

«(...) o Governo português interessou-se pelo Centro [Brasileiro de Estudos Portugueses] e um dia fui convidado a ir ao Rio para falar com o embaixador. Já não era o mesmo com quem eu tivera um conflito aquando do começo da guerra colonial e que pretendera que eu fosse demitido da Universidade da Bahia. Era outro, um homem completamente diferente, que me transmitia um convite do Governo português para eu ir a Lisboa falar com as autoridades, com o próprio presidente da República.

Vim, como já lhe disse, e fui preso no aeroporto, porque se tinham esquecido de avisar a polícia, pois tudo fora tratado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mas, soltaram-me logo e falei com Franco Nogueira, o ministro dos Estrangeiros, que se pôs imediatamente à disposição para fazer o necessário em Brasília, sem qualquer objecção política e só no final da cerimónia oficial é que me fez uma pergunta de carácter político. Nós já nos conhecíamos e tínhamos amigos comuns do tempo em que Franco Nogueira era da esquerda – nos seus tempos de juventude. Perguntou-me se eu achava que o Brasil aceitaria um plano dele a propor uma comunidade luso-brasileira.

– Não se meta nisso porque o Brasil vai negar – disse-lhe eu . – O Brasil perante Portugal mantém uma atitude de desconfiança e, quando pode, de ataque, porque é muito mais fácil para eles explicarem coisas que ainda não puderam resolver – entende-se muito bem que ainda não tivessem podido resolver, pois, o Brasil é uma tarefa difícil desde 1822 – e que esses males são provocados por eles não terem sido colonizados pelos holandeses ou pelos franceses.

Ora, por exemplo, no caso dos holandeses, foram regimentos de portugueses, pretos e índios que os vieram combater; era já gente brasileira que não estava nada contente com a maneira como o holandês se comportava. Curiosamente, há um livro de Mário Neme – meu amigo já falecido – sobre o domínio do holandês no Brasil. Olhe, sob o ponto de vista social e político de um brasileiro extremamente patriota – falava mesmo à moda de Piracicaba donde era natural, com um sotaque muito cerrado – chega à conclusão de que o regime português, sob todos os pontos de vista humanos, era para os brasileiros, e não se fala dos escravos, um regime muito mais tolerante e aberto do que o dos holandeses. E até talvez para os escravos, pois havia aquela convivência e domesticidade de portugueses e escravos no Brasil que Gilberto Freyre refere e insiste, embora não conte que os negros dos quilombos se tenham revoltado contra o domínio português. Mas os holandeses foram muito mais importantes para o conhecimento científico do Brasil do que os portugueses, pois trouxeram artistas e sábios que fizeram um levantamento do Brasil e das coisas brasileiras como os portugueses não sabiam ainda fazer. Entre esses artistas realce-se um excelente paisagista, Franz Post, cuja documentação pintada sobre o Brasil é muito instrutiva e que está hoje na Holanda, creio que em Haia, onde há um museu com muitas das suas telas sobre motivos brasileiros.


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Eu aconselhei Franco Nogueira que, devido à guerra colonial já ter começado naquela altura, não era conveniente que ele fizesse uma proposta daquelas, mas já que estávamos ali como dois amigos e se ele achasse bem dar-lhe-ia uma ideia que os brasileiros deveriam aceitar e que seria muito útil para Portugal, exactamente por causa do conflito de África. Ou seja, uma comunidade luso-afro-brasileira, com o centro de coordenação em África, de maneira que não fosse uma renovação do imperialismo português, nem um começo do imperialismo brasileiro. O foco central poderia ser em Angola, no planalto, deixando Luanda à borda do mar e subir, tal como se fizera no Brasil em que se deixou a terra baixa e se foi estabelecer a nova capital num planalto com mil metros de altitude. Fizessem a mesma coisa em Angola, e essa nova cidade entraria em correspondência com o Brasil e com Lisboa para se começar a formar uma comunidade luso-afro-brasileira. Franco Nogueira declarou não poder fazer isso, que seria dividir Portugal, pois Angola era uma parte do país. Em face disto não havia mais nada a dizer, agradeci o que se tinha feito e saí.

Com quem conversei ainda um pouco mais foi com Adriano Moreira, dei-me muito bem com ele, tratámos de tudo o que se referia a Brasília e ele fez sempre o possível por ajudar.

Voltei para o trabalho do Centro e devido ao papel especial das cartas, aquela gente da Universidade começou logo a levantar o boato de que eu fora mandado para lá pelo Salazar para tentar uma recolonização do Brasil. Isto era coisa daquela esquerda – eu e muita gente no Brasil chamava-lhe a “esquerda festiva” – que era uma esquerda meio burlesca e sobretudo mal-intencionada, o que não quer dizer que a direita não fosse tão ruim ou até talvez pior em muitas coisas. Apesar desta acusação, isto não teve problema nenhum, pois eu dei-me sempre muito bem com os alunos, com o pessoal administrativo e com o pessoal menor da Universidade, de maneira que estava ali perfeitamente seguro, aquilo não entrava em cabeça nenhuma, a não ser na deles para os seus fins políticos.

Um dia, Adriano Moreira foi ao Brasil chefiando uma delegação portuguesa que ia visitar Brasília. Nessa altura já eu morava mesmo em Brasília, tendo até feito um barracão no mato do cerrado, para ter comigo os rapazes que trouxera da Bahia para fazerem o curso universitário, pois eles não tinham recursos. Eu ganhava o suficiente para eles e para mim e quando era preciso fazer uma despesa extra para comida, os professores meus amigos da Universidade faziam uma subscrição, ajudavam a comprar arroz e feijão, e aquilo lá foi andando e todos se formaram... Eram, hoje já não sei bem, um pouco mais de meia dúzia. Agora, já todos formados, em medicina, biblioteconomia, antropologia, filologia clássica, estão empregados e trabalham nas coisas boas do Brasil. Dei-me sempre muito bem com aquilo, levava uma vida muito simples que Adriano Moreira admirou quando ele levou lá, para uma festa à noite, no mato, os amigos que tinham ido com ele de Lisboa.

– Nenhum estudante português aceitaria morar numa coisa destas – disse-me ele.

– Estes aceitam, mora também aqui um professor, de maneira que eles não têm problema nenhum. Talvez os estudantes portugueses aceitassem se na barraca morassem também os professores. É uma experiência a fazer um dia, quem sabe?

Nessa altura é que Adriano Moreira me levou, sem dizer nada, o colar da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, por ele fundada. Foi uma das suas grandes ideias, posta de parte depois da Revolução de 25 de Abril, absurdamente, pois poderia ter um papel muito interessante no mundo, porque era uma associação de gente de todos os países, interessada em cultura portuguesa. De repente, tornei-me sócio de uma Academia; foi uma coisa pitoresca porque nem da Academia de Platão eu gosto. Acho que ele traiu Sócrates. Pois é. A filosofia é uma provocação. A filosofia deve ser um rosário de dúvidas e não deve ser transformada em certeza e em ensino. Ora, quem começou com a moda foi, realmente, o nosso amigo Platão na Academia, que foi bem castigado no mundo com todas as outras criadas à imagem da dele e que talvez tivesse sido muito melhor que a maior parte das Academias de agora. Em todo o caso, levou a filosofia para o terreno das certezas e do ensino, começando ele assim, com as ideias de aprendiz de tirano, a fazer a República e as Leis. Quando Platão foi a Siracusa, pensava talvez que convenceria Dionísio de Siracusa a executar os seus pensamentos, mas, provavelmente, Dionísio achou que ele no fundo era um ingénuo que lhe atrapalharia a ditadura e tratou-o de tal maneira que Platão teve de voltar depressa para as árvores da Academia e de se deixar de convencer políticos a fazer isto ou aquilo.




Ver aqui, aqui e aqui


Bem, houve uma sessão no Centro. Adriano Moreira levava tudo: o colar, as vestes académicas e eu tive de fazer um agradecimento e pôr o colar em frente de toda a delegação portuguesa que tinha ido com ele. Contei-lhes qual a minha posição da altura, e que no Brasil já tinha estado noutras, porque o Governo português me tinha tornado impossível a vida em Portugal. Mas nesse caso eu tinha tido mais um sinal de que, como acreditava já, de um mal pode vir sempre algum bem. Talvez isso possa ser aplicável, de uma maneira geral, à História, sendo porém muito difícil ficarmos agradecidos ao mal pelo bem que recebemos. A nossa atitude costuma ser a contrária: é reconhecer pouco o bem e ficar sempre a falar do mal que por acaso nos sucedeu. Por isso, agradecia agora a Portugal estar doutra maneira, com outras atitudes, que esperava continuasse e que um dia pudesse realmente haver um reconhecimento de tudo o que era bom na cultura portuguesa em todos os países, quer nos que falavam português, quer nos outros. Ao mesmo tempo, que se eliminasse completamente na cultura portuguesa tudo aquilo que ajudara a fazer tantas vítimas em Portugal desde os séculos XIV ou XV até àquele momento em que falávamos ali.

A vida no Centro continuou durante alguns meses com relativa tranquilidade. Mas houve um incidente que complicou muito as coisas. Os funcionários da Universidade de Brasília ganhavam mais ou menos o mesmo que os das outras Universidades. Mas, no entanto, havia uma diferença enorme entre o que eles recebiam e os professores. Então, eles acharam que deviam reclamar um equilíbrio nos vencimentos, que deviam ter um melhoramento, porque no fim de contas o seu vencimento não era próprio para Brasília. Fizeram várias diligências junto da Universidade, mas esta continuou sempre como havia feito no caso dos assistentes: protestando, dando desculpas, baralhando tudo. Até que um dia, os funcionários perderam a paciência e resolveram declarar greve. No Centro, os meus funcionários não aderiram. Eu não tinha nada que fazer greve, era professor; os assistentes que lá estavam também não. Mantive as portas abertas e os funcionários, que se davam muito bem comigo, acharam que não tinham nada que se solidarizar com os outros, porque para eles, que tratavam directamente comigo, não havia atrapalhação nenhuma de vencimentos, quando viessem, vinham. E a situação manteve-se tranquila, com a Universidade toda em greve, excepto o Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, que continuava a funcionar normalmente. Mas as coisas pioraram e um dia, do gabinete do reitor, surgiu algo de muito complicado e complicante. Apareceu uma circular, para que os funcionários a favor da reitoria se declarassem não em greve e os outros que a continuassem. Isto é, a reitoria exigia uma lista daqueles que aderiam, colocando os outros numa situação de diferença perante os colegas. Bem, como quase toda a Universidade estava fechada, para os outros funcionários não havia complicação, o que não acontecia com os meus que vieram ter comigo aflitos:

– Se nós não vamos para a greve, como é?

É muito simples – disse eu – considero que a greve é uma maneira de  apreciar os actos do superior, o que, dentro do estatuto é um acto de indisciplina. As pessoas ou ganham ou perdem, isso é lá com elas, mas a apreciação de um superior só pode ser: ou contra ou a favor. Se eu digo que sou contra o meu superior é um acto de indisciplina; se digo que sou a favor, também, porque não tenho nada que apreciar os actos dele. Assim, apreciar funciona para os dois lados. De maneira que eu proíbo que alguém dê a menor importância a essa coisa que veio da reitoria. Devolvam já esse papel.

E para que não houvesse dúvidas fiz um edital em que proibia e pu-lo na parede. Os outros professores, cujos funcionários não estavam em greve, não se tinham lembrado daquela situação. Aliás, eles quase todos contra mim, raríssimas vezes estavam a meu favor. Mas quando era preciso dizer alguma coisa que pudesse desagradar, sobretudo depois da Ditadura, da Revolução de 64, os professores vinham sempre pedir-me que fosse eu o orador, para me colocarem em situação difícil.

Por exemplo, lembro-me quando a esquadra russa avançava em direcção a Cuba com armas e a esquadra americana foi ao seu encontro, que me pediram para falar num comício na Universidade contra tal acto. Eu fui e disse que aquilo era um conflito resultante de um outro muito mais vasto entre duas ideias sobre a economia e a política. Mas nós também poderíamos dizer que resultava de uma mania existente em muitas pessoas de, quando estão em qualquer trabalho, se considerarem superiores e os outros inferiores. Ter uma consideração económica, pessoal, de espécie nenhuma, isso era algo existente em tudo e até naquela Universidade.





Com efeito, nos dias anteriores, os professores que comiam no restaurante da Universidade, como todos os alunos e empregados, tinham planeado que todos negassem a ir com uma travessa de metal buscar comida para levarem para a mesa e comerem. Eu, que não gosto daquele sistema, nem de comer em travessas, fazia exactamente como os outros. Então, os professores reclamaram que para eles não queriam travessas, mas sim pratos e talheres como devia ser. Para os empregados e estudantes podia continuar tudo na mesma. Nesse mesmo dia, eu deixei de ir ao restaurante da Universidade. Passei a alimentar-me de sanduíches. Comia qualquer coisa, não tinha problema nenhum.

Assim, eu disse que isso era uma situação geral que se dava também na Universidade. Já que os professores tinham resolvido uns dias antes comer só em pratos, sem se importarem nada com os outros. Sobre esse assunto das esquadras eu não tinha nada a dizer, pois acho que quando algo está errado no mundo, a gente começa por duas coisas muito importantes: não cometermos nós mesmos o erro e verificar se não estamos num serviço que o cometa.

E foi só isso que eu tive a dizer de fundamental quanto ao encontro entre as esquadras americana e russa.

Bem, com a greve dos funcionários... a certa altura vi publicada no jornal uma nota da Universidade em que o reitor em virtude da continuação da greve fechava a Universidade, até ver como é que o assunto se resolvia. Convoquei imediatamente os funcionários para uma reunião, porque eu já havia estado numa reunião deles para lhes dar o meu apoio. Disse-lhes que pela minha parte a Universidade não fechava e que o fecho ou não dependia inteiramente deles. Mantínhamos a Universidade aberta, os professores que quisessem dar aulas davam-nas e eles com esses professores quebravam a greve e seria eu a começar isso. E se o reitor mandasse fechar a porta eu daria aulas na rua, no jardim ou em qualquer parte. Fui então imediatamente dar aula, os alunos foram ouvir e os funcionários estiveram presentes. Nessa altura a reitoria percebeu que a coisa estava a ir de outra maneira e chamou Niemeyer. O arquitecto era do Partido Comunista ou simpatizante e, portanto, próximo deles, e toda a gente lhe tinha muito respeito dado ele ter sido o grande obreiro de Brasília e por ser também professor na Universidade. Chamaram-no exactamente para ver se ele convocava uma reunião com os empregados e solucionava o conflito. E conseguiram-no. Niemeyer estava encarregado de ceder o mais possível às exigências e a greve acabou. Foi assim o fim da greve na Universidade com, como calcula, muita hostilidade para comigo, é claro.»

Agostinho da Silva («Vida Conversável»).

 

«Rossi e Agostinho confiavam muito em mim. Antes de eu ir para Dakar, Agostinho pediu uma audiência, uma audiência não, que ele não era dessas coisas, ele disse que queria conversar. A primeira coisa que disse foi: “É preciso enterrar Portugal”. Porque ele achava que Portugal era um país do passado, que não deveria atrapalhar o Brasil na África. Sugestões: aproximar Cabo Verde; ele dizia “que haja um dia uma cidadania de todo o mundo de língua portuguesa”; não se ligar a Portugal, “deixar que este cumpra o seu destino”, quer dizer, se afundar. Isso ele disse em 1961».

Pedro Moacir Maia («Agostinho da Silva e a Política das Relações Brasileiras com África», In Memoriam de Agostinho da Silva).

 

«Lisboa, 3 de Setembro [de 1966] – De madrugada, pelas 6,30 horas, chegou o chanceler brasileiro, Juracy de Magalhães. Bem-disposto; declarações simpáticas mas inócuas; de forma geral, reserva mental quanto ao nosso ultramar. Ao fim e ao cabo, os brasileiros querem que Moçambique e Angola, sobretudo Angola, se tornem independentes de Portugal e dependentes do Brasil. É assim; mas trata-se a meu ver de erro colossal da parte do Brasil, e de uma opção grave contra os interesses nacionais brasileiros, porque a África portuguesa, quando perdida por Portugal, não se tornará brasileira mas presa de interesses imperiais de que o Brasil estará ausente. Porque mo pedira, levei Juracy pela tarde às lezírias do Ribatejo, a uma festa de touros. Falei muito com Donatello Grieco: este confessou que nunca acreditara que Portugal ganhasse a partida em África: mas julga que essa está efectivamente ganha por nós. Juracy, absorvido nos touros e na paisagem.




Lisboa, 8 de Setembro – Partiu o ministro brasileiro. Confirmei a impressão que me fizera quando o encontrei na Baía, em 1960, num Colóquio Luso-Brasileiro. Era Juracy então governador da Baía e candidato à Presidência da República. Presidindo à vasta mesa de jantar no Palácio do Governo, Juracy convidava quantos apareciam e, ao passo que eram absorvidas largas travessas com montanhas de vatapá, constantemente renovadas, ia distribuindo benesses políticas – para o caso de ser eleito. Mas ficava sempre calmo, não perdia a dignidade, e revelava agudo sentido político no plano eleiçoeiro. Ainda é o mesmo homem, mais temperado por uma estadia em Washington como embaixador, e sem ter sido presidente. Está agora muito receoso da demagogia no Brasil. E precauto a mais não poder: foram-lhe arrancadas a ferros as poucas frases que disse quanto ao nosso ultramar. Muito pró-americano, e ao que suspeito muito nas mãos dos americanos. Foi aliás muito nítido: depois de duas horas de uma exposição maciça que lhe fiz sobre África, disse-me que o Brasil nada faria quanto ao nosso ultramar, e em nosso favor, se isso prejudicasse os interesses brasileiros, e nisso está evidentemente certo, salvo na medida em que Juracy me parece ver os interesses brasileiros num excessivo enfeudamento a Washington, quando deveria ver que são os Estados Unidos que tremem se o Brasil, em assuntos portugueses ou latino-americanos, bate o pé a Washington, e daí a força de uma Comunidade Luso-Brasileira. Mas os acordos que assinámos apesar de tudo – cultural, de colaboração económica, etc. – causaram alguma impressão, e na verdade traduzem algum apoio do Brasil à nossa política. Mas há no Rio uma reserva mental: querem aproveitar-se de nós e mostrar uma amizade que nos anestesia para, à custa desta, e na aparência desta, conseguirem os seus desígnios em Angola. Há no Brasil uma incipiência imperial, talvez ingénua de momento, mas para nós com algum perigo.

Lisboa, 9 de Setembro – Bom ambiente na opinião pública perante a assinatura dos acordos com o Brasil. Nós somos um povo de subservientes perante o estrangeiro: parece que aos cônsules dos Estados Unidos e do Brasil em Luanda e em Lourenço Marques todos se curvam com temor reverencial e dizem tudo, confessam tudo, discutem tudo, respondem a tudo. Dir-se-ia que aqueles cônsules são vice-reis. Como pôr termo a isto?».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se – Diário: 1969-1968»).


Alberto Franco Nogueira com John F. Kennedy (Washington, 1962). Ver aqui e aqui


Vida Conversável


Uma ideia que se pode ter e que alguém poderia tirar das palavras que o meu amigo acaba de pronunciar, é que o rio está fora da gente e quando se quer ir às nascentes tem-se realmente de ir contra a corrente. Mas outra ideia que se pode ter é a que as nascentes estão dentro da própria pessoa e que, muitas vezes, as condições da educação, económicas ou sociais em que se vive, a ideia que a pessoa frequentemente tem, que pode ser uma ideia falsa daquilo que deve ser a sua própria vida, leva a que nós próprios desconheçamos as nascentes e que, de repente, se produza um fenómeno qualquer no qual tudo o que está à volta se quebra e descubramos as nascentes em nós próprios, tendo a alegria de ver que fora está um rio a fluir, que brota dessas mesmas nascentes, ao contrário daquele que encontrámos antes e que era de certo modo alheio ao que estava oculto em nós próprios e devia soltar-se.

O que aconteceu comigo na ida para o Brasil foi que toda a vida em Portugal tinha sido condicionada pelo ambiente português, o ambiente muito forte que existia dentro da minha casa no Porto, aquela onde me criei e eduquei. Mesmo nas instituições que pareciam mais livres, como a Faculdade de Letras do Porto e outras, existia um peso muito grande daquela sociedade portuguesa formada pelos que tinham ficado em Portugal, pois os que puderam sair do país logo no século XV, ou sobretudo no século XVI com o aparecimento do Brasil, com a oferta de uma terra onde as pessoas se podiam estabelecer e onde não havia qualquer pressão do quadro social, que em Portugal era muito desagradável, onde iam encontrar os grupos de índios que estavam muito mais correndo no rio que deles próprios devia brotar, do que aquele rio em que contra vontade tinham estado em Portugal durante tanto tempo e que se cá continuassem os levaria ao afogamento. Um rio tão denso que eles nem sequer tinham possibilidade de nadar nem de se deslocar e onde acabariam por ser jogados e ali mesmo sepultados.

Então ao chegar ao Brasil logo várias coisas foram sucedendo. A primeira, talvez, foi que me encontrei a mim próprio, de repente, descobri-me, sem que houvesse qualquer acto voluntário: as coisas foram realmente sucedendo e a única virtude que se poderia pôr da minha parte é que eu me deixei levar por aquilo que despertava em mim ou que, parecendo vir de fora, efectivamente, me batia à porta para que eu abrisse. Quer dizer, a minha atitude no Brasil pode ser uma atitude que as pessoas achem muito interessante porque me mudou, porque abriu algo que estava fechado, mas que outros podem censurar como se fora um abandono de normas, de comportamentos, de procedimentos que a pessoa devia respeitar até ao fim da vida. Isto é, o meu comportamento no Brasil, nos primeiros tempos, pode ser olhado como coisa perfeitamente censurável, ou então, como algo em que me deixei abrir, me deixei ser o que eu próprio na realidade era e não aquela coisa artificial que fui durante a minha vida em Portugal, quer nas atitudes de complacência com o que me rodeava, quer nas próprias atitudes de revolta contra o que me parecia opressivo. Quer dizer, a minha abertura no Brasil, no meio em que mergulhei e no qual as coisas foram sucedendo sem que eu remasse contra a corrente que ia encontrando – isso é que é importante – é a tal viagem às nascentes: abandonei-me à corrente e parece que o rio dava uma volta ao mundo sobre si próprio, voltava à nascente e depois eu não tinha mais trabalho nenhum senão o deixar levar-me pelas águas, abandonar-me completamente ao que ia acontecendo pelo mundo. Assim, se nos primeiros tempos do Brasil tiver de dizer em termos que toda a gente entenda qual foi a minha atitude, direi que não foi uma atitude voluntária com um plano a cumprir, mas sim uma atitude de abandono ao que vinha, de ir ao sabor da corrente e depois a própria corrente ia-me fazer encontrar aquilo que de facto poderia ser interessante para mim e que no fundo me formou.


Kyoto, 1963: Agostinho da Silva, Cláudia Lemos e Secretária de Estado do Brasil.

Afinal, o que era? Eu, como que dei um pulo atrás de mim próprio e fui inserir-me no século XV, por exemplo, e sentir o mesmo que sentiram os portugueses idos em direcção a África para fugirem do regime económico, social e religioso de Portugal, ou que depois se estabeleceram no Brasil. Quer dizer, o que o Brasil fez comigo, logo que lá desembarquei, foi fazer-me dar um pulo como se tivesse pisado uma mola no chão, para ir cair aí pelo século XV ou XVI.

Bem, então fui inserir-me na corrente da história, uma história diferente daquela que corria em Portugal. A que fluía no nosso país era apesar de tudo, digamos, a dos revolucionários ou subversivos com os quais eu também tinha estado em contacto – nunca pertenci a nenhum partido revolucionário ou subversivo ou coisa semelhante, mas de facto, as pessoas com quem me ligava mais eram as que estavam contra o regime ditatorial de Salazar... Ali mesmo, essa revolução, esse estar contra a ditadura de Salazar, era alguma coisa que pertencia ao quadro da história em Portugal e que, curiosamente, se diluiu por completo no Brasil. Na minha chegada àquele país eu posso dizer que não era mais hostil ao regime de Salazar coisa nenhuma. Poderia até dizer que apesar de estar em contacto com tantos portugueses lá exilados, eu não estava nada solidário com eles. Entendia que estivessem contra o regime, porque muitos não estavam na corrente do Brasil, embora fora de Portugal ainda continuavam na mesma corrente de outrora, e isso pode ter sucedido afinal a muita gente dos séculos XV ou XVI, se bem que me pareça que não. Porque os portugueses com quem mais me dava eram aqueles que por motivos políticos tinham sido obrigados a exilar-se, não tinham embarcado voluntariamente, ao passo que os outros, os dos séculos XV ou XVI, que achavam que para eles o ar de Portugal se tinha tornado irrespirável, esses foram voluntariamente. E a mim mesmo – eu não fui exilado –, nenhum governo me mandou embora. Foi a mim mesmo que me apeteceu embarcar porque também já não podia respirar o ar de Portugal. Então quando fui encontrar portugueses no Brasil, com muitos deles é evidente que não me entendia porque eles viviam sob a pressão das questões portuguesas, enquanto eu me havia livrado completamente delas. Era como se Portugal, aquele de que eu não gostava, tivesse desaparecido por completo, mas não lhe era hostil. De facto, eu pulei, fui realmente como os portugueses que abandonaram o país porque não queriam o capitalismo que se abateu sobre o comunitarismo – aquilo de que já falámos – foi exactamente da mesma maneira e assim inseri-me na corrente brasileira abandonadamente. Então esse procedimento, para quem o vivesse com olhos portugueses, seria um comportamento absolutamente censurável. Um sujeito que se abandonou a uma vida totalmente diferente daquela que tinha levado em Portugal, com muita coisa que nunca tinha ousado fazer aqui, nem sequer imaginado, e que lá lhe pareceu normalíssima.

Portanto, a primeira coisa que apontaria na minha estada no Brasil foi a abertura de mim próprio, eu fui outro. Provavelmente, porque ninguém se transforma por completo, eu era o mesmo de Portugal, só que aqui estava metido naquela armadura dos guerreiros medievais e que se achava que devia ser a norma corrente. Por exemplo, andava sempre de gravata, colarinho, aparecia sempre onde devia, da forma que todos achavam bem e comportava-me como um bom elemento social, embora as minhas ideias tivessem sido sempre diferentes das do governo, quer dizer, a gravata era a mesma, a cor é que era diferente. No Brasil tudo isso desapareceu completamente, entreguei-me à vida brasileira, muito mais ampla, muito mais livre e, aos olhos europeus, aos olhos portugueses, muitas vezes censurável em muitos dos seus aspectos. Para mim não foi, inseri-me nela e andei.

Portanto, primeira coisa, no Brasil larguei a armadura portuguesa, nunca mais me importei com as questões, com os conflitos de cá, decidi viver uma vida totalmente diferente, mas uma vida que os portugueses achariam normal em muitos dos seus aspectos.

Segunda coisa, a partir dos primeiros tempos de adaptação, ainda flutuei muito, ainda achei que o Brasil não era o mais conveniente para mim, talvez por causa disso, ainda pensei no Uruguai, na Argentina, mas depois... a pequena intoxicação que já tinha do Brasil, foi suficiente para não poder suportar nem Montevideu, nem Buenos Aires. Tive de voltar ao Brasil, porque também já me era completamente insuportável a ideia de voltar a Portugal...

(In Vida Conversável, Organização e Prefácio de Henryk Siewierski, Assírio & Alvim, 1998, pp. 99-102).

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