sexta-feira, 24 de abril de 2015

Holocausto em Angola (ii)

Escrito por Américo Cardoso Botelho



Praça Lubianka, (Moscovo), com a Estátua de Félix Dzerzhinski, fundador da polícia secreta soviética (CHEKA).






 Félix Dzerzhinsky








«O KGB (komitet Gosudarstvennoy Bezopastnosti - o Comité para a Segurança do Estado) é o mais recente nome para uma organização fundada por ordem do Conselho dos Comissários do Povo, em 20 de Dezembro de 1917, como agência de investigações sob o nome de CHEKA (Comissão Extraordinária de Todas as Rússias para o Combate à Contra-Revolução, Especulação e Sabotagem). Como o título sugere, a CHEKA foi inicialmente encarregada de missões defensivas, apontadas para a vigilância e penetração nos movimentos anti-soviéticos, domésticos e no estrangeiro. Transformou-se muito depressa numa força política destinada ao extermínio dos opositores domésticos do sistema soviético e de subversão no mundo não-comunista. O primeiro dirigente da CHEKA, Félix Dzerzhinsky, considerado na Europa Oriental como um dedicado e pouco escrupuloso revolucionário, declarou em 1918: "A CHEKA não é um tribunal... A CHEKA é obrigada a defender a revolução e conquistar o inimigo, mesmo que às vezes, e por acaso, a sua espada caía em cima da cabeça de inocentes". Apesar de protestos de funcionários do partido, afirmando que a CHEKA andava a recrutar muitos sádicos, criminosos e degenerados, tanto Lenine como Trotsky aprovaram os métodos terroristas de Dzerzhinsky.

Ao longo dos anos a CHEKA foi rebaptizada várias vezes e conhecida por GPU, OGPU, NKVD, NKGB, MGB e finalmente por KGB. Oficialmente subordinado ao Conselho de Ministros, mas directamente controlado por dirigentes do Partido Comunista, o KGB é uma agência de espionagem, uma organização de contra-espionagem e uma polícia de segurança interna com o seu próprio ramo militar uniformizado. Com oficiais administrativos em todas as cidades e operacionais ocupando lugares na polícia regular, exército, governo, fábricas, universidades e meios de comunicação, controla efectivamente toda a estrutura soviética.

De acordo com estimativas feitas por organizações de informações americanas e da Europa Ocidental, o KGB envolve aproximadamente 500 000 pessoas, das quais 90 000 se pensa que estão directamente ligadas à recolha de informações e ao trabalho de contra-espionagem. Muitos membros do pessoal do KGB dirigem prisões e campos de trabalho, guardam fronteiras soviéticas e asseguram a segurança pessoal de dirigentes governamentais e partidários. O orçamento do KGB tem crescido constantemente, até um cálculo estimado de 10 mil milhões de dólares em 1977, comparados com os 7 mil milhões de dólares gastos pelos Estados Unidos no mesmo ano, com a CIA, NSA e outras agências de informações, todas juntas.



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Os serviços de informações dos EUA no estrangeiro e os de contra-espionagem internos estão divididos por várias agências para evitar uma poderosa acumulação de poder, mas o KGB acumula os dois. Encontra-se dividido em vários "directorados", cujo número e funções variam de tempos a tempos. O Primeiro Directorado Central, composto por cerca de 20 000 funcionários, é responsável pela espionagem no estrangeiro e pelas acções clandestinas e é dirigido pelo tenente-general Aleksander M. Sakharovsky. De 1967 a 1982, todo o aparelho do KGB foi comandado pelo general Yuri Vladimirovich Andropov, que se tornou membro efectivo do Politburo em 1973. No ano seguinte recebeu a Ordem de Lenine pelos seus serviços revolucionários. Um homem de contradições, Andropov era mais inteligente e informado a respeito do mundo ocidental do que qualquer outro membro do Politburo. Abandonou a chefia do KGB em Maio de 1982 depois de nomeado para o Secretariado de dez membros do Partido Comunista, encarregue de gerir os problemas do dia-a-dia do partido. Seguiu-se uma sequência de várias mudanças importantes. Vitaly Fedorchuk foi nomeado novo dirigente do KGB mas só se conservou nesse lugar durante sete meses. Pouco depois da morte de Leonid Brezhnev em Novembro de 1982, Yuri Andropov sucedeu-lhe no cargo de secretário-geral do Partido Comunista e Fedorchuk foi nomeado ministro dos Assuntos Internos. Viktor Chebrikov, um dos primeiros adjuntos do KGB e grande apoiante de Andropov, passou para a chefia do KGB.

O Primeiro Directorado Central do KGB não é a única organização clandestina que recolhe informações militares no estrangeiro. Um serviço de informações militar conhecido por GRU (Administração Central de Informações) constitui uma organização altamente profissional e muito eficiente, dependente do Estado-Maior. Durante cerca de duas décadas depois da sua criação em 1918, o GRU manteve uma considerável independência do predecessor do actual KGB, que se expandia gradualmente e que acabou por tomar uma clara precedência em 1937 à custa do GRU. Com cerca de 10 000 funcionários, o GRU é muito mais pequeno do que o Primeiro Directorado Central do KGB, e os seus operacionais são principalmente oficiais de carreira do exército, marinha e força aérea que completaram cursos de pós-graduação na Academia Diplomática Militar, em Moscovo.

A transferência ocasional de funcionários experientes do KGB para o GRU, como reforço profissional e como cães-de-guarda políticos garantem um substancial controlo do KGB sobre o seu competidor doméstico. De 1959 a 1963, por exemplo, o chefe do GRU foi o general Ivan Serov, ex-dirigente do KGB. Tal como outros serviços nacionais de informações militares, o GRU recolhe e analisa principalmente informações militares, mas o campo das suas operações é muito mais amplo, pois procura também com grande interesse descobertas tecnológicas e científicas com implicações militares, bem como desenvolvimentos económicos e políticos que possam afectar as percepções e decisões militares estrangeiras. Como é natural, há uma considerável duplicação de tarefas com o KGB, que conduz talvez três quartos de todas as acções soviéticas de espionagem no estrangeiro.



Emblema do GRU



Quartel-General do GRU em Moscovo.


Quando a imprensa ocidental relata actividades clandestinas soviéticas, em geral confunde o GRU com o KGB, apesar de um considerável volme das informações públicas se referirem a operações do GRU. Entre as mais notáveis redes do GRU podemos citar a existente nos EUA nos anos 30, dirigida pelo coronel Boris Bykov, a do Canadá em meados dos anos 40, dirigida pelo coronel Nikolai Zabotin, a da Europa Ocidental durante a Segunda Guerra Mundial sob o nome de Rote Kapelle, e as de Xangai e Tóquio nos anos 30, orientadas por Richard Sorge. Os espiões atómicos - Funchs, Pontecorvo, os Rosenberg, na América e Inglaterra, e o coronel Stig Wennerstrom, preso na Suécia em 1963, eram também operacionais do GRU.

Excepto no que se refere aos poucos primeiros anos após a Revolução, as operações soviéticas de espionagem no estrangeiro funcionavam por detrás de uma muralha de segredo oficial, e os líderes soviéticos recusavam-se até a admitir a sua existência. Ainda em 1962, Nikita Khrushchev afirmava que a "espionagem só é precisa para aqueles que preparam a agressão. A União Soviética está profundamente dedicada à causa da paz, não pretende atacar ninguém. Portanto, a União Soviética não tem qualquer intenção de se dedicar à espionagem". Contudo, nos princípios de 1964 os soviéticos publicitaram alguns casos de espionagem no período de antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, como parte de uma campanha para melhorar a imagem do KGB. As aventuras de Richard Sorge no Japão, a missão do coronel Abel nos Estados Unidos, e os serviços de Kim Philby como espião soviético em Inglaterra, são notáveis exemplos. Quando em 1976 Ivan Udaltsov, o embaixador soviético na Grécia, foi acusado de fornecer 25 milhões de dólares ao Partido Comunista Grego, convocou uma conferência de imprensa onde declarou, entre outras coisas: "Não fiquei preocupado com os relatos das ligações ao KGB. O KGB é uma organização altamente respeitada, criada por Lenine para proteger a revolução socialista e o Estado soviético".

(...) Todos os serviços de informações, e os soviéticos em particular, são influenciados pelos sistemas políticos que servem. Nos países comunistas o aparelho das informações é um aliado ideológico dos elementos mais conservadores do partido e do Governo, pois estes parecem oferecer-lhes uma maior protecção. No entanto, ao lidarem com os seus contactos no Ocidente, os funcionários do KGB em geral expressam pontos de vista mais liberais do que os diplomatas soviéticos normais, mas essas tácticas são usadas de propósito para conseguirem ganhar a confiança da vítima, e não para exprimirem um desvio ideológico da ortodoxia marxista-leninista. Os operacionais do KGB são na sua maior parte profissionalmente competentes e cínicos, e como declarou Donald Jameson, antigo especialista da CIA em acções clandestinas: "Temos também de notar a diferença entre eles e os seus avós profissionais, os agentes do Comintern. Os avós acreditavam, os jovens não acreditam. São agentes profissionais da espionagem soviética. Procuram o poder. Os seus avós - na sua maioria - pensavam estar a servir a humanidade".

Um dos factores que motiva mais os operacionais do KGB do que o marxismo-leninismo é o nacionalismo russo. O orgulho nacionalista e a sensação de estarem a contribuir de um modo especial para o bem-estar e para o crescimento da Mãe Rússia legitimam o poder dos operacionais do KGB e simplificam a sua identificação com a política externa expansionista do Kremlin. Um posto militar, altos salários, acesso a dinheiro estrangeiro e uma reforma mais rápida, são privilégios do KGB, apreciados por muito poucos outros profissionais da União Soviética.



Emblema do KGB



(...) Um artigo publicado na revista Time em 6 de Fevereiro de 1978 analisava comparativamente as forças e fraquezas das operações de espionagem soviéticas e americanas, e incluía o KGB e as organizações da Checoslováquia e da Polónia entre as dez maiores do mundo. No entanto os autores substimaram o serviço de informações da Alemanha de Leste, que é o segundo maior, a seguir ao KGB, na Europa Oriental. Durante a primeira década, depois da sua criação em 1949, os serviços de informações da Alemanha Oriental trabalharam principalmente contra a República Federal da Alemanha e contra as forças de ocupação ocidentais. O crescente reconhecimento diplomático da República Democrática Alemã pelos países desenvolvidos, a partir dos anos 60, aumentou a força e a influência dos serviços de informações da Alemanha de Leste nesses países. Durante alguns anos a Alemanha Oriental desempenhou um papel com a União Soviética e Cuba, de fornecimento não apenas de assistência técnica e militar a alguns países africanos, mas também de auxílio na segurança interna e de apoio aos movimentos negros de libertação.

(...) Nos anos 60, os serviços de informações búlgaros eram ridículos mesmo entre os seus aliados comunistas, por serem primitivos e ineficazes, mas dez anos mais tarde eram já o mais impiedoso e agressivo serviço de espionagem dos países do bloco comunista. Os soviéticos têm-se servido dos búlgaros num certo número de acções políticas dissimuladas e muito sensíveis, tal como o envio de armas para insurgentes esquerdistas na África do Sul e Angola, o contrabando de armas para o Líbano e de drogas para a Alemanha Ocidental, ou o assassínio de proeminentes activistas políticos entre os exilados da Europa do Leste nos países do Ocidente. Com mais de 1000 funcionários conhecidos pela sua lealdade e obediência a Moscovo, dá uma especial atenção aos países vizinhos, Grécia, Turquia e Itália, e aos países árabes. A tentativa de assassínio do papa João Paulo II foi talvez a acção mais visível, cuja culpa recaiu sobre os búlgaros.

(...) Os soviéticos sofreram uma série de reveses durante a sua ofensiva mundial dos anos 70. Na Europa Ocidental, Portugal emergiu como principal alvo soviético. Depois do golpe da junta militar do general António de Spínola, em 1974, Álvaro Cunhal, o secretário-geral do pequeno mas bem disciplinado Partido Comunista pró-Moscovo, tornou-se ministro sem pasta do novo Governo. Os soviéticos esperavam que o Partido Comunista Português ganhasse gradualmente uma influência dominante e que o país se associaria ao bloco soviético, mesmo que não o fizesse de um modo muito íntimo. A autorização para o estabelecimento de bases soviéticas em Portugal daria ao Kremlin uma grande vantagem estratégica em relação aos Estados Unidos e à Europa Ocidental. Apertada e ameaçada pelos soviéticos por dois lados, o resto da Europa não-comunista viveria sob crescente tensão psicológica e política e eventualmente cortaria completamente com os Estados Unidos. Apesar de intensas manobras diplomáticas e maciças operações clandestinas, os soviéticos foram incapazes de quebrar o alinhamento de Portugal com o Ocidente. Em África, o balanço soviético é um misto de êxitos e falhanços. Com a ajuda dos países satélites e de Cuba, expandiram a sua influência em Angola, Etiópia e Moçambique, mas sofreram grandes reveses no Sudão, Somália, e muito particularmente no Egipto, outrora considerado como a chave para controlar o Norte de África e o Médio Oriente. A derrota americana no Vietname e o golpe comunista no Cambodja surgiram durante algum tempo como vitórias soviéticas, mas o sangrento regime de Pol Pot preferiu a China à União Soviética, como principal protector. A invasão vietnamita do Cambodja, em 1978, resolveu o problema mas impôs pressões adicionais sobre a economia soviética.








(...) In Search of Enemie - A CIA Story, um livro de 285 páginas publicado por John Stockwell em 1978, trata das operações da CIA em Angola. Ex-tenente da marinha e amigo de Frank Snepp, Stockwell passou doze anos na agência, demitiu-se em 1977 e tal como Snepp publicou o livro sem a autorização da CIA. A sua principal acusação era a de que eram os Estados Unidos e não a União Soviética os principais responsáveis pela escalada da guerra em Angola. De acordo com Stockwell, a CIA tentara abrandar o progresso do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA), pró-moscovita, apoiando dois outros grupos de guerrilheiros, a Frente Nacional para a Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA). Stockwell afirmou que foram gastos 31,7 milhões de dólares em fornecimentos militares através do Zaire para a UNITA e FNLA, mas que em vez de fazer parar o MPLA esses esforços apenas incitaram a assistência soviética e cubana ao MPLA, para este ganhar a guerra. Stockwell declarou que a agência ou deveria ter-se mantido fora de Angola, ou então deveria ter entrado com muito mais força logo desde o princípio.

Tal como Marchetti e Snepp, Stockwell propunha uma confusa mensagem política. Advogava uma CIA mais eficiente mas rejeitava o segredo, o mais importante ingrediente de quaisquer serviços secretos eficientes. De acordo com Stockwell, "o segredo dá lugar à arrogância e ineficiência. A CIA tornou-se descuidada mesmo a respeito da sua própria segurança no estrangeiro, e as suas operações clandestinas foram tão desajeitadas que quase se podem considerar cómicas". Sentiu-se culpado das actividades que levou a cabo durante os anos que permaneceu na CIA, mas admitiu que os seus sentimentos seriam diferentes se as operações em Angola e no Vietname tivesse obtido êxito.

"Nos últimos setenta anos, esquecemos a nossa herança constitucional, e criámos tanto o Federal Bureau of Investigations como a CIA, garantindo-lhes carta branca para executarem operações no país e no estrangeiro. Tivemos os resultados que merecíamos. Tanto a CIA como O FBI violam seriamente as nossas liberdades civis, e nenhuma foi notavelmente eficiente contra os seus adversários teóricos, a Máfia e o KGB".




(...) Em Julho de 1964 o público da América Latina recebeu "provas" adicionais sobre as actividades subversivas americanas, sob a forma de duas cartas falsas assinadas por Edgar Hoover. Eram ambas dirigidas a Thomas Brady, um funcionário do FBI. A primeira, datada de 2 de Janeiro de 1961, era uma mensagem de parabéns pelos vinte anos de serviço de Brady no Federal Bureau of Investigations, e a sua única finalidade era dar mais credibilidade à segunda carta, datada de 15 de Abril de 1964, dirigida à mesma pessoa.


Washington, D. C.
15 de Abril de 1964

PESSOAL

Meu Caro Brady

Quero servir-me deste meio para exprimir o meu apreço pessoal a cada agente estacionado no Brasil pelos serviços prestados na realização da "Rectificação".


A admiração pela maneira dinâmica e eficiente em que esta operação em grande escala foi levada a cabo, num país estrangeiro e sob condições difíceis, levou-me a exprimir-lhes a minha gratidão. O pessoal da CIA cumpriu bem a sua parte e concretizou muita coisa. Contudo, os esforços dos nossos agentes foram especialmente valiosos. Estou particularmente satisfeito com o facto de a nossa participação no caso ter sido mantida secreta, e por a Administração não ter necessitado de desmentidos públicos. Podemos todos sentir-mo-nos orgulhosos do papel vital que o FBI está a jogar na protecção da segurança da Nação, mesmo para lá das suas fronteiras. Tenho a plena consciência de que os nossos agentes fazem frequentemente sacrifícios pessoais no cumprimento dos seus deveres. As condições de vida no Brasil podem não ser as melhores, mas é na verdade encorajador saber que, por lealdade e pela compreensão de estarem a contribuir de maneira vital, mesmo que pouco visível, para o serviço do país, não abandonais o vosso trabalho. É esse espírito que permite hoje o vosso trabalho. É esse espírito que permite hoje ao nosso Bureau cumprir com tanto êxito as suas muito importantes responsabilidades


Sinceramente vosso


J. E. HOOVER


Tal como o texto implica, a intenção da falsificação era provar o envolvimento directo americano no derrube do Governo brasileiro de João Goulart. Os serviços de informações checoslovacos teriam preferido atirar todas as culpas para a CIA, mas a razão para a inclusão do FBI na conspiração americana foi muito prosaica... o serviço não tinha, naquele momento, qualquer amostra de papel da CIA. A falsificação e uma das circulares mencionadas acima surgiram a público em 23 de Julho no jornal argentino Propositos. Seguiu-se uma reacção em cadeia na imprensa latino-americana, quando diversos jornais divulgavam aquela "nova onda de actividades subversivas americanas"».

Ladislav Bittman («O KGB», 1985).





«O ordenamento jurídico era claro no tocante à estrita dependência da DISA em relação ao Presidente da República. Em termos operacionais, a DISA era superiormente orientada pela Comissão Nacional de Segurança do MPLA, orgão que, naquelas circunstâncias, era um parente muito chegado do Presidência da República. Isto é importante para que se perceba que o genocídio que manchou o solo angolano não poderia ter aquela dimensão sem o empenhamento de Agostinho Neto.

O testemunho de Carlos Macedo, ex-Presidente do Tribunal Militar, é a este respeito eloquente. Confessou-me que Neto e Onambwe discutiram com ele muitas vezes acerca do modo mais eficaz de realizar as execuções sumárias. Ambos dispensaram as suas próprias assinaturas para que tudo fosse mais rápido (e certamente para se livrarem de qualquer vestígio indesmentível). Aqui se terá enraizado o conflito entre Macedo e Neto. É que o Presidente do Tribunal Militar sabia que, sem a assinatura de Neto, não tardaria que aquele tribunal se visse obrigado a carregar a culpa daqueles autênticos crimes de guerra. Nestes jogos políticos muitas vezes se pretende que a culpa morra solteira ou caia sobre a cabeça de algum bode expiatório. Outra coisa não fez Neto quando a situação angolana foi referida na Conferência Africana de Monróvia: apressou-se a dar seguimento a uma daquelas vulgares operações de coméstica política, demitindo a Direcção da DISA e nomeando uma comissão de inquérito, como se ele não soubesse da natureza e extensão dos crimes de guerra que eram perpetrados em terras de Angola.

De facto, muitos comentavam que a DISA era o suporte principal da acção de Neto. Mesmo no que toca às deslocações pelo país. Sempre que Neto projectava uma viagem a determinada cidade ou um certo percurso numa das províncias, pedia à DISA um sumário da situação. O cálculo da proporção de descontentes era realizado a partir do número de presos e da estimativa de mortos sob o fogo das forças governamentais. Assim se previa uma visita mais demorada, uma visita-relâmpago, ou se suspendia pura e simplesmente uma deslocação para evitar constrangimentos ao Presidente.

Os Ministros do governo do MPLA reafirmavam pública e frequentemente a sua confiança nessa força sempre leal ao poder do MPLA. Talvez fosse essa confiança que legitimava os agentes quando proclamavam, por tudo e por nada, que tinha ordem do Presidente para matar.




Foi a propósito de discursos como este que ouvi falar do caso de Nzambi (que, eloquentemente, quererá dizer "Deus"), o condutor daquela ambulância que nós sabíamos ser o carro da morte, que outras vezes será referida noutros passos destas memórias. Contava-se que, passando por Miramar [onde Savimbi terá residido antes dos acontecimentos de 1992], zona chique onde a Diamang possuía várias moradias, disparou sobre um angolano por causa de uma futilidade qualquer. O agente resolveu a situação com as costas protegidas. Foi à Casa de Reclusão buscar uns homens que o ajudaram a colocar o cadáver no carro e a depositá-lo, sem qualquer explicação satisfatória, na Casa Mortuária de Luanda. O caso foi muito falado na Casa de Reclusão. Os disas aprovavam o sucedido porque a vítima era certamente um burguês explorador do povo. Mas os presos estavam convencidos de que eles não conheciam sequer a identidade daquele que foi baleado.

A DISA encontrou um precioso auxiliar no sistema de vigilância da opinião e da propaganda noticiosa. Controlada por manobras de propaganda, a imprensa angolana é um bom espelho do regime de opressão que foi implementado em Angola:

Foi necessário extirpar o fraccionismo dentro do MPLA para que a revolução continuasse. Não houve tolerância em relação aos criminosos, e foi impedido o desenvolvimento da sua desagregadora acção [Jornal de Angola, 27.05.77].

No discurso de 12 de Junho de 1977, em Luanda, Neto observava:

O fraccionismo não começou a existir ontem, nem na semana passada. O fraccionismo existe desde a fundação do MPLA. Tivemos que combater vários grupos fraccionistas, que hoje estão totalmente entregues ao imperialismo. Em 1962/63, Viriato da Cruz conduziu uma ala fraccionista, ainda quando nós nos encontravámos no exílio no Congo Kinshasa [ibid., 27.02.82].


Frequentemente a imprensa era o palco dos recados do regime para as nações inimigas - mesmo servindo-se das referências aos direitos humanos. Em Angola, a retórica dos Direitos Humanos servia para agredir as nações "inimigas" e não para corrigir as práticas políticas internas. O Jornal de Angola, de 6 de Agosto de 1982, dá conta de uma reunião de uma equipa de peritos da Comissão para os Direitos do Homem, na sede do MPLA, na "Assembleia do Povo". Os jornais dos dias seguintes abriram as suas páginas às acusações de muitos dos que ali ouvidos se insurgiam contra as iniciativas da África do Sul. Mas nem uma palavra sobre as constantes violações dos direitos humanos dentro das fronteiras de Angola. Não que isto nos espante, mas recorde-se que já em 1978 a República Popular de Angola fez correr um selo postal que comemorava, precisamente, o trigésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Entre os angolanos abundavam comentários acerca deste gesto - num país onde as violações destes direitos se repetiam diariamente.









(...) Os agentes da segurança que vinham parar à laje das prisões angolanas - muitos deles formados na ex-URSS, em Cuba e na antiga RDA - eram uma voz subterrânea de revolta, sempre pronta a confessar o horror semeado por terras de Angola.

Eles exprimiam a convicção clara de que o MPLA tinha falta de apoio popular. Os seus simpatizantes ficavam-se pela margem do sul do Cuanza-Norte, pela margem norte do Cuanza-Sul, nas províncias de Luanda, Lunda e Malange. Todas as outras províncias, exceptuando Benguela, eram feudos de implantação de outros movimentos. Em particular, todo o centro e sul de Angola garantiam à UNITA um vasto apoio. Cada uma das deslocações de Neto pelo país era precedida de um relatório que avaliava com rigor a situação. Dois soviéticos dirigiam tais estratégias de segurança - e não era difícil medir o descontentamento e a revolta que tal gerava. Frequentemente, Neto tinha, pois, de se sujeitar a visitas-surpresa para que a população descontente não tivesse tempo de se organizar.

Aqueles agentes referiam, ainda, que Agostinho Neto, depois de semeado o medo e a morte por todo o país, era alvo de ódio em qualquer das províncias angolanas: ódio surdo às vezes, verbal outras. Só com a ajuda das forças estrangeiras, cubanas e soviéticas, pôde Agostinho Neto silenciar aquela raiva que tinha no rosto a memória de tantos desaparecidos, de tantos extermínios na calada da noite e no despudor da luz do dia. O silêncio sobre essa barbárie foi certamente favorecido pelo êxodo da maior parte dos estrangeiros em Angola. Era o terror sem o olhar do testemunho estrangeiro. Estou convicto de que esse êxodo não foi apenas uma consequência da conjuntura, mas, também, uma maquinação estratégica de Agostinho Neto.

Entre esta população prisional tornou-se proverbial o relato daquela visita que Neto fez à província de Malange, algum tempo antes de conhecer a morte. Aí encontrou a face da desolação e da destruição, da qual ele era o principal responsável. A sua intenção era, talvez, persuadir a população de que se tratava de um sacrifício necessário para que a revolução prosseguisse. Isso mesmo deve ter querido dizer aos sobas que com ele se reuniram - as testemunhas disseram-me que esses chefes locais se apresentaram perante o Presidente sujos e rotos, emblema da pobreza extrema em que viviam. Mas depois das suas palavras encorajadoras, prenhes de ideologia, veio a palavra alimentada de sabedoria. Um dos sobas, mais velho, não pôde conter a pergunta: "Camarada Presidente, quando acaba a independência?" A sabedoria desarmou a ideologia. Os comentários sublinhavam que esta visita de Neto a Malange correu tão mal que cancelou a viagem que se seguiria até à província do Zaire. E regressou a Luanda.








(...) Em muitos dos presos informados que contactei se encontrava a convicção firme de que o próprio Agostinho Neto manteve grande proximidade com todas as acções repressivas que fui conhecendo naquele fórum de discussão sobre Angola: a Cadeia de São Paulo e Casa de Reclusão.

Talvez por isso, numa das conversas com Marciano, fui surpreendido pela sua fúria. O móbil era a notícia de que iam erguer um monumento ao camarada Agostinho Neto: "só se for em memória de todos os seus crimes".

(...) Acerca do comandante Monstro Imortal, outro nome de quem se falava, dizia-se que tinha sido encarregado da missão de prender Agostinho Neto no quadro dos planos do 27 de Maio. Conheceu torturas da pior espécie no forte de São Miguel. Não lhe perdoaram, entre outras coisas, o que, junto de amigos, havia dito sobre Neto. Monstro Imortal gabara-se de, na mata, ter sido ele quem havia carregado frequentemente a mochila e a arma de Neto, pois ele não podia "com uma gata pelo rabo". Recebeu o pior: o n'guelelu, instrumento de tortura já descrito, que levou muitos à loucura, Contaram-me que o comandante Xietu esteve presente nestas sessões de tortura, e que o comandante Monstro Imortal lhe cuspiu na cara para exprimir a sua revolta.

(...) Após a sua morte [de Agostinho Neto] o MPLA, com o apoio da URSS, lançou um projecto tipicamente leninista - a construção de um mausoléu para o corpo de Agostinho Neto. Para esse projecto em ordem à entronização do corpo do Presidente angolano foi constituído um consórcio com os russos e os cubanos. O local escolhido: Praia do Bispo. Segundo as informações recolhidas, foi um escoadouro de dinheiros e um amontoado de suspeitas de corrupção. Refira-se que foi necessário importar, imagine-se, areia da Lituânia - aliás, a mesma que fora usada no mausoléu de Lenine. O projecto não correu bem quanto às suas finalidades: a edificação não chegou a ser concluída e o corpo embalsamado de Agostinho deteriorou-se inesperadamente. Mas os dólares gastos terão certamente confortado muitos».

Américo Cardoso Botelho («HOLOCAUSTO em ANGOLA»).


«É inquietante o que se lê na declaração do Bureau Político do MPLA de 2002 a respeito dos acontecimentos de 27 de Maio de 1977 em Angola. O documento claramente se perfila como uma tentativa de escamotear responsabilidades sobre o que foi o plano criminal executado pelo Estado angolano entre 1977 e 1979, que teve por finalidade prender, sequestrar, torturar e exterminar de forma sistemática e generalizada cidadãos nacionais e estrangeiros supostamente considerados adversos ao regime de Agostinho Neto.





Para quem em todos estes anos de Independência nacional exerce o controlo e a gestão do aparelho de Estado, é caviloso e injusto vir agora dizer que a actuação das forças militares e policiais, apesar dos excessos, se ficou a dever simplesmente à [...] incipiente organização e funcionamento das instituições e [ao] zelo dos seus principais agentes; além de que esses episódios, mitigados pelo tempo, são hoje uma página da História definitivamente encerrada.

As cúpulas do MPLA, na verdade, parecem ofuscadas pelas teias do seu próprio poder e incapazes de entender que nem tudo foi esquecido, nem as pessoas se deixaram afundar numa amnésia colectiva total. As famílias continuam a lembrar os seus parentes desaparecidos no decurso desses anos de terror e a interrogar-se por que razão as autoridades não lhes dão uma satisfação. Elas precisam saber o destino dos seus entes queridos, onde param os seus restos mortais. Uma parte dos desaparecidos morreu devido a torturas sofridas em centros de detenção. Outros foram passados pelas armas e os seus corpos jogados em fossas clandestinas. Todavia, houve vítimas cujos cadáveres se torna impossível recuperar. Os exterminadores cremaram os despojos ou lançaram-nos ao mar. Mais de mil desaparecidos se acham sepultados no fundo do oceano. Uma chacina inominável.

(...) Com efeito, foi com base [em métodos clandestinos e ilegais] que altos mandatários do poder civil e militar conspiraram e planearam, muito antes do 27 de Maio, a "eliminação e o desaparecimento sistemático de pessoas" que ideologicamente contrariavam os seus desígnios totalitários. Desde o princípio a conspiração contou com a ajuda de um certo orgão de imprensa governamental, o Jornal de Angola, através do qual se espalharam notícias insidiosas contra um grupo rival no Partido, que foi acusado de golpista e de anti-Neto; e não menos responsável pelo desastre iminente do país. No entanto, o passo estratégico mais importante foi a acção em bloco dos conspiradores que, agrupados nas Forças Armadas e nos serviços de inteligência, e sob a omnipotente orientação do Presidente da República, passaram a comandar a repressão.

(...) Durante muito tempo criou-se a impressão de que as acções monstruosas do 27 de Maio foram da exclusiva responsabilidade de um grupo - com Lúcio Lara à cabeça - que se aproveitou do facto de o chefe estar adoentado para deste modo o enfraquecerem e bloquearem nas suas decisões e chamarem a si a tarefa de neutralizarem os rivais. A credibilidade desta versão é nula, a cumplicidade de Agostinho Neto nos assassinatos na qualidade de seu primeiro mandante está hoje sobejamente documentada.











(...) A destruição do sistema educativo, contudo, foi notoriamente dos actos mais bárbaros de que há memória. Desarticulou-se toda a rede de estabelecimentos do ensino público e as primeiras escolas a desaparecer foram as de formação comercial e industrial, indispensáveis à preparação de quadros técnicos intermédios. Nem a Universidade sobreviveu ao delírio. Se até à Independência as suas unidades funcionavam em Luanda, Huambo e Lubango e se distinguiam por um palamarés de ensino e de investigação científica que concitava a admiração da comunidade académica internacional, em que se destacavam as Faculdades de Medicina e Ciências, em poucos meses os "revolucionários" da potência dirigente do MPLA, guiados por um extremismo ideológico e por políticas disparatadas, mergulharam a Universidade na anarquia.

Supremamente ridículo foi Neto coroar-se reitor da Universidade e, acima de tudo, baptizá-la com o seu próprio nome. Por ser elucidativo, transcreve-se o precioso testemunho do jornalista e professor Leston Bandeira acerca desses trágicos anos vividos na Universidade:

Agostinho Neto não queria aquela Universidade e, por isso, não dava dinheiro, isto é, não havia orçamento. Quando fomos fazer uma reunião com o então ministro da Economia, Carlos Rocha ["Dilowa"], foi-nos negado, inclusive, a utilização do orçamento que não tinha sido gasto no ano anterior. Estávamos em 1976. Depois que os sul-africanos abandonaram o território angolano (27 de Março de 1976) tudo se complicou. Por exemplo, no Lubango, para onde eu tinha regressado em Fevereiro a fim de iniciar as aulas na Faculdade de Letras e fazer outras coisas [...] começámos a lidar com uma dificuldade impossível de superar; a qualidade dos professores que nos mandavam de Luanda. Gente que fazia a carreira docente pela via política, gente com cursos tirados na Patrice Lumumba, em Moscovo. Nenhum dos nossos pedidos para o recrutamento de professores foi atendido e a qualidade do ensino foi-se degradando de forma irreversível. Mais tarde aquela Faculdade foi transformada num instituto de formação pedagógica, mas os resultados não parecem ter sido brilhantes. Entre dificuldades de toda a espécie iam acontecendo peripécias inauditas. Uma delas foi o aparecimento de diplomas falsos trazidos por estudantes do ex-Zaire, que, de resto, foram, aos poucos, tomando conta do sistema. Quando saí de Angola, a "nossa Universidade" era uma caricatura, com professores que nem a língua conheciam e traduziam do russo para o francês, para, depois, alguém traduzir para português.







No capítulo da cultura livresca o desprezo e o assassínio não foram menores e nem sequer se pouparam as bibliotecas enquanto paradigmas da liberdade de pensar. Do arcebispo André Muaca (1924-2002) ouvi relatos dolorosos de como a tropa do MPLA assolou, em 1975, diversos templos, entre os quais a Missão da Muxima [no Concelho da Quissama], cujo santuário, afamado desde o século XVIII, passava por ser um dos principais lugares de devoção das populações, ao qual acorriam até peregrinos do Congo-Kinshasa a venerar a sua imagem. Além de alfaias e imagens em número e valor incalculável, a igreja albergava uma biblioteca e um precioso arquivo documental. A turba de uniforme, possuída de um "criminal desejo", como diria o poeta nicaraguense Rubén Darío, reduziu a cinzas todos os papéis e pilhou os objectos sacros, de nada valendo o esforço daquele dignitário para impedir tamanha profanação e a destruição da história: ameaçaram-no sob a mira das espingardas.

Neto e os da sua facção, na verdade, imbuídos de uma concepção hegemónica e partidarista do exercício do Poder, mataram todas as manifestações de pensamento, mataram a liberdade intelectual, mataram a liberdade de imprensa [só o Partido tinha as respostas] e mataram todos os progressos materiais gerados pelo processo colonial. Movia-os tão-só o afã de demolir toda a ordem existente. Eles não tinham a menor percepção dos problemas do país e da sua complexa estrutura social e económica. Vindos da guerrilha tão-só embebidos de palavras de ordem e com uma falsa ideia de Angola, passaram a governar com exortações e com quadros políticos de nenhuma envergadura e sem idoneidade moral e técnica. Mas em Setembro de 1975, Neto considerava esses quadros políticos "a vanguarda de todos os explorados e de todos os trabalhadores e, por isso, a mais apta a gerir o desenvolvimento nacional pela via socialista em íntima conexão com as massas populares.

(...) O centro nervoso de toda a trama do 27 de Maio esteve sempre localizado no palácio presidencial, Neto do princípio ao fim comandou todas as acções, transmitiu instruções sobre o que se deveria escrever no Jornal de Angola contra os chamados fraccionistas e nenhum fuzilamento se levou a cabo sem o seu beneplácito. De forma a exonerar-se de responsabilidades futuras a respeito destas mortes, obrigava os subalternos a assinar as listas com os nomes dos indivíduos a abater, um método que vinha dos tempos da luta armada. Valendo-me de uma frase de Ósip Mandelstam, diria que nada acontecia nesse "jardim de ervas daninhas" sem a sua aprovação.






(...) Pois bem: no Congresso de Lusaka a 12 de Agosto de 1974, celebrado no campo Vitória Certa, onde estiveram presentes quatro centenas de militantes, esperava-se de Neto uma posição clara vinculada a uma concepção multicultural de luta, e até uma formulação teórica sobre os fundamentos pluriéticos em que deveria assentar o futuro Estado emancipado. Mas tal não aconteceu. Na matéria relativa à "posição do MPLA face aos portugueses nascidos em Angola", ele limitou-se a afirmar o princípio do jus sanguinis. Ou seja, somente os indivíduos de raça negra mereciam ser chamados de angolanos, porque eles, sim, é que eram os "nacionais puros". Quanto aos brancos e mestiços a combater no MPLA, eles desde logo se haviam tornado credores de tal estatuto. Princípio diverso se aplicava aos grupos étnicos minoritários que integravam a sociedade angolana no seu todo; questão relacionada com o princípio do jus solis, a seu ver, por ser mais complexa remetia para uma outra ordem de valores, cuja discussão devia ser postergada para depois da Independência nacional. Quer dizer, os brancos, e também os mestiços, nascidos no país teriam que requerer o direito a estarem em Angola ou o direito de serem reconhecidos como filhos da terra».

Carlos Pacheco  («Angola. Um gigante com pés de barro e outras reflexões sobre a África e o mundo»).





HOLOCAUSTO em ANGOLA


Os acontecimentos

A madrugada da revolta


Os acontecimentos relacionados com o 27 de Maio estão no centro de muita da violência que conheci nas cadeias angolanas. Reagindo a essa tentativa de golpe, o MPLA e os seus diversos "braços armados" lançaram uma campanha de repressão escrevendo a página mais negra da história angolana, memória de desumanidades entre as piores que as nações alguma vez conheceram. Em consequência, muitos angolanos foram sumariamente executados; imensos os que sofreram violências indescritíveis; sem conta os que desapareceram, sem deixar rasto. Os angolanos conheceram, como nunca, os efeitos de uma política de perseguição sobre toda e qualquer discordância política. Os que eram associados a tentativas de derrube do regime tornavam-se objecto de vitupérios públicos e torturas, até à solução final. Muitos familiares não puderam sequer chorar os seus mortos, ignorantes que permaneciam acerca do destino dos seus. Sobre todos eles, tal como na narrativa de Caim e Abel, a história perguntará ao fratricida: onde está o teu irmão? A linguagem política do momento escondia-se no jargão revolucionário da época:

"Apliquemos a Ditadura Democrática Revolucionária para acabar de vez com os sabotadores, com os parasitas, com os especuladores" (Bureau Político do MPLA, 12.07.77).






Recordo bem esse dia. Era eu um caloiro no circuito de selvajarias das prisões angolanas quando a Cadeia de São Paulo foi assaltada pela revolta nitista, de 27 de Maio de 1977. A madrugada rompeu sob o ímpeto das rajadas de metralhadora, de dentro para fora, de fora para dentro, em todas as direcções. Por vezes, os estrondos agravavam o estremecimento - pelo visto e ouvido, havia tanques na linhas de confronto. Os muros que cercava a prisão ameaçavam ruir, as telhas desfaziam-se quando atingidas pelos projécteis, e algumas portas metálicas estavam já de tal forma perfuradas que, dir-se-ia, eram agora uma frágil rede. O medo tinha invadido as celas, pois todos temiam o momento em que uma bala entrasse perdida e, com ela, a desgraça. Foram quatro horas de combate intenso. Todos viam a morte por perto. Entretanto, diminuía o som dos disparos e crescia a vozearia da multidão que cercava agora a Cadeia de São Paulo. Um tanque tinha devassado a entrada, a força atacante parecia levar a melhor.

As informações acerca da morte de Hélder Neto eram nessa altura díspares. Essencialmente, existiam duas versões acerca do que lhe teria acontecido naquele assalto a São Paulo, no dia 27 de Maio. O soldado Cardoso, reclamando para si a categoria de testemunha, dizia que assistira, escondido, ao seu suicídio, vendo-o disparar sobre o tórax, num cubículo que servia, ao tempo, de refeitório (local onde se tinha refugiado). Uma outra versão falava de assassínio e baseava-se no facto de, depois de ouvirem aqueles três tiros, terem visto o capitão Tino a fugir do local (era conhecida a ambição que Tino alimentava no sentido de tomar o lugar de Hélder Neto).

O desacordo quanto ao destino de Hélder Neto não podia pois ser maior. Mas a unanimidade acerca da sua, já proverbial, fuga diante do avanço dos revoltosos era incontestável. Falava-se do facto de Hélder Neto ter sido "um dos primeiros oficiais a abandonar o navio". Mais tarde, todos os outros oficiais acabaram por o acompanhar num esconderijo contíguo à cela F.

Principiámos a ouvir aquele som que sempre denunciava a abertura das celas. Era o agente Norberto Pereira, com uma espécie de tabuleiro repleto de chaves que entregava a um militar da força vencedora. Assim que abriram a porta da minha cela, saí, para tentar perceber melhor o que se passava, e encontrei logo o Dr. Vieira: "é um golpe nitista", explicou-me.









Uma imensa multidão de presos começa a ser objecto de uma triagem. Todos são diferenciados, os americanos e ingleses da FNLA, os da "Revolta Activa", e os da OCA, além de outros grupos que não consegui identificar. Uns são imediatamente postos em liberdade, mas alguns têm o entusiasmo no dedo do gatilho e querem, ali mesmo, fuzilar os "mercenários" e os da "Revolta Activa".

O furor da multidão parecia cada vez mais perto de se abater sobre a cadeia; era já possível distinguir o nome daqueles de quem era pedida a cabeça: Onambwe, Hélder Neto, Carlos Jorge, e outros que não retive na memória porque ainda não conhecia toda a bateria dos torturadores e carrascos.

Quando os ânimos se acalmaram e senti que podia percorrer as partes descobertas da prisão pude deter-me diante do que antes apenas vislumbrava ou adivinhava. Impressionou-me em particular o estado em que ficaram as paredes da enfermaria, agora um edifício esventrado pela violência das balas - horas antes tinha lá estado para me tratar das mazelas que estigmatizaram o meu corpo durante os interrogatórios.

A cadeia parecia entrar na normalidade, as portas de novo fechadas, mas com uma população algo diferente. Já a tarde ia pela sua metade, quando chegou um grupo de vinte e cinco militares cubanos: vinham reeditar a antiga ordem, tomando o lugar da guarnição que tinha debandado perante a força dos nitistas.

Principia então a dança do terror. Nessa noite não tiveram tempo sequer para nos dar o jantar. Começam a chegar vários grupos de novos presos. As celas vão-se apinhando. Alguns, como eu próprio e o José Mingas, são mudados (foi nessa altura que conheci a "cela C"). Entre os recém-chegados reconheci o Comissário Provincial de Malange. Se muitos são os que chegam, muitos são os que partem nas ambulâncias nocturnas, e mais ainda os que gritam de tanta tortura, lá para as bandas do Comando.

As notícias do pior começam, entretanto, a chegar. Diz-se que os fuzilamentos se multiplicam em várias zonas do país, alguns falam de massacres, outros contam que muitos dos militares da 9.ª Brigada estavam a ser metidos dentro de aviões e lançados ao oceano. Surgem também informações sobre os fuzilamentos na barra do Cuanza e sobre julgamentos sumários no Ministério da Defesa.





Na sede da DISA

No rescaldo dos acontecimentos de 27 de Maio de 1977, inúmeros agentes da DISA conheceram os rigores da cadeia de São Paulo - ocasião que me foi propícia a muitos encontros com indivíduos bem informados acerca da máquina de represálias que, entretanto, tinha sido activada. Entre eles estava aquele tradutor da DISA que me deixou algumas informações do que se passara no dia 27 de Maio.

A madrugada acordou agitada por entre o tiroteio e a grande movimentação de populares nas ruas de Luanda. Na sede da DISA, encontra-se apenas o pessoal operativo menos qualificado. Mas depressa chegam os representantes das altas esferas. José Mingas (que chegou a estar ao meu lado em São Paulo), Chefe de Departamento, na companhia do major Kamu de Almeida (mais tarde nomeado Encarregado de Negócios no Zaire), foram os primeiros a chegar. Mas logo vieram, também, os assessores soviéticos, cubanos e norte-coreanos e, um pouco mais tarde, o director nacional, Ludi Kissassunda. No edifício, a azáfama crescia de minuto a minuto e, com ela, o clima de suspeição invadia os olhares, anunciando o medo que, qual máscara, velava os rostos.

Neste clima de crescente tensão, caía a primeira vítima: um angolano aponta uma pistola à cabeça e dispara mortalmente; o corpo caiu, ali mesmo, entre as mesas e papéis da secretaria. O comentário dos responsáveis era inevitável: "Este estava comprometido!" O cadáver foi removido perante o terror dos outros funcionários.

Entretanto, começavam a chegar, em quantidade cada vez mais assinalável, prisioneiros feitos no campo dos conflitos; Kamu de Almeida coordena o seu acolhimento. São recebidos no Ministério por duas filas de soldados que improvisam um túnel de violência e humilhação; depois de lhes desnudarem o tronco, são amontoados numa sala. Entre eles estava o Procurador do Tribunal Militar, a quem, antes de despirem, arrancaram as estrelas do seu posto militar.

Os «pretos» da Segurança, cujos lugares virão a ser ocupados por «mulatos», terão sido as vítimas privilegiadas. Aliás, constava que o "número dois" do partido, Lúcio Lara, um mulato, tinha já dito a todos os mulatos que não dormissem em casa naquela noite do 27 de Maio.

Fidel Castro, Agostinho Neto, Jorge Risquet e Lúcio Lara em Angola.


A multidão dos presos não parava de aumentar, e a DISA viu-se impelida a confiscar edifícios para albergar tanto detido. Os interrogatórios eram sumários e, logo nessa hora, muitos foram despachados para o fuzilamento; aqueles a quem a sorte sorriu um pouco vieram fazer-nos companhia. Por entre toda esta movimentação circulava Onambwe, um dos estrategos da dizimação quase total da 9.º Brigada e da 1.ª Região Militar.

Aquilo que se passava na sede da DISA era apenas um ensaio do que se pretendia fazer à escala do pais. Os "técnicos" cubanos, soviéticos e norte-coreanos estudavam já uma estratégia nacional, mas não sem a proximidade do Ministro da Defesa, Iko Carreira, que permaneceu, ali na sede, bem no centro de todas estas operações.

Era clara a intenção de tornar todo este processo rápido e devastador. No Ministério da Defesa, eram às dezenas os gabinetes constituídos para os inquiridores - e, segundo, o testemunho de Moisés, não faltavam garrafas Johnny Walker para ir regando o cansaço daqueles interrogatórios sumários. Não era, pois, de estranhar que algumas cenas começassem a evidenciar a presença de álcool, catalisador de anormalidades ainda mais aberrantes. Disso dá testemunho a cena em que Rasgado grita para um torturador de serviço: "Camarada! Não batas mais... ele é meu tio". O rosto do oficial que estava a ser agredido deu lugar, por entre feridas e sangue, ao espanto e ao reconhecimento. Mas por pouco tempo. Depois de um trago de Whisky, as palavras de Rasgado tornaram-se mais claramente irónicas: "Coitadinho!" Lançou-se ao oficial com pontapés e murros da mais variada espécie, até à sua própria exaustão. Mas estas cenas repetiam-se em cada gabinete, onde iam circulando corpos nus ou semi-nus numa exibição de violência exacerbada.

Num dos gabinetes estava, também, Carlos Jorge, conhecido já em São Paulo e na Casa de Reclusão pelo requinte das suas agressões. Esta cena é disto mesmo um exemplo perfeito. Um oficial estava a ser interrogado, mas não estava a dizer aquilo que o inquiridor pretendia. Furibundo, Carlos Jorge ordenou-lhe que abrisse a boca; quando a viu aberta escarrou-lhe para dentro. A expressão de repulsa no rosto do oficial foi imediata, mas Carlos Jorge, gritando "...engole...engole..." e desferindo golpes rudes no rosto já desfigurado, não deixou sequer que o oficial cuspisse para fora da boca aquele escarro nojoso. Um outro oficial viu a sua boca invadida por algo bem mais perigoso. O grito foi o mesmo: "Abre a boca! Abre mais..."; mas agora, era a vez de Carlos Jorge introduzir uma pequena granada de mão na boca daquele oficial, perante o terror daqueles que estavam por perto. A estas barbaridades juntavam-se outras, como a torção dos testículos, além de outras violências exercidas também na região genital. Não era difícil obter confissões com tais métodos.






Limpeza militar

Esta é uma das páginas mais sangrentas da história de Angola: refiro-me às acções de "limpeza" militar coordenadas a partir do Ministério da Defesa no seguimento do golpe de 27 de Maio que eliminaram muitos angolanos na força da vida, negros sobretudo, já que os mestiços foram frequentemente poupados. Os militares entravam pelas traseiras do Ministério e ficavam amontoados no antigo Liceu Paulo Dias de Novais. Despojados das suas fardas, aí permaneciam conhecendo a fome - por dia, tinham apenas direito a uma lata de carne do tipo corn beef - e a humilhação. Como me informaram Moisés, Mingas e Dédé (20), viam-se obrigados a urinar e a obrar para latas e a deitar pela janela, depois, o seu conteúdo. Numa das janelas estava uma metralhadora apontada para dentro. Não havia espaço para todos se sentarem, revezavam-se na ocupação do chão para repouso. Quando, à noite, os oficiais entravam nas salas seleccionavam imediatamente aqueles que levantavam a cabeça. "É este já! Levantou a cabeça, chegou hoje".

À medida que o edifício do Ministério ia ficando livre novos grupos eram para lá deslocados, em fila indiana, mãos atrás das costas e sob vigilância. Aqui, tiveram oportunidade para experimentar uma tortura conhecida no Leste de Angola mas adoptada pelos cubanos: uma corda atava atrás das costas as mãos e os pés; passando pelo pescoço, fazia dos seus corpos verdadeiros arcos. A esta forma de tortura chamavam chincualho. Levantavam o preso até cerca de um metro e deixavam-no cair em seguida, isto até obterem uma confissão. Este meio de tortura levou muitos à loucura e à morte por deficiente irrigação do cérebro. Não são poucos os casos daqueles que foram queimados com pontas de cigarros. E muitos outros chegaram a ser agredidos, à coronhada, com cinturões e pontapés, num mesmo momento, por cinco torturadores. Eu próprio vi, em São Paulo, os corpos mutilados de muitos destes militares. Enquanto isto, outros eram ali inquiridos para que os gritos de uns aterrorizassem os outros. Frequentemente se acusaram uns aos outros de tal maneira que quase toda a 9.ª brigada de Luanda acabou por ser condenada, ou porque haviam participado no golpe, ou porque eram amigos destes ou, ainda, porque alguém importante desejava as suas mulheres (21). Das salas de torturas, os presos iam, na maioria dos casos, para o fuzilamento, sem assinar qualquer auto. O principal campo de extermínio, como iremos reconhecer, situava-se bem perto de Luanda.
































Marginal de Luanda (1974).


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Renegando a tradição penal portuguesa que havia séculos tinha abolido a pena de morte, o MPLA institucionalizou-a com a lei 1/78. No preâmbulo fala-se da necessidade e das vantagens dessa medida:

A República Popular de Angola tem não só o direito, como o dever de defender a revolução firme e decididamente dos seus inimigos, tanto internos como externos, salvaguardando as conquistas já implantadas em benefício do Povo e as que futuramente venham a ser alcançadas. Assim, os elementos que participam em actividades contra-revolucionárias e criminosas que atentem contra os interesses fundamentais da revolução devem ser exemplarmente punidos com a maior severidade, sempre que os factos que cometeram e as circunstâncias das mesmas lesem gravemente a segurança e a tranquilidade do Povo angolano e o normal desenvolvimento da actividade das instituições do Partido e do Estado. A introdução no sistema penal comum da pena de morte por fuzilamento não deixa de vir na sequência e de representar afinal um aperfeiçoamento jurídico de um instrumento que o povo angolano, o MPLA-PT e o seu braço armado das FAPLA, já algumas vezes tiveram de aplicar à luz da legalidade revolucionária, na luta de libertação nacional e, posteriormente, na implantação e consolidação da RPA.

Afirmam os artigos desta lei: "artigo 1.º - o n.º 1 do artigo 55.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção: as penas maiores são a pena de prisão maior de 20 a 40 anos, ou a pena de morte por fuzilamento; artigo 7.º - A pena de morte será executada por um pelotão de fuzilamento nas vinte e quatro horas após a notificação ao réu da não comutação da pena.

Não chega recordar a brutalidade da pena de morte executada por fuzilamento. É necessário recordar que esses condenados não beneficiaram sequer de um julgamento que possa ser digno desse nome. A leitura da letra fria destes regulamentos não pode deixar de me emocionar quando penso em tantos que foram condenados à morte sem que alguma vez os mecanismos de defesa fossem postos em andamento.


Tibério, uma testemunha dessa "morte à pressa"

Tibério (22) - uma das testemunhas privilegiadas do sucedido no Ministério da Defesa - falava-nos, frequentemente, das tragédias que, no pós -27 de Maio, se viveram naquele edifício. A pressa era o único método - julgamentos e condenações à velocidade de um minuto cada; uns desciam, de seguida, para as caves do Ministério, outros eram deslocados para o antigo Liceu Paulo Novais - era ali mesmo ao lado.




O trânsito para o fuzilamento também não tardava. Num carro, os condenados, noutro o pelotão de fuzilamento, num ritmo de roleta russa que aviltava até a dignidade dos laços familiares. Na memória de Tibério - como na de tantos luandenses - permanecia a visão daquele teatro de horror, no qual pais, filhos e irmãos se encontravam inesperadamente em lados opostos: de um lado os que matam, de outro os que são mortos.

A precipitação dos acontecimentos não conseguia garantir que, nos pelotões de execução, não fossem incluídos familiares dos condenados. Em tais circunstâncias era frequente que, já no próprio terreno de fuzilamento, se levantassem vozes de desespero, de um lado e do outro, diante do insuportável que é matar um irmão, um pai ou ser fuzilado por um qualquer familiar próximo.

Esta engrenagem de violência era alimentada pela praga da denúncia. Num discurso de Maio de 1977, o próprio Agostinho Neto fez a apologia da denúncia e da perseguição de todos os fraccionistas. Quando o medo toma o lugar da dignidade humana, até os laços mais enraizados podem estiolar - sucedia que muitos chegavam a denunciar os seus próprios irmãos na miragem de obter, com isso, algum benefício.

Este é um período da história angolana em que as execuções se amontoaram à pressa, ao abrigo do decreto de Agostinho Neto, gravado em letras gordas naquele cabeçalho do Jornal de Angola: "Não vamos utilizar o processo habitual, que não seria justo. Nós vamos ditar uma sentença!"


Uma noite no Ministério da Defesa

Era uma dessas noites pós-27 de Maio. No Ministério da Defesa encontravam-se Onambwe, Director Nacional Adjunto da DISA, e Dimuca, que chefiava as investigações gerais da Comissão Militar de Inquérito. Também lá estava o conhecido torturador Carlos Jorge.

À noite é enviada uma ordem para a sede da DISA: "Preparar viaturas para missão muito importante na barra do Cuanza". Na sede da DISA seguem cinco jipes para o Ministério da Defesa. Entram pelas traseiras (23) que dão para o edifício da Missão Militar Soviética. Aí aguardam. A chefia pertence ao futuro capitão Tino. As viaturas levam bidões de gasolina e os soldados estão armados com automáticas akas (24). Desta missão toma parte Moisés, ex-aluno da Casa Pia de Lisboa, cuja família era oriunda da Guiné-Bissau e que me informou de grande parte destes acontecimentos.


AK-47


Onambwe e Dimuca vêm à porta confirmar que tudo está como foi pedido. Dirigem-se a uma das salas do rés-do-chão do edifício onde esteve a antiga Companhia de Comandos do QG português. As portas abrem-se. Dentro estão cerca de trinta oficiais descalços, de mãos amarradas atrás das costas e em roupa interior. Todos eles apresentam ferimentos graves. Há caras tão inchadas que já não é possível ver os seus olhos. O "espectáculo" surpreende os próprios agentes da DISA.

Como se poderá adivinhar, eram militares acusados de participar no golpe de 27 de Maio. A selecção para o fuzilamento era da responsabilidade de Carmelino Pereira. Mas tal correspondia à política do MPLA: o extermínio de toda a oficialidade de Luanda e da 1.ª Região Militar foi a maneira de garantir que nenhum dos traidores escapasse. Isto apesar de os oficiais terem insistido na sua inocência e esclarecido que apenas cumpriram ordens superiores. Não esquecer, em relação a estes factos, que Neto havia, precisamente, anunciado que não seria justo "utilizar o processo habitual" e que, portanto, iria ser ditada uma sentença adequada. Estes processos sumários foram, por conseguinte, sancionados ao mais alto nível (cf. Jornal de Angola, 05.06.77).

Pelas 22 horas, são prontamente deslocados para as viaturas. O cheiro a gasolina anuncia a morte. Eles têm agora a certeza de que vão morrer. Solta-se, então, o seu desespero e um coro de choro e gritos invade aquela noite: "Deixem-nos, ao menos, despedir das nossas famílias... das nossas mulheres... dos nossos filhos". Entre os gritos ouvem-se os nomes das mães, das mulheres, dos filhos. Já as viaturas haviam passado o plano marginal do muro alto do Ministério e ainda se ouviam estas vozes do desespero. Alguns agentes da DISA choram, entre os quais o próprio Moisés que partirá com muita renitência. Os 70 km que separam Luanda do local escolhido na barra do Cuanza foram desgastantes: o choro, as súplicas, os gritos. O rosto dos militares que os acompanhavam exprimia a sua estupefacção e o seu silêncio não iludia o constrangimento e a inominável repulsa que os habitava. Ontem, eram disciplinados e valentes chefes militares; hoje, condenados que choram como crianças. Um dos militares tinha mesmo um primo entre os condenados, facto que ilustra bem a arbitrariedade desta execução (25).

Em São Paulo, no pós 27 de Maio, as noites que eram vandalizadas por vozes de chamamento traziam um medo impronunciável. Não só porque esse horizonte pendia sobre a cabeça de quase todos, mas também porque, na organização destas procissões de condenados, reinava frequentemente a arbitrariedade. Pense-se nos casos em que as vítimas foram levadas e assassinadas por engano, ou naqueles outros casos em que, sobrando espaço nas viaturas, os carrascos regressavam às celas para, a olho, seleccionar mais algumas vítimas (é viva em mim a memória do sucedido com o Augusto Inglês, preso no 27 de Maio, que foi levado para a ambulância da morte em vez de um tal José Inglês, acabando por ser salvo in extremis daquela confusão).






Por vezes o requinte era tal que alguns dos algozes vinham para São Paulo contar com pormenor o que se tinha passado nos fuzilamentos. Refira-se um exemplo. Kapakala e mais uns dezasseis condenados foram fuzilados por ordem do Tribunal. Ora, no dia seguinte, aquele mesmo que tinha ordenado o fuzilamento estava em São Paulo a contar como tudo se tinha passado perante o horror estampado no rosto dos ouvintes - diziam que esse método era do agrado dos dirigentes máximos do MPLA.


Na barra do Cuanza

Chegam, por fim, ao local destinado. É noite cerrada. Uma clareira perto da estrada, uma barraca de apoio aos militares, que guardam esta zona, e tudo o mais é deserto. Os prisioneiros são descidos das viaturas e a gasolina descarregada. As viaturas são dispostas de forma a iluminarem o sítio indicado pelo guarda militar local. Este policiamento local e permanente justificava-se pela frequência destas execuções (26).

Tino levava instruções para fazer sofrer os condenados até aos limites da sua imaginação e experiência. E, de facto, Tino revelou-se um notável executor de tais instruções. Este é, sem dúvida, um dos testemunhos mais eloquentes da violência arbitrária e brutal que o MPLA fez perpetuar no território angolano.

Com o pelotão de execução já alinhado, dirige a palavra aos condenados, como se de um julgamento se tratasse:

- Camaradas, houve um golpe em Luanda. Determino que vocês, aqui perante mim, digam a verdade - e acrescenta - Quem não disser a verdade será imediatamente abatido!

De seguida aponta para o primeiro e pergunta:

- Fizestes parte do levantamento?

- Camarada, eu fazia parte da 9.ª Brigada... - responde este com a voz inundada de medo.

- Camarada, eu não tomei parte em nada - afirma o segundo.

- Ah! Não tomaste parte! muito bem! - Ordena que este oficial seja colocado de costas para o mar e grita:

- Fuzilar!






Os militares disparam. O Barulho é ensurdecedor (por isso procuraram um local como este, descampado, com uma única testemunha isenta, o oceano). O terror aumenta no rosto dos oficiais. O corpo fuzilado cai no chão trespassado de balas. Sob as ordens de Tino o corpo é regado com gasolina e incendiado. Arde como um archote e incha como se de um balão se tratasse. Por fim rebenta, ardendo até ficar reduzido a cinza. O arrepiamento estampa-se no rosto dos próprios militares da DISA. Mas o aviso está feito.

- Digam a verdade, caso contrário vai já acontecer o mesmo - vocifera Tino.

Seria difícil imaginar um processo de execução mais violento, sádico e, sobretudo, mais eficaz na fermentação do medo na consciência daquelas vítimas seleccionadas para este "abate". A noite, a completa  irracionalidade do interrogatório, os tiros, o sangue, a gasolina... adensaram o terror, fazendo desta antecâmara da morte um verdadeiro inferno. De facto, diante de tudo aquilo que viram e ouviram, todos optaram por confessar o que lhes era pedido. Porém, quando o último se acusou, logo recomeçou a execução; a morte tinha sido adiada por poucos minutos. Foram mortos um a um, para que cada um fosse obrigado a ver na morte dos companheiros, prelúdio da sua própria. No fim, depois dos "ritos" da bala, seguiu-se o banho de gasolina e a respectiva cremação dos corpos num autêntico gesto de ostentação do horror. A pá lançou os últimos resíduos ao mar, selando o destino trágico desta geração angolana de oficiais e procurando calar qualquer evidência que denunciasse estes fuzilamentos.


O tribunal popular revolucionário

27 de Agosto de 1975: um julgamento popular em Luanda

Alguns sectores da população angolana acreditaram facilmente nos ditos da política fácil, "que tudo era do povo", "que era ele quem mandava". Nisto se incluía a capacidade judicial nos tribunais. O Tribunal Popular tornou-se o emblema de um sistema que queria iludir os cidadãos com o rebuçado do "poder popular". Entre os presos circulavam frequentemente informações sobre este instituto popular, julgamentos com execuções imediatas, entre outros, no Huambo, no Dundo, no Bié e em Luanda.

Esta política estava ao serviço de uma estratégia desesperada de perseguição de apoios, que rareavam. Para tal, não faltou, também, o recurso aos arcaicos mecanismos de desfiguração diabólica do inimigo - diziam que os da FNLA comiam corações humanos e não poupavam as crianças.

O MPLA quis mostrar ao povo, de forma concreta, o modo de exercício daquele "poder popular". Estava-se em meados de Agosto, no ano de 1975, antes ainda da proclamação da independência. Aproveitando o facto de existirem queixas contra os militares de uma unidade militar denominada "4 de Fevereiro de Luanda", constituída por lupens recrutados nos bairros mais pobres de Luanda, Neto anuncia um julgamento popular. Aqueles militares eram acusados de terem praticado vários crimes na zona do Cacuaco - não pude perceber como se chegou a essa acusação.



Bandeira do MPLA



Quando deslocados para esses julgamentos "populares", os presos eram frequentemente revestidos com um fardamento próprio, acentuando todos os traços da desfiguração. Apreciei muito o arrojo de Armando Monteiro. Ele conseguiu trazer para Portugal um daqueles humilhantes fatos que impunham a todos quantos iam a julgamento. Os presos ficavam de tal forma parecidos com seres de um outro mundo que o desenho daquele fato macaco parecia concebido com a clara intenção de os achincalhar. Por precaução, Armando Monteiro retirou-lhe o P que em pano branco cobria as costas, pois temeu que fosse identificada aquela peça de vestuário nalgum controlo antes da saída de Angola.

Entre os acusados de que aqui falo está o próprio comandante da unidade, o Virgílio Sottomayor (veio a saber-se que ele não podia encontrar-se no local dos crimes de que era acusado pois, nessa altura, estava numa festa de casamento, mas nem essa evidência lhe devolveu o reconhecimento da sua inocência). A propaganda do MPLA tinha um objectivo claro - convencer todos de que o destino daqueles acusados dependia do veredicto soberano do povo.

João Faria (27), meu vizinho de cela em São Paulo, ao tempo repórter da Rádio Nacional Angolana, deixou-me o testemunho da sua observação. De facto, Agostinho Neto, de conluio com Carlos Macedo, presidente do Tribunal Popular Revolucionário, já tinha traçado o destino daqueles acusados - dizia-se que os caixões já estavam feitos, que estavam de reserva para os lados do "Morro da Luz" e que, na altura propícia, foram deslocados para o local do abate.

Naquele "julgamento popular" terão estado umas dez mil pessoas que constituíam uma multidão mobilizada pelos novos poderes que a propaganda do MPLA tinha produzido para mascarar os seus próprios desígnios políticos. O tribunal reuniu num campo de futebol - o da Académica - a quatrocentos metros da praia.

Fizeram parte daquele "tribunal popular" Henrique Abranches (28) (Comissário da Polícia Militar), Manuel Pacavira (29) e José Van Dunen (Membros do Comité Central do MPLA), Nado (Comissário Político das FAPLA), Betinho (representante das comissões populares do Bairro de Luanda) - alguns destes viriam a ser fuzilados no pós-27 de Maio. Pacavira, que havia estado preso ao lado de Virgílio Sottomayor, no Tarrafal (na Ilha de São Tiago, em Cabo Verde), no tempo colonial, fez o discurso da pedagogia do "poder popular" e explicou ao povo o funcionamento do tribunal. Depois, tomou a palavra o tenente Carlos Macedo. Os acusados são confrontados com a notícia dos autos que os acompanham - confissões obtidas sob a violência de um tal Bom dos Bons. Uns confirmam a confissão, outros, como o comandante Sottomayor, negam tudo. A confusão é grande entre os populares: "esse, sim... esse, não...". Acabaram por condenar ao fuzilamento os sete já designados. Bastaram uns trinta minutos. Os condenados subiram, então, para uma carrinha aberta Datsun, pintada de vermelho, que os levou para um descampado, dito das "antigas barrocas do sambizamba", junto à esquadra "Brinca na Areia" - ficava nas proximidades do campo do "julgamento popular".

A tragédia seguiu os ritos habituais. Fizeram-nos descer, colocaram-nos em fila. Dois deles eram, ainda, de tenra idade, tinham dezasseis e dezanove anos. Ordenaram-lhes que corressem na direcção da praia. Por uns momentos, como que se suspendeu a respiração da multidão que tudo observava. Mal os sete condenados começaram a correr, os cinco atiradores apontaram e cumpriram a sua missão (entre eles estavam alguns nomes bem sonantes: o Estrela, conhecido por bazuqueiro das FAPLA; o Tirola, reputado criminoso de delitos comuns). Os tiros não foram, em certos casos, imediatamente fatais. Mas aquelas armas soviéticas, as PPXAH - cujo código é EE (x)7Z -, de tambor redondo, não permitiam que o serviço ficasse a meio; apontadas à cabeça dos moribundos, antes que chegasse qualquer socorro, não deixaram dúvidas sobre o desfecho desta trágica cena.

O horror era agora insuportável naquela exibição dos corpos abandonados e violentados pelas balas. De acordo com os testemunhos que anotei, algumas mulheres terão desmaiado, acabando nas urgências do hospital. Uma coisa é certa, a turba ali reunida deixou de confiar tanto no seu "poder popular". O MPLA deve ter percebido esse sinal de desaprovação, uma vez que abandonou as práticas dos julgamentos populares em Luanda.






(...) "Temos ordem do Presidente para matar"

Quando, com os portugueses que estavam em São Paulo, fui à Casa de Reclusão para ser recebido, com os outros compatriotas, pelo Cônsul de Portugal, conheci aí um desgraçado cuja história espelhava o absurdo da justiça angolana.

Em meados de 1979 terá sido levado perante o Tribunal Popular Revolucionário, com o aparato do costume, vestido com aquela espécie de fato-macaco com um P cosido nas costas, em pano branco. Foi numa altura em que o Tribunal estava muito activo no despacho de gente para a morte - ainda recentemente tinham dali saído mais de uma dezena de unitas luandenses condenados à morte.

Quando o referido preso entrou no Tribunal, todos perceberam que apresentava sinais de alienação mental - os meus informantes sublinhavam que essa loucura era uma consequência das torturas que lhe tinham imposto.

O julgamento começou como habitualmente com a sua identificação. O estado do preso fazia perceber que ali não era lugar para resolver aquele caso. O presidente do Tribunal, Adolfo João Pedro, mandou que ele desenhasse com giz, no chão, um quadrado, depois um círculo. Não sei que tipo de teste era este, mas é certo que o preso nunca deu conta do recado.

O tribunal ordenou o seu internamento no Hospital Psiquiátrico de Luanda, instituição dirigida por um médico muito estimado pela população, o Dr. Africano Neto. Mas a segurança não cumpriu a ordem do tribunal, encarcerando-o de novo na Casa de Reclusão. Em Janeiro de 1980 ainda esperava pelo internamento no Hospital. Ao que apurei, o agente Cansado não concordava com o acórdão do Tribunal, tomando assim a liberdade de corrigir tais deliberações. Quando era invectivado a responder pelas razões do seu comportamento, respondia: "Aqui em Angola quem manda é a DISA. Temos ordem do Presidente para matar".


Agosto de 1980: fuzilamento de "unitas"

Eram dezasseis luandenses. Foram presos carregando a acusação que os apontava como autores de vários atentados bombistas nas instalações soviéticas em Luanda. Degredados em São Paulo, dormiam no cimento, na "automotora", sem direito ao conforto mínimo de um colchão ou de uma manta. A comida que lhes serviam era sempre acompanhada de ameaças de morte "para levantar o apetite", diziam. Todo o processo evidenciava que talvez houvesse já um qualquer destino para estes luandenses. Eles próprios, quando nos encontravámos na tomada de sol, insinuavam esta preocupação. Nestes encontros, sob o auspício solar, eram bem visíveis aqueles edemas que lhes cobriam os membros, rasto da agressividade que os corpos suportavam no contacto com os pavimentos frios e sujos.

"Memorial Dr. Agostinho Neto" (mausoléu), inaugurado a 17 de Setembro de 2012.


A evidência desta situação desenvolvia cada vez mais solidariedades entre os presos. Tal ficou patente naquele dia em que o Comissário Provincial Mendes de Carvalho visitou São Paulo. As queixas eram muitas. Logo nas primeiras celas, ouviu os presos falarem daqueles seus companheiros que estavam na "automotora". Esta foi mesmo a derradeira etapa desta visita. Aí viu e sentiu aquilo de que, certamente, já tinha ouvido falar: o cheiro nauseabundo das latrinas entupidas, a densidade dos corpos, as feridas fétidas, as mutilações, os rostos entre o medo e a revolta. Chegando junto dos unitas presos pôde observar que a miséria era ainda mais insuportável, mas justificada, na sua óptica, pela condição dos presos: "Ah! Mas isto aqui é tudo Kwachas" [assim eram chamados os unitas pelo MPLA]. Estava tudo explicado, esta casta não merecia mais do que lugar fedorento, sem mantas ou colchões.

Mendes de Carvalho não foi embora sem ouvir, ainda, o grito incontido do alferes Colino Ricardo Wandalika: "Vocês são uns criminosos. Hão-de prestar contas, um dia, diante do povo angolano. A mim, já quase me destruíram a boca". Os gritos deste unita não fizeram deter o desdém do Comissário (algum tempo depois o alferes conheceria, como outros, o fuzilamento no Humbo).

Estes unitas eram, no entanto, demasiado conhecidos para desaparecimentos sumários. Chamados ao Comando tentaram convencê-los, por artes de maquinação e simulação, de que tudo não passava de um engano, de um lamentável erro que era necessário redimir. Só que, para tal, era necessário que eles assinassem uns papéis, uma formalidade para justificar institucionalmente a sua estadia na cadeia - "um pró-forma", disseram, por entre aquela amabilidade de Fausto. Todos estavam preocupados com aquela situação: "até o senhor Presidente" [referia-se a José Eduardo dos Santos], insistiram (nesta, como noutras situações, o agente Puati, acolitado por um cubano, era o principal engenheiro destas investidas para a obtenção de autos).

Regressados às celas, a desconfiança e a incredulidade foram cedendo lugar à esperança de que o tormento poderia estar perto do seu termo. Alguns dias depois começaram a ser chamados. A engrenagem vitimária estava em pleno funcionamento.

Não pude reconhecer os contornos de cada um dos autos, mas pude apurar que muitos dos presos se recusaram a assinar tais documentos. Foi António Kapakala, enfermeiro e estudante de medicina, quem se lançou numa cruzada - se calhar, tão crédulo quão desesperado - para os convencer a todos da bondade daquela proposta, pois só assim poderiam ver concretizada a prometida liberdade. O ardil acabou por funcionar.

Os autos estavam assinados. Mas a almejada libertação tardava. A desumanidade das condições de vida nas celas não sofreu qualquer brandura, a não ser que se tenha em grande consideração o facto de terem passado a ter a permissão de ver televisão com os outros presos, novidade que teve pelo menos o mérito de nos fazer conhecer um pouco da história de desespero que lhes preenchia os olhos e as palavras.

Foi assim que descobri que alguns tinham sido presos em razão de tal ou tal amizade e que outros eram acusados de terem ligações com colocação de bombas, em Luanda, na Aeroflot (URSS) e na Balkan (Bulgária). Pelo que pude perceber, daqueles dezasseis, talvez apenas uns seis seriam, de facto, simpatizantes da UNITA.

























Na minha memória retenho, ainda, os olhares de fadiga e desespero do Victor Chama, o Fortuna Machado, o Bento Salomão e, por perto, a palavra pronta de Kapakala com a missão de não deixar morrer nos seus companheiros a promessa de liberdade.

Só a visita do Ministro do Interior, Kundi Payama [veio a ser Ministro da Justiça], em Novembro de 1979, os fez chocar com a evidência da mentira que ajudaram a fabricar. Nesse dia foram todos chamados para fora dos edifícios das celas; aí puderam falar com o Ministro que, aliás, se revelou uma pessoa de trato amistoso. Por entre as queixas habituais também a voz de António Kapakala se fez ouvir, interrogando o Ministro acerca da data em que lhes seriam abertos os portões de São Paulo. Ele respondeu que não podia tomar qualquer iniciativa, pois, agora, o seu caso e o de todos os seus companheiros da UNITA só poderiam ser resolvidos no Tribunal Popular Revolucionário.

Não tardou que chegasse um dos dias mais sombrios na minha memória. Nele assisti a algo que não conhecia ainda. Numa espécie de procissão de penitentes, os unitas estavam ali diante dos nossos olhos, envergando o tal fato-macaco, que pouco descia abaixo do joelho, com um enorme P branco cozido nas costas. Arrastavam-se com o peso da humilhação e o medo de adivinhar o que lhes iria acontecer.

Esperava-os o Tribunal Popular Revolucionário. O tal "pró-forma" dava, afinal, lugar ao simulacro de um julgamento montado sobre as suas assinaturas, colhidas com a promessa aliciante de liberdade. Funcionou a máquina da mentira e a condenação à morte surgiu como a palavra inequívoca de um destino de morte sem recurso.

O regresso a São Paulo foi de júbilo para os carrascos, mas de indizível dor para os condenados, fechado que estava, cada vez mais, o horizonte. Restava agora a espera pouco confiante de que o Presidente comutasse a pena.

E o fim aproximou-se sem pedir licença. O seu anúncio chegou a São Paulo pela mão de um funcionário do Tribunal Popular Revolucionário. Entrou no Comando. Minutos passados, chamaram um a um aqueles dezasseis acusados. De lá saíram com um papel na mão, um bilhete para a morte, por entre lágrimas e gritos. Alguns tiveram mesmo que ingerir calmantes para que os minutos fossem suportáveis. Nesse dia não pudemos já contar com a sua presença na televisão. A consternação era geral.

O alarme tinha já soado antes. É que, na véspera, a DISA havia comunicado aos seus familiares que poderiam trazer, no dia seguinte, comida com fartura para os seus. Ora, por aqui, a fartura e a benesse escondem, quase sempre, o engenho e a arte da tortura e, por vezes, profetizam o fim.

No dia da matança não faltou o Carmelino Pereira. Esse mulato de Benguela trazia um monte de cuecas ("cuecas cubanas", diziam) que, com a ajuda de outros, distribuiu aos condenados, chamados que foram, um de cada vez, à sua presença. À boleia desta reduzida indumentária vinha a notícia, já adivinhada, de que o camarada Presidente Eduardo dos Santos não perdoava.



Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos.






José Eduardo dos Santos e Fidel Castro.


Depois de receberem a indumentária e a confirmação do veredicto, regressaram às suas celas. Passaram junto de mim, bem como de outros presos. A palavra "morte" surge como se de um subterrâneo nascesse, traduzindo-se, de forma cada vez mais pungente e intolerável, em gritos mais afiados do que facas (recordo aqueles de Cristovão Elias "Cristo"). Um dos condenados gritava de tal maneira que lhe tiveram de dar uma qualquer droga.

Uma hora antes do sol-posto, aparece Carmelino Pereira com um grupo de dezasseis soldados da Casa de Reclusão - vinham juntar-se ao pelotão de São Paulo (30). Os condenados são conduzidos pelo tenente Miranda até a alguns metros da ramona que está na porta de armas. Aí começou o fim, como puderam testemunhar os presos da SIGA (31) e o português Ventura, que neste momento por ali passava.

Os pulsos foram-lhes atados com um cordel, atrás das costas, até que a dor se tornasse grito (Tira-Ranho era presença habitual nestas condições), e assim prosseguiram com pontapés, coronhadas, entre outras agressões, acompanhadas de uma cacofonia torpe de insultos. Descobriram alguns, ainda, como Mendes Augusto, força para resistir à violência dos carrascos. Mas o exercício da agressão era já indiferenciado e irracional sob a sombra da morte - tal pancadaria pretendia ser, naquela ironia sem pudor, um "suplemento" de coragem para os mais hesitantes e desesperados. Foi uma visão do inferno, aqueles corpos quase nus, sulcados de feridas, descalços, empurrados uns contra os outros, o choro, os gritos, o desespero estampado no rosto. Foi, ainda, sob pontapés, murros e todo o tipo de golpes baixos, que subiram para a ramona aqueles corpos já desfalecidos, numa quase nudez, disfarçada com uma espécie de cueca - a já referida «cueca cubana».

Dirigiram-se para o Campo Militar do Grafanil. Ali estavam dezasseis postes ladeados de outros tantos caixões, monumentos de morte, visão do horror. Ainda descalços, indumentados apenas com as "cuecas cubanas", cada um dos condenados é preso a um dos postes, mas sem qualquer venda nos olhos - nada os devia poupar ao terror daqueles momentos.

O pelotão está a cerca de sete metros dos condenados. Neste frente a frente, adensa-se o assombro com algumas perguntas da praxe: "Angola é independente?... Camarada Neto é o guia imortal da revolução angolana? [note-se que nesta altura já Agostinho Neto estava morto]... É o camarada José Eduardo dos Santos o grande timoneiro do povo angolano e o nosso presidente?"... Apenas a primeira pergunta obteve resposta afirmativa; as seguintes foram acolhidas por um silêncio de revolta e acusação, salvo o caso daquele preso que aproveitou para gritar a sua revolta, acusando Neto de ter vendido a sua pátria à União Soviética e a Cuba.

Os tiros não tardaram, mas não segundo a figura do fuzilamento comum. Não houve qualquer ordem para que os executores disparassem simultaneamente, foram disparando sucessivamente para regiões não vitais do corpo - pés, pernas, braços -, levando ao paroxismo o horror dos corpos estilhaçados, corpos em pedaços que voam pelos ares. Cada um dos condenados, sem qualquer venda nos olhos, podia ver o seu corpo e os dos seus companheiros desfazerem-se em sofrimento por entre gritos, até que a morte chegasse. O horror chegou mesmo ao rosto de alguns dos militares que ali estavam observando as execuções (a situação tem tais contornos que mesmo a mente mais perversa e cruel condenaria).

De acordo com o testemunho do André e do português Luís Lopes, ainda demorou meia hora até que a morte habitasse por completo aqueles cepos hirtos, dependurada em corpos desfigurados. Para que não restasse qualquer dúvida, estenderam os corpos no chão e sobre eles despejaram mais algumas munições: "Aqui está a certidão de óbito", afirmou um dos dirigentes (32).

A visão delirante da morte tornada espectáculo trouxe o sentimento de repulsão a uns tantos executores da Casa de Reclusão, que se apressaram a fugir do local (houve até quem o fizesse durante o massacre). Alguns dos seleccionados eram quiocos, homens de sensibilidade pouco conforme a tal horror (33). André, da guarnição de São Paulo, nesse dia, não conseguiu sequer jantar. Trazia as botas cobertas com um pó avermelhado, vestígios do local da tormenta; logo que pôde falou connosco, e foi nas suas palavras que encontrámos as notícias daquela inaudita execução, que mais se assemelhava a um ritual sádico de celebração da morte. O Comando veio a saber que este soldado "tinha dado com a língua nos dentes". Alguns dias depois, arranjaram-lhe um qualquer serviço no exterior... morreu num "acidente de viação".

Esta acção parece ter pretendido adquirir o estatuto de exemplaridade. Para saber como tudo se passara não faltou o Presidente do Tribunal Popular Revolucionário, Adolfo João Pedro, que, ainda neste Agosto de 1980, se deslocou a São Paulo para aí se reunir com os agentes e militares que tinham estado presentes naquelas execuções - juntaram-se para conferenciar naquela espécie de rua entre o edifício do refeitório e a cela da Revolta Activa (34). Os presos estavam convencidos de que Adolfo João Pedro queria levar, o mais depressa possível, notícias frescas a José Eduardo dos Santos (in ob. cit., pp. 85-99 e 102-107).


José Eduardo dos Santos e Nelson Mandela.



Notas:

(20) Tinha um irmão ou irmã em Lisboa. A sua mãe lutou com vigor pela sua libertação.

(21) Em S.Paulo esteve também encerrado, mais de três anos, um tenente de nome Preto - era ele que me dava água, quando fiquei incomunicável - que depois de libertado foi imediatamente aconselhado a não regressar à sua terra, no Kunene, pois a sua mulher já tinha um filho de um alto dignitário do MPLA.

(22) Era um dos responsáveis pelo Sector do Pessoal do Ministério da Defesa e tinha tido ligações com vários sectores militares.

(23) Neste edifício funcionou o CCS do tempo colonial.

(24) Referência à arma mais célebre no conflito angolano, a AK.

(25) Inferno, motorista e amigo de Agostinho Neto, dizia que por várias vezes militares haviam sido forçados a matar os seus familiares. Inferno tinha pertencido ao MPLA no tempo da guerrilha pela independência. Depois passou a trabalhar no Palácio Presidencial.

(26) Carlos Pacheco refere-se desta forma aos acontecimentos trágicos que aqui se descrevem: "Neto de certeza nunca soube quem, de facto, matou Bula, Nzagi e outros dirigentes encontrados dentro de uma ambulância; e também o que aconteceu com duas brigadas de elite, cujos soldados, durante a noite, em praias distantes de Luanda, foram trucidados um a um, na presença uns dos outros, num espectáculo de inenarrável terror, em que as vítimas, trespassadas pela loucura do medo, chocaram até ao último instante, suplicando que as poupassem". Repensar Angola, Lisboa: Vega 2000, 118.

(27) Licenciado em Direito. Veio a ser correspondente do Diário de Notícias, em Luanda.

(28) Algum tempo depois, foi retirado destes processos e empurrado para um sector administrativo. Era branco, e quando cresceu o descontentamento perante o que se havia passado nesse julgamento popular, tornou-se presa fácil do dito: "é um branco que anda a dizimar pretos".

(29) Manuel Pacavira exerceu funções de governação provincial no Cuanza-Norte; mais tarde tornou-se Embaixador de Angola, em Itália.

(30) Remédios, mecânico português sempre muito bem informado, disse-me que tinha sido difícil conseguir estes soldados para o pelotão de fuzilamento - ao que parece, foi necessário recorrer a alguns elementos do exterior. Tirando alguns "profissionais", o fuzilamento era uma missão que enfrentavam com repugnância. Notícias semelhantes e complementares recebi do Barreto e do Carreiras.

(31) Esta secção da cadeia de São Paulo tomou o nome da empresa SIGA porque aí foram enclausurados os seus trabalhadores. À SIGA foram parar muitos elementos da segurança angolana, como o José Mingas, alto responsável da DISA. Na memória de todos os presos pesava a lembrança daquelas noites em que o choro tomava conta do silêncio da noite e invadia todos os cantos da SIGA. Nesse ano de 1977, saíram daí muitos angolanos para as noites dos fuzilamentos.

(32) Algumas das circunstâncias desta execução serão facilmente verificáveis quando um dia os familiares destes condenados quiserem levantar os corpos destes seus entes queridos, depositados em vários cemitérios de Luanda.

(33) Sabino dos Santos C. Matos, são-tomense que me visitou em 26 de Novembro de 1981, não deixou de me referir o caso de um tenente, seu amigo, que nunca mais foi o mesmo depois destes fuzilamentos. Graças ao testemunho deste tenente, conhecemos alguns dos pormenores destas execuções.



Continua

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