domingo, 5 de abril de 2015

A arte das minorias

Escrito por Orlando Vitorino









«O pintor Henri Matisse manteve durante anos uma academia, até que um dia e sem dizer nada a ninguém, a abandonou para sempre. Entretanto, os seus discípulos continuavam a esperá-lo para o prosseguimento das suas lições. Intrigados de princípio, depressa compreenderam que o mestre alguma coisa queria significar com a sua ausência.

Uma dia um discípulo encontrou-o a pintar um porto de mar.

Porque nos abandonou o mestre?

Porque, depois de tantos anos de academia não consegui nunca que um só dos meus discípulos fizesse um traço, uma linha que fosse sua.

Tinha razão Henri Matisse. O seu apostolado da arte produzia, afinal, nos seus discípulos um resultado igual ao que ele tão decididamente combatia. E assim a sua experiência levou-o à mesma conclusão de Picasso: Não há discípulos, há só mestres.


O erro do que estuda não é sofrer as influências dos mestres mas sim ficar preso da influência de um único.

É a nossa admiração pelos vários mestres que melhor pode conduzir-nos ao descobrimento da grande novidade: a nossa personalidade.

O homem moderno não fixa nunca a sua posição, nem antes, nem durante, nem depois da sua personalidade».

José de Almada Negreiros («O Desenho»).
















A arte das minorias

Muitas vezes temos dito que o teatro é uma arte de minorias. Temo-lo dito para aqueles que julgam ser o teatro a mais «social» de todas as artes apenas porque o vêem reunir, nos seus espectáculos, algumas centenas que, acabando sempre por saber que o teatro é uma arte de minorias, se inibem contudo de o dizer, e até pensar, por medo da opinião dominante transmitida pelas universidades e veiculada nos compêndios que os universitários elaboram para uso dos pobres estudantes liceais, agora reduzidos a estudantes secundários.

O mais profundo acontecimento político dos últimos seis anos foi, em Portugal, uma entrevista em que Braz Teixeira, como Secretário de Estado da Cultura, declarou que «o maior inimigo da cultura portuguesa é a universidade».

O teatro é, pois, uma arte das minorias. Mas qual a arte que não seja de minorias? O escândalo que provoca, hoje, dizê-lo é mais uma confirmação disso mesmo. Almada Negreiros disse um dia, já muito velho (portanto mais sábio), que a missão da arte é escandalizar. Falava numa reunião de gente bem-pensante, portanto socializada e, com esse dito, escandalizou-os a todos. Todos eles, naturalmente, se tranquilizaram quando deixaram a reunião e se puseram a ler as opiniões que têm sempre lugar nos jornais. E disseram: o Almada é velho e está ultrapassado.

As maiorias não são para o teatro. Mas compreendemos que sejam para a política. Claro que há a alta e a baixa política. Hoje, porém, a baixa política é toda a política e as maiorias ficam sendo, sem dúvida, para a política. Ora não há qualquer relação entre o teatro e a baixa política.

Não podemos, contudo, deixar de reconhecer que sempre o teatro seduziu os políticos. Como há uma estatística para tudo, há também uma para mostrar que as actividades que reúnem as pessoas de maior longevidade são a dos políticos e a dos actores.

Humberto Delgado e Henrique Galvão



Álvaro Cunhal e Humberto Delgado











Os exemplos de políticos seduzidos pelo teatro são, entre nós, muito frequentes e numerosos. O mais feliz parece ser o de Mendes Leal Júnior, maçon de grau superior, poderoso chefe de partido, várias vezes primeiro-ministro ou chefe de governo e com uma carreira de dramaturgo que se prolongou entre 1840 e 1880. O seu maior êxito foi um drama romântico, «Pedro», peça para a qual é difícil encontrar outra pior. Outro exemplo muito conhecido é o de António Enes, alto-comissário ou vice-rei de Moçambique no tempo da campanha contra o Gungunhana. Já quase nos nossos dias, deparamos com outras veleidades teatrais em Henrique Galvão e Humberto Delgado. De todos eles, parece que só Mendes Leal Júnior, apesar de toda a mediocridade ou inferioridade das suas numerosas peças, amou seriamente o teatro, chegando a preferir os aplausos de uma plateia às aclamações de um comício ou uma «dieta».

Aos políticos-dramaturgos é preciso associar os dramaturgos-políticos. Sejam entre nós: Luís Rebelo, Alves Redol, Miguel Franco, B. Santareno, Stau Monteiro. C. Ferreira, Luso Soares e todos os que figuram nos primeiros lugares do respectivo capítulo das histórias da literatura para todos eles é um comunista alemão, B. Brecht. Que é B. Brecht: um político ou um dramaturgo? Um político frustrado que quer fazer teatro ou um dramaturgo frustrado que faz política? Quem há aí que tenha presente a grande paródia que Ionesco, em «La Soif et la Faim», faz aos seus dramas em quadradinhos (ou em banda desenhada), mostrando como eles não passam, no seu didactismo, de uma reprodução do, há séculos enterrado, teatro didáctico das escolas universitárias dos Jesuítas que teve a sua principal «fábrica» em Portugal nos séculos XVI e XVII? Já então a universidade era a maior inimiga da cultura portuguesa.

O teatro leva-nos a tudo. Até a mostrar-nos que não é só em Portugal e agora que, como diz Braz Teixeira, «a universidade é o maior inimigo da cultura portuguesa». No séc. XVI, em Inglaterra, um professor da Universidade de Londres, com o apoio dos seus colegas, requeria à rainha que proibisse um certo dramaturgo de escrever peças de teatro. O dramaturgo chamava-se William Shakespeare (in Ensaio, revista de cultura e opinião, n.º 2, Fevereiro/Março de 1981).






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