domingo, 16 de julho de 2023

O País Templário

Escrito por António Quadros


«(...) os Lusíadas constituem a cifra poética para aquilo de que os Jerónimos são a cifra arquitectónica. Depois do grande poema oceânico, a literatura portuguesa caracterizar-se-á nos seus aspectos superiores, pela profecia. Vieira, Junqueiro, Pascoaes, Pessoa e Régio. Sem dúvida os primeiros artistas portugueses da palavra e do pensamento, são, por diferentes modos, escritores messianistas. De uma maneira ou de outra, todos eles reconheceram a identidade da Pátria com o ciclo heróico que termina, de facto, em D. Manuel I e se prolonga, em forma fantasmática, até Alcácer-Kibir

António Telmo («História Secreta de Portugal»).

 

«Retomar Camões, hoje, em época em que uma nova versão de pátria caída no gosto da cobiça e na rudeza / duma austera, apagada e vil tristeza, se nos apresenta ou nos envolve de uma forma mais sombria ainda, mais nocturna e mais angustiosa, será rever e sobretudo reflectir sobre o seu destino, à luz da nossa experiência, mais pesada de quatro séculos, e do nosso pensamento de hoje, temperado pela longa batalha das ideias, no dealbar de um mundo disposto a transcender as ilusões, as alienações, as ligeirezas intelectuais e ideológicas destes últimos cem anos de positivismo e de materialismo, redutores da complexidade e da profundidade do espírito humano.

Estas doutrinas parecem dominar hoje o mundo. Mas o mundo, incluindo Portugal, almeja outros horizontes, tem outros sonhos, quereria rumar para outras águas e outros continentes, que não são os do passado histórico, pois não se pode voltar atrás, mas também não são os das utopias iluministas, totalitaristas ou radicalmente pragmatistas, em que o melhor do ser do homem é violado, bloqueado, ou anestesiado.

De Os Lusíadas se nos impôs partir para repensar a experiência histórica, a experiência mental, a experiência espiritual e cultural desta nação da finisterra ocidental europeia porque Camões foi o primeiro que a assumiu e interpretou na sua globalidade, o primeiro que apontou o seu lugar inconfundível na relatividade dos povos europeus, ainda se optimizando (com fins prospectivos e operativos) as suas possibilidades, o primeiro, enfim, que reflectiu sobre a distância entre o real e o ideal, entre a conjuntura negativa e o arquétipo a atingir, num horizonte não apenas humano, mas teocosmológico.»

António Quadros («Portugal, Razão e Mistério», Vol. I).


«Da excursão minuciosa feita pelo passado histórico de Portugal, parece lícito concluir por algumas coordenadas invariáveis. Baseiam-se na constância do enquadramento português, no plano geográfico e no plano humano, e na permanência dos interesses, como povo e como nação. Para as encontrar, todavia, temos de subir até aos factores fundamentais, que são ao mesmo tempo muito simples e muito gerais. Será o primeiro: de tudo quanto muda, é o homem o que menos muda: e não é previsível que nos séculos vindouros a natureza humana deixe de apresentar os mesmos sentimentos ou instintos de amor, de ódio, de ambição, de propriedade, de defesa, de Deus. Podem alterar-se, e alteram-se, as formas exteriores da sua manifestação e expressão, e os métodos de transmissão, e as motivações imediatas determinantes: mas o conteúdo e a dimensão intrínseca do homem permanecem. E o segundo factor: não é previsível que os dados geofísicos sejam modificados, havendo sempre portanto um conjunto de potências marítimas e um conjunto de potências continentais; daqui um quadro geopolítico estável que não pode sofrer sobressaltos de base: e, se no interior de cada conjunto são possíveis alterações num sentido e depois em sentido oposto, entre os blocos marítimo e continental as linhas de aliança e antagonismo têm características cuja identidade essencial se mantém. Um terceiro factor: a existência permanente de forças económicas e militares, e portanto políticas, cujos centros de comando podem deslocar-se mas cuja natureza se não altera: esse deslocamento está ligado aos resultados de um conflito de vastas proporções, a uma descoberta científica e técnica importante, a uma modificação profunda de recursos humanos: mas tudo segue de perto e reflecte os sentimentos constitucionais do homem. Ainda um quarto factor: todas as épocas – aquilo que se designa por outros tempos – apresentam um panorama ideológico específico: mas este é novo somente no plano vocabular e no modo de aproveitamento dos recursos existentes: para além disso, apresenta como substância constante a de fornecer cobertura doutrinal e de princípios às novas forças sociais ou políticas emergentes: o surto destas coincide sempre com o aparecimento de ideologias que, em cada momento histórico, são havidas como inteiramente novas e válidas em perpetuidade: e pode dizer-se assim que cada império possui o seu idealismo messiânico próprio, destinado a ocultar os seus objectivos ou a fazê-los aceitar por terceiros. E um derradeiro factor: todas as épocas têm a sua tecnologia específica, que é prolongamento da anterior ou resulta de uma descoberta científica revolucionária: os coevos julgam-na sempre a mais acabada expressão da inteligência, insusceptível de ser ultrapassada ou de envelhecer, sem lhes ocorrer que os vindouros hão-de encará-la com o mesmo sorriso com que eles próprios encararam as anteriores: aquela tecnologia pode alterar os hábitos exteriores de vida, modificar os veículos transmissores de ideias ou sentimentos, acelerar e resolver o processo social e político de convívio ou de luta: mas não altera as realidades básicas: e está sempre ao serviço de uma política, de uma ambição, de uma força. Destes factores simples e gerais podemos partir para outros mais particulares.»

Franco Nogueira («As Crises e os Homens»).



O País Templário


Recorde-se que foi a partir de 1143, isto é, após a reunião de D. Afonso Henriques em Zamora com Afonso VII de Castela, na presença do legado do Papa Inocêncio II, que o primeiro viu enfim reconhecido o título de rex, que aliás já usava [1]; e que, depois das suas dificuldades com o Papa Lúcio II, o qual um ano depois, o considerou apenas dux portugalensis, foi no seu sucessor, o Papa Eugénio III, que encontrou protecção e colaboração inequívocas, até que em 1179, o Papa Alexandre III reconhecesse enfim de jure o reino de Portugal.

Ora, Inocêncio II devera humanamente o Pontificado a S. Bernardo, que lhe dera o seu decisivo apoio no cisma que o opusera ao antipapa Anacleto II; quanto a Eugénio III, antes Bernardo de Pisa, tinha sido, como já apontámos, monge de Claraval, sob a sua autoridade, devendo-lhe também a eleição.

O mesmo é dizer que D. Afonso Henriques ficou a dever a aprovação da sua investidura ao Abade de Claraval, verdadeiro patrono espiritual do reino. Na Sala dos Reis do Convento de Alcobaça, pode ver-se ainda hoje, efectivamente, a imagem de S. Bernardo e do Papa Eugénio III, ambos coroando o nosso rex.


Sala dos Reis (Convento de Alcobaça).

Assim a païdeia românica e gótica segundo o modelo cisterciense-templário recebia em Portugal, no alvor da nacionalidade, através do «investimento» espiritual do templário Afonso de Borgonha, primeiro rei de Portugal, que quase imediatamente fundou a Abadia cisterciense de Santa Maria de Alcobaça, a herança de uma filosofia da história de raiz agustiniana e orosiana, actualizada teleológica e praticamente pelo pensamento e pela acção de São Bernardo, que pouco depois conduziria à teoria das duas beatitudes e ao conceito de Império, de Dante, e ao sistema poético-filosófico da Divina Comédia e da Monarquia. O grande poeta, contemporâneo de D. Dinis, influenciou-o decisivamente, como veremos no Vol. II. É importante conhecer a história política, sociológica e económica de Portugal. Mas a história espiritual precede-a, fazendo-nos descobrir, não só as mais profundas motivações, patentes ou ocultas, dos fenómenos, mas também a continuidade teleológica que a torna presente e constantemente futurível em nós...

Parece-nos necessário acentuar e mostrar, pois, como a difícil afirmação do Estado português, a consolidação da monarquia lusitana, o triunfo de uma unidade nacional em gestação há séculos, e com um passado longo de autonomia cultural dentro da Península, no quadro da estrutura ideológica e espiritual oeste-europeia e católica, nos dois séculos que medeiam entre o reinado de D. Afonso I e de D. Dinis, a partir do qual o país entrará num novo ciclo histórico, se fazem sobre o alicerce idealista de um espírito de cruzada personalizado por uma fidelidade ou mesmo por uma obediência espiritual cisterciense, bernardina e templária.

Afonso VI de Leão e Castela entrega o Condado Portucalense a D. Henrique em 1096.







Túmulo do Conde D. Henrique na Sé de Braga.

Sabe-se que os condes borgonheses chegam à Península nos finais do século XI a convite de D. Afonso VI, de Leão e de Castela, como fronteiros e em espírito de cruzada para o auxiliar na defesa contra os almorávidas. Enquanto o Conde D. Henrique casa com D. Teresa, filha de Afonso VI, o Conde D. Raimundo, seu primo, casa com D. Urraca, irmã de D. Teresa. D. Raimundo é filho de Guilherme I, Conde de Borgonha, e primo do Duque Eudes de Borgonha. Por seu turno D. Henrique é irmão deste último e sobrinho-neto do Abade da Ordem de Cluny, D. Hugo.

Por outras palavras, faz-se na Península cristã a implantação de uma superestrutura aristocrática e feudal borgonhesa, portadora do espírito de Cluny e logo depois de Cister e Claraval, conquistando raízes nos territórios onde se instalou, muito em especial no Condado Portugalense.

Aqui, o filho e herdeiro do Conde D. Henrique, depois da sua morte e em gesto de ruptura para com a sua mãe, D. Teresa, exprime alguns anos mais tarde, com o apoio popular de imediato recebido, a vocação de independência deste velho território finistérrico. Ao corporizar o embrião de um espírito nacional e nacionalista, D. Afonso Henriques já não é um borgonhês, submetido à regra feudal, que quebra profeticamente, mas um português.

Note-se a coincidência de algumas datas significativas:

1115 – Fundação por D. Hugo, Conde de Troyes, do Mosteiro de Claraval, o mais importante dos Conventos da Ordem de Cister, de que o primeiro foi S. Bernardo; sê-lo-ia até 1153, ano da sua morte.

1119 – Fundação da Ordem dos Templários ou Ordem da Cavalaria do Templo de Salomão por Hugo de Payens, Godofredo de Saint-Omer e mais sete cavaleiros, entre os quais um seria português, Arnaldo da Rocha [2]; os Cavaleiros do Templo, devotados à defesa dos lugares santos da Palestina foram assim chamados porque o rei de Jerusalém, Balduíno II, os estabeleceu numa ala do seu palácio à Mesquita El Aksa, construída no lugar onde se situara o antigo Templo de Salomão.

1124 – No dia do seu 14.º aniversário natalício, dia consagrado ao Espírito Santo, D. Afonso Henriques, tendo envergado ele próprio a vestimenta guerreira, como era próprio das pessoas reais, foi armado cavaleiro ao pé do altar da igreja de S. Salvador, em Zamora [3].

1126 – Primeira doação aos Templários em Portugal: Fonte Arcada.

1128 – Doação aos Templários, também por D. Teresa, do Castelo de Soure e de terras entre Leiria e Coimbra. Confirmação da Ordem no Concílio de Troyes, de que S. Bernardo foi o Secretário, sendo o seu principal artífice e redactor da regra então aprovada.

1128 – Vitória do Infante D. Afonso sobre sua mãe na batalha de São Mamede.


Castelo de Guimarães

1131 – Redacção definitiva, por S. Bernardo, da Regra dos Templários.

1143 – Reconhecimento do título de Rex, usado por D. Afonso Henriques. O mosteiro beneditino de São João de Tarouca passa à obediência de Claraval, seguido dos Mosteiros de Lafões, Salzedas, Sever, Fiães, São Pedro das Águias ou Ermelo.

1147 – Conquista, por D. Afonso Henriques, de Santarém e de Lisboa. Cedência aos Templários das possessões e rendimentos das igrejas de Santarém.

Tomada de Santarém (1147), por Roque Gameiro.

1153 – Fundação do Convento de Santa Maria de Alcobaça, que passa a ser a cabeça e o centro espiritual e intelectual dos Cistercienses, sob jurisdição de Claraval.

1157 – Concessão aos Templários, por D. Afonso Henriques, de privilégios extraordinários: inviolabilidade de propriedades e de pessoas; isenção de tributo e de serviços; isenção de portagens; isenção de pagamento do dízimo dos terrenos que eles próprios cultivavam ou mandavam cultivar à sua custa; os Templários não podiam ser capturados, nem se lhe podiam exigir penalidades por crimes cometidos, sendo os pleitos decididos pela sentença de «homens bons».

1158 – Tomada de Alcácer do Sal. Gualdim Pais, 6.º Mestre dos Templários portugueses.

1159 – Doação aos Templários do vasto território de Cêras.

1160 – Construção, neste território, do Castelo de Tomar, com a sua Igreja e Charola, projecção arquitectónica da Cruz Templária, a Cruz das oito beatitudes.

1185 – Morte de Gualdim Pais, o Mestre que mais consolidou os domínios templários em Portugal, os quais possuíam nessa altura os Castelos de Tomar, Almourol, Zêzere, Pombal, Idanha-a-Velha, Cêras, Cardiga, Sousa e Monsanto, entre outros, além de muitas propriedades em Lisboa, Sintra, Santarém, Leiria, Évora ou Beja. Mais castelos e propriedades passaram para a sua posse logo com D. Sancho I, como Idanha-a-Nova, Nisa, Vila Franca de Xira ou Castelo Branco, que fundaram [4].


Estátua de Gualdim Pais e a torre da Igreja de S. Baptista. Ver aqui

Tendem os historiadores, dominados pelos preconceitos ideológicos ou pelas ideias do tempo em que vivem, a verem na fundação, consolidação e expansão do reino português uma simples consequência das lutas e rivalidades feudais, das ambições senhoriais, dos desejos de poderio e de enriquecimento do Conde D. Henrique ou do Infante seu filho, ao que se acrescentaria quanto muito, o embate e a rivalidade entre a Cruz e o Crescente.

Há mais, muito mais, no entanto.

A Ordem militar do Templo e a Ordem religiosa de Cister nasceram de um poderoso surto idealista. Os Cavaleiros do Templo, em geral homens nobres e ricos, abandonavam todos os bens terrenos e entregavam-se por completo às regras rigorosas a que ficariam sujeitos durante a sua vida. Muito embora mais tarde se registasse uma decadência ou pelo menos um afrouxamento do rigor, juravam consagrar a sua vida ao serviço de Deus, defender no temporal a fé cristã e os lugares santos e combater os seus inimigos, fazendo os votos de pobreza, obediência e castidade.

Constituíam, pois, não só uma força militar única, já que um Templário nunca se rendia, aceitava a morte como um prémio, lutava antes pelos bens sobrenaturais do que pelos bens terrenos, como também uma força moral inigualável. Não era em suma uma milícia mercenária, mobilizada para as guerras dos reis e senhores, mas uma «milícia de Deus», como lhe chamava S. Bernardo. Rodeando o rei os seus mestres e freires-cavaleiros de elite, instauravam um padrão ético e cavalheiresco incitante e fascinante, na subordinação dos valores materiais aos espirituais.

Aquele referido sincronismo de datas indica perfeitamente o que se passou: durante a soberania do Conde D. Henrique o território está sujeito a Cluny; e depois de D. Afonso Henriques é com o apoio moral e religioso dos Cistercienses e com o auxílio decisivo dos Templários que se faz a conquista, a ocupação e a cristianização do território. A independência portuguesa é pois marcada e qualificada pela convergência da superestrutura borgonhesa-lusitana e do espírito cristão, segundo o ideal Cisterciense e Templário, sob o magistério de S. Bernardo.

Mosteiro de Alcobaça






É no triângulo Guimarães /Braga e Alcobaça que assenta a nova nação europeia. Aliás, o rei é um cavaleiro templário, o que explica a sua total identificação com a Ordem. Portugal será a ponta de lança afiada que irá ferir de morte o Islão, ao mesmo tempo que o espaço exemplar de um país missionado. Um reino cristão concebido e espiritualmente organizado, desde a origem, segundo um cristianismo trinitarista, ético, cruzado e apostólico de idealidade cavalheiresca, mariana e bernardina. A grande nave despojada de Alcobaça e a charola octogonal de Tomar simbolizam visivelmente a dupla consagração inicial do reino português, mas a consagração misteriosa das palavras de Cristo em Ourique corresponde ao carisma do direito divino. Alexandre Herculano e os historiadores positivistas consideram-nas uma invenção dos cistercienses de Alcobaça, no período dos Filipes, mas parece ter havido uma tradição anterior que não pode ser posta de lado tão facilmente e que a teologia da história pode aceitar, contrariamente às interpretações positivistas ou materialistas, pois o conceito de intervenção divina no mundo, embora de forma misteriosa, é o que fundamenta a filosofia providencialista e escatológica do devir histórico.

Tudo depende no fundo, das crenças ou da sensibilidade religiosa do próprio historiador, como homem. O milagre de Ourique não é mais improvável do que as aparições milagrosas da Virgem em Fátima ou Medugorje, na Jugoslávia. Aliás, todos vivemos de um sistema de crenças, seja em Deus, seja nas conquistas (sempre incompletas e insatisfatórias) da ciência, seja na materialidade do mundo, que não explica a energia e a unidade dos indivíduos, a invariância e a teleonomia das moléculas, dos genes, dos seres naturais. Todas as contas feitas, a interpretação do universo como um feixe de energias de origem divina e possuídas de um dinamismo em ordem ao sobrenatural ou da história humana como a de um criacionismo em livre movimento escatológico, assistido pela Providência ou pela Graça, ainda é a concepção que melhor responde, ainda que incompletamente, às interrogações humanas, já que a investigação científica nunca ultrapassou a análise fragmentária e desligada de fenómenos que estuda cada vez melhor nas suas leis e efeitos parciais, mas que não está hoje mais perto de entender na sua fonte originária, nos seus primeiros princípios, na sua teleonomia, na sua razão íntima, e já que o materialismo é uma metafísica pela epiderme, usada operativamente para fins político-ideológicos.

A falta de documentos coetâneos e comprovados a respeito do milagre de Ourique, aliás, não abona nem a favor nem a desfavor, pois todos nós, ao longo das nossas vidas e experiências, presenciámos ou soubemos de muitas coisas importantes de que não ficou documento escrito, sem que por isso tenham perdido realidade. Das motivações autênticas de actos políticos internos ou diplomáticos não constam os Diários da República, os discursos oficiais ou as reportagens jornalísticas, não sendo o segredo ou o sigilo sinónimos de nulidade. Isto para não falar sequer daquelas evidências íntimas, daquelas experiências pessoais que nunca chegam à exteriorização, mas que sabemos conterem uma parcela considerável de verdade.

Antes da narrativa de Frei Bernardo de Brito, o cronista maldito por toda a historiografia positivista e materialista, há contudo referências literárias ao milagre de Ourique, à tradição das Cinco Chagas que então teriam sido doadas por Cristo a D. Afonso Henriques e ao juramento deste último na véspera da batalha.

As alusões do Bandarra (1500-1566) nas suas Trovas, são explícitas. Escritas entre 1530 e 1540, são pois muito anteriores à historiografia de Alcobaça:

 

As chagas do redentor,

E salvador

São as armas do nosso Rei:

Porque guarda bem a Lei,

E assim a grei

Do mui alto Criador,

Nenhum Rei, e Imperador

Nem grão Senhor,

Nunca teve tal final,

Como este por leal,

Por ser leal,

E das gentes guardador [5].





Destas trovas infere D. João de Castro, neto do famoso vice-rei da Índia, no seu texto intitulado Paráfrase e Concordância de Algumas Profecias do Bandarra, Sapateiro de Trancoso, datado de 1603: com esta profecia se corrobora o juramento d’El-Rei D. Afonso Henriques: e ficam os inimigos da glória de Portugal, que lhe negam as cinco chagas por armas, convencidos e confusos em seus ditos e livros. Vendo Deus a incredulidade e inveja dos maus ajudados do grande descuido dos Portugueses, e maior culpa dos seus historiadores: quis conservar no fundo do esquecimento tantas centenas de anos aquele juramento: e confirmado depois nestes nossos tempos por boca do seu servo Bandarra, pelo qual quis manifestar seus segredos, afirmando e confirmando de novo a mercê que fez de dar as suas chagas por armas aos Reis de Portugal [6].

Um pouco antes de D. João de Castro escrevera Frei Bernardo de Brito na Crónica de Cister [7], o texto célebre sobre o milagre de Ourique, que Frei António Brandão reproduziria depois na Monarquia Lusitana [8]. Sob a ocupação castelhana, os cistercienses continuam a lutar pela independência portuguesa...

Vale a pena recordar alguns passos da narrativa de Frei Bernardo de Brito, até pela sua beleza literária.

Tendo-lhe sido anunciado um sinal divino por um velho que o procurou na sua tenda de campanha e que dele tinha sido advertido em sonho, terá sido durante a noite, à segunda vigia, que o nosso Infante observou da parte oriental um resplendor formosíssimo, o qual pouco a pouco se ia dilatando e fazendo maior. No meio dele viu o salutífero sinal de Santa Cruz e nele encravado o Redentor do mundo, acompanhado em circuito de grande multidão de Anjos...

Mais adiante, e respondendo às palavras de D. Afonso, assim lhe terá falado Jesus Cristo: «Não te apareci deste modo para acrescentar tua fé, mas para fortalecer teu coração nesta empresa, e fundar os princípios do teu Reino em pedra firmíssima. Tem confiança, porque não só vencerás esta batalha, mas todas as mais que deres aos inimigos da Fé Católica. Tua gente acharás pronta para a guerra, e com grande ânimo pedir-te-á que com o título de Rei comeces esta batalha; não duvides de o aceitar, mas concede livremente a petição, porque eu sou o fundador e o distribuidor dos impérios do mundo, e em ti, e tua geração, quero fundar para mim um Reino, por cuja indústria será meu nome notificado a gentes estranhas. E porque teus descendentes conheçam de cuja mão recebem o Reino, comporás as tuas armas do preço com que comprei o género humano e daquele porque foi comprado dos Judeus, e ficará este Reino santificado, amado de mim pela pureza da Fé e excelência de piedade.»

O Infante D. Afonso, quando ouviu tão singular promessa, se prostrou de novo por terra, e adorando ao Senhor lhe disse:

«Em que merecimentos fundais meu Deus uma piedade tão extraordinária como usais comigo? Mas já que assim é, ponde os olhos da vossa misericórdia em os sucessores que me prometeis, conservai livre de perigos a gente portuguesa, e se contra ela tendes algum castigo ordenado, peço-vos o deis antes a mim e meus descendentes, e fique salvo este povo, a quem amo como único filho.»

A tudo deu o Senhor resposta favorável, dizendo como nunca, dele, nem dos seus apartaria os olhos da sua misericórdia, porque os tinha escolhido por seus obreiros e sagradores, para lhe ajuntarem grande seara em regiões apartadas [9].




Alguns decénios depois, na mesma ordem de ideias, viria o Padre António Vieira a atribuir a Portugal a profecia bíblica do Quinto Império, interpretando-o em honra da nossa Nação, dizendo que a sua cabeça seria um rei português e o Reino de Portugal, fundando este pensamento principalmente nas palavras de Cristo a El-Rei D. Afonso Henriques: - volo in et in semine tuo imperium mihi stabiliri [10].

Decerto que a narrativa circunstanciada e romanceada de Frei Bernardo de Brito deve ter sido uma elaboração erudita realizada com fins patrióticos, até para levantar o ânimo dos Portugueses em tempo de ocupação estrangeira. Mas o seu teor literário não contradiz por si próprio a veracidade possível ou impossível da tradição. É precisamente o que sugere o historiador alemão Henrique Schaeffer que, citando António Pereira de Figueiredo e os seus Novos Testemunhos da milagrosa aparição de Christo a El-Rei D. Afonso Henriques, Lisboa, 1786, a par de outros documentos, escreve: Conquanto este documento seja reconhecido como falso, o que é, porém, digno de nota, é que uma tradição (que se pode seguir até aos tempos mais afastados da monarchia) aponte aquele milagre e relate as circunstâncias, que, no essencial, não são diferentes das indicadas no diploma dito [11].

Não relevarão estes textos, realmente, de uma convicção secular fidedigna, transmitida de geração em geração? Não será esta uma das ocasiões em que a arqueologia, como ciência dos princípios, deve preencher as lacunas do documentalismo escrito?

O certo é que os Portugueses tiveram sempre, nos grandes séculos, a insuflar determinação e consciência de missão à sua actividade no mundo, uma transcendental confiança nos destinos superiores da pátria, garantidos pelas divinas promessas [12], como escreveu Sampaio Bruno, transcendental confiança que a seu ver principiou a esbater-se com o voltairianismo do começo do século, infiltrando-se na maneira de pensar da nossa gente e tendendo a diluir-se num cepticismo genérico, a partir do momento em que à tosca, cruel terra natal começaram a regressar os exilados do liberalismo...

Para Sampaio Bruno o patriotismo português, que foi notório na Europa e para além dela, derivava em grande parte da tradição nacional anónima da aparição de Cristo em Ourique e do juramento de D. Afonso Henriques, muito anterior a D. João de Castro, a Frei Bernardo de Brito, a Frei António Brandão e ao próprio Bandarra...

(In António Quadros, Portugal, Razão e Mistério, I, Guimarães Editores, 1988, pp. 167-176).

 




[1] A. H. de Oliveira Marques, História de Portugal, I Vol., Ed. Àgora, 3.ª ed., Lisboa, 1973, p. 66.

[2] Vieira Guimarães, A Ordem de Christo, Typographia da Empreza da História de Portugal, Lisboa, 1901, p. 3.

[3] H. Schaffer, História de Portugal, obr. cit., p. 26.

[4] Vieira Guimarães, A Ordem de Christo, obr. cit.; Schaeffer, História de Portugal, I Vol., obr. cit.

[5] «Profecias» de Bandarra, Sapateiro de Trancoso, Ed. Vega, Lisboa, s/ data, p. 64. Variante dos últimos versos: Senão vós bom Portugal / Por ser leal, / e das gentes amador.

[6] Ed. Lopes da Silva, Porto, 1942. Ver o II Vol. da nossa obra A Teoria da História em Portugal, Ed. Espiral, Lisboa, 1967, p. 102.

[7] Livro III, Cap. II, Alcobaça, 1602.

[8] Parte III, Livro X, Cap. V.

[9] Monarquia Lusitana, obr. cit.

[10] António Vieira, Defesa do livro intitulado «Quinto Império», que é a apologia do livro «Clavis Prophetarum» e respostas das proposições censuradas pelos Inquisidores, estando recluso nos cárceres do Santo Ofício de Coimbra, in Obras Escolhidas, Vol. VI, Liv. Sá da Costa, Lisboa, obr. cit.   

[11] H. Schaeffer, História de Portugal, I. Vol., obr. cit., p. 38.

[12] Sampaio Bruno, O Encoberto, Liv. Moreira Editora, Porto, 1904, p. 285.


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