Escrito por André Teixeira
Nos alvores do século XVI, parece que na Ásia ninguém tomara ainda consciência do perigo que representava a supremacia dos Turcos. Quem poderia imaginar que eles iam em breve alterar o mapa do Velho Mundo por quatro séculos? Mais do que a presença dos Turcos nas fronteiras da Síria, que lhes estava então submetida, preocupava o sultão do Cairo a situação desastrosa das suas finanças, cuja ruína os Portugueses vieram consumar, obstinando-se a destruir o tráfego das especiarias. Entretanto, julgava-se ainda senhor da maior potência militar islâmica, o que realmente fora um século antes. O valor dos seus Mamelucos não passava já de uma lenda, de tal forma se dissolvia na rotina militar e na anarquia política [Os Mamelucos eram escravos de origem grega, turca ou eslava que serviam na milícia egípcia e cujo chefe tomou o poder em 1254, fundando a dinastia do mesmo nome]. Mas o prestígio do Egipto, sede do Califado, era ainda tão grande que os países vizinhos partilhavam as ilusões do sultão. Pois não tinham essas ilusões inspirado às comunidades muçulmanas do Malabar uma reacção surpreendente quando procuravam libertar-se dos Portugueses? Como seria possível que tais comunidades, dispondo de marinheiros exercitados e estaleiros navais sempre com reservas de madeira e cordoaria, tivessem podido socorrer-se de um país desprovido desses mesmos recursos?
Desde 1503, o sultão procurava a todo o custo organizar uma esquadra de guerra para expulsar os Portugueses do oceano Índico. Fora necessário trazer madeira pelo mar desde as florestas da Cilícia até ao Suez e levantar tropas para não se afectarem os Mamelucos às expedições de além-mar. Deste modo reuniu-se um exército díspar, em que os “Rumes” da Anatólia se misturavam com os guerreiros curdos e turcomanos, com os marujos magrebinos e aventureiros de qualquer nação convertidos ao islão.
Nos finais de 1505, conduzida pelo almirante Mir Husain, a frota egípcia tinha, enfim, dado à vela para a Índia. Havia parado no caminho com o intuito de pacificar o Hejaz, na costa da Arábia. A campanha durou dezoito meses e desagregou-se longe das suas bases, por falta de material e dinheiro. Enquanto o sultão mandava, rapidamente, um emissário a Veneza, pedindo o fornecimento de galés, remos, artilharia e cobre que a Sereníssima jamais iria entregar-lhe, a bordo surgiam graves perturbações: debalde, os homens esperavam o soldo e organizaram incursões devastadoras sobre Gidá, o porto das cidades santas. Em Agosto de 1507, dezasseis navios tinham, enfim, largado para o mar, seguindo de perto a esquadra de Albuquerque, então a caminho do Oman.
Não parece que a frota egípcia se tenha apercebido da presença dos Portugueses naquelas paragens, pois não se deteve a persegui-los. Incansavelmente esperada pelos mercadores do mar da Índia havia já três anos, a frota singrava em direcção ao porto guzarate de Diu. O sultão do Cairo soubera escolher muito bem a sua base. Diu encontrava-se, então, fora do alcance das patrulhas portuguesas, e, além do mais, era dirigida por um governador enérgico e hábil. Malik Ayaz era um escravo liberto, provavelmente originário dos Balcãs, que Mahmud I do Guzarate distinguira. Também este último significava uma garantia para o sultão do Cairo. Acérrimo defensor do Islão, era um dos soberanos mais poderosos da Índia.
Brasão de Armas de D. Manuel I |
Iluminura do período manuelino, "Livro 3 Místicos". |
Assim Qâsawh al-Chawrî tencionava pôr fim a esses Portugueses, desconhecidos até há pouco no Oriente, e que de repente haviam surgido para enfraquecer as suas hipóteses de vencer o único inimigo que de facto o preocupava: o jovem xá da Pérsia Ismael, que não atingira ainda os vinte anos. Oriundo do Azerbeijão onde viveu a infância, fora elevado ao poder pelos sufis de um movimento xiita de extremistas que viam nele a reincarnação de Ali, genro de Maomé. Do Azerbaijão a Fars, talhou um reino, derrubando os últimos príncipes turcomanos que, então, partilhavam as províncias do Irão Ocidental. Em 1507, era a grande ameaça do país curdo, chegava ao Iraque e à Anatólia, impondo o xiismo em todo o lado, a preço de execuções maciças e provocando importantes migrações de sunitas e xiitas de outras tendências. No Egipto, em Ormuz, na Ásia Menor, os refugiados lembravam com terror os bandos conduzidos por Xá Ismael, esses “cabeças vermelhas” que se dizia serem antropófagos. O Egipto começara a preocupar-se em 1501; após a queda de Tabriz, os Turcos ficaram alarmados com a perspectiva das consequências da campanha organizada por Ismael contra a Anatólia, onde tinham rebentado fortes motins. Mas ainda mais do que as suas conquistas militares, a personalidade do jovem xá espalhava desordem; Ismael era um místico, objecto de culto fanático que mobilizava lutadores ocasionais em todo o lado, felizes com a oportunidade de morrerem por glória dele. A febre ia ganhando os confins do império mameluco e as tribos da Anatólia otomana.
Rodes e seu Colosso (estátua do titã-deus do Sol da mitologia grega, Hélios, erguida em 280 a.C.). |
A entrada do antigo porto, onde se situava o Colosso de Rodes. |
A ameaça xiita teve como efeito aproximar os dois impérios
sunitas, a tal ponto receavam, um e outro, a desestabilização provocada pelas
guerras religiosas. Paralisado pela sua ruína financeira, o Egipto ia ficando
cada vez mais dependente do material bélico que lhe enviavam os otomanos, não
só para estancar a vaga do xiismo como para contrariar as empresas dos
Portugueses, os quais, aliás, não iriam confinar-se ao oceano Índico, mas em
breve tomariam autoridade nova no Mediterrâneo, encarnada por André de
Amaral, chanceler da ordem dos cavaleiros de Rodes. Este português veio a ser a
ponta de lança da política de D. Manuel no Levante, não cessando de manobrar
contra os interesses do Egipto.
O sultão não podia ter em conta o apoio de Veneza no seu desejo firme de exterminar os Portugueses, pois se é verdade que indivíduos venezianos serviram os interesses das potências islâmicas, não o fizeram, como se julga frequentemente, por incitamento da República. A necessidade de manter o equilíbrio nas trocas impelia Veneza a defender o seu lugar nos mercados egípcios, mas não estava disposta a ceder às exigências políticas, e permanecia rebelde a qualquer aliança diplomática ou militar. Os seus agentes continuavam a suportar troças e prisões, seguidas de regateios e concertações destinados a vergar a resistência das autoridades de Veneza. Muitos eram os concorrentes: Genoveses, Catalães e Franceses ansiavam por tomar-lhe o lugar e desenvolviam intrigas no Cairo e em Alexandria.
Se as empresas do Xá Ismael preocupavam os vizinhos, davam-lhe, por outro lado, prestigiosa fama na Europa, onde se falava da aversão que sentia por Turcos e Árabes. Semelhante atitude fazia-o entrar nos projectos de destruição dos seus impérios.
Mesmo se os Europeus tinham apenas noções confusas de xiismo, estavam criadas grandes esperanças numa eventual aliança com essa figura a quem se dava o cognome de “o Sofi”.
Ao sulcar as águas de Ormuz, teria Albuquerque consciência das transformações que se punham em movimento? Não sabemos a que ponto ele conhecia todo esse mundo. As classes dirigentes do Oman e Ormuz estavam, sem dúvida, mais bem informadas, quer através de espiões quer pelos relatos de refugiados do Irão, mas encontravam-se demasiadamente absorvidas com problemas locais, para se anteciparem às consequências dos movimentos em curso. O Turco permanecia longe, Xá Ismael animado por ambições mais territoriais que marítimas, mas os Portugueses estavam bem presentes nas suas muralhas ou sobre os escombros das cidades. Não sabemos o que inspirou às cidades do Oman reacções tão diversas, o motivo por que umas escolheram capitular e outras resistir até à destruição. Ainda que todas dependentes da vassalagem a Ormuz, tinham mantido ligações estreitas com as forças beduínas do interior, que se manifestaram no momento do volte-face de Mascate. Talvez os portos que desejavam quebrar a tutela de Ormuz se tenham submetido aos Portugueses por verem neles um mal menor transitório, na esperança de promoverem, num segundo tempo, o regresso à influência omanita.»
Geneviève Bouchon (Afonso de Albuquerque: o Leão dos Mares da
Ásia»).
Localização de Calecut |
Calecut
O primeiro porto que os portugueses tocaram na costa indiana foi secularmente um dos que sempre mais se lhe opôs. De facto, os desentendimentos que se verificaram aquando da estadia de Vasco da Gama na cidade em 1499 perduraram nas décadas seguintes, constituindo-se os soberanos do reino de Ernad, com o título de samorim, como dos mais implacáveis adversários do Estado da Índia. Os conflitos de finais de Quatrocentos e das primeiras décadas da centúria seguinte tinham uma justificação clara: antes dos portugueses chegarem ao Índico, este reino vivia do comércio com o Mar Vermelho, pelo que “a sua política marítima se subordinava aos interesses dos mercadores árabes aí estabelecidos” [1]. Ora, por um lado, era precisamente esta via, responsável pelo afluxo de produtos orientais à Europa por via do Levante, que os portugueses procuravam substituir, contornando o continente africano e forjando a nova rota do Cabo. Por outro, na concepção de D. Manuel I, e em boa medida dos monarcas portugueses da segunda metade do século XV, a expansão marítima justifica-se também pela procura de aliados, que ajudassem na luta contra o poder muçulmano. O desconhecimento dos costumes, da geografia religiosa asiática e da própria realidade político-económica do Índico contribuíram decisivamente para o fracasso dos contactos estabelecidos pelo Gama. Porém, os fundamentos da oposição de Calecut face aos portugueses permaneceram, não fossem os seus interesses diametralmente antagónicos [2].
A frota de Pedro Álvares Cabral dirigiu-se para o Índico ainda idealizando uma Índia povoada de cristãos, confundidos no terreno com os hindus pelo próprio Vasco da Gama, e com a possibilidade de expulsar os mercadores muçulmanos do comércio asiático, nomeadamente no porto de Calecut. Foi, contudo, durante a permanência desta esquadra na Índia que os sonhos portugueses se desfizeram, esboçando-se os entendimentos políticos e mercantis que vigoraram daí em diante na costa do Malabar. De facto, muito embora recebido pelo samorim, que permitiu o estabelecimento de uma feitoria no seu porto, Cabral cedo notou o poder de que gozavam os tratantes islamistas e o apoio que o soberano lhes dispensava. O primeiro estabelecimento português nesta cidade teve assim vida curta, já que pouco depois de assentadas as pazes, numerosos ardis forjados pela comunidade muçulmana, nomeadamente o boicote ao fornecimento de especiarias, levaram a que a agência comercial portuguesa fosse atacada, tendo sido mortos o feitor Aires Correia e boa parte dos seus homens [3].
Dispomos de escassas informações sobre esta primeira feitoria portuguesa em Calecut. É certo que se localizava junto à praia, num local onde residira uma comunidade de comerciantes chineses, por isso designado de “Chinacota”, tendo concorrido para a sua construção trabalhadores locais. Seria composta por várias casas, uma de maiores dimensões para armazenamento das mercadorias, outras mais pequenas para aposento da gente, outra para servir de igreja e outra ainda para recolhimento de frades. Todo o conjunto terá sido cercado externamente, embora aparentemente com uma estrutura de pouca robustez, aliás comprovadamente insuficiente para resistir ao assédio inimigo. Durante o ataque, os sitiantes escalaram as paredes por várias partes, sinal da sua baixa altura, tendo os portugueses adoptado como única forma de defesa o abrigo na maior parte das habitações. Os muçulmanos descobriram-lhe, porém, o telhado vitimando os refugiados [4].
Nos anos seguintes o esforço militar português no Índico fez-se essencialmente contra Calecut, contando para o efeito com os seus aliados de Cochim, Cananor e, mais tarde, Coulão, reinos do Malabar que procuravam sacudir o jugo que lhes era imposto pelo mais poderoso e rico samorim. O conflito era, assim, muito mais que uma simples contenda entre muçulmanos e cristãos, envolvendo velhas guerras indianas, para além de interesses mercantis italianos, pois se os portugueses beneficiavam do apoio de genoveses e florentinos, contavam com a oposição dos venezianos, principais beneficiados europeus das rotas do Levante.
Depois de em 1500 Álvares Cabral se despedir de Calecut com forte bombardeamento, em 1502 foi Vasco da Gama quem, na sua segunda viagem ao Oriente, pôs a ferro e fogo a capital deste potentado inimigo. O samorim hesitou ainda em desencadear negociações com os portugueses, ciente da fractura existente no seu reino entre a comunidade mapila, os “mouros da terra”, com interesses essencialmente no trato indiano, e a dos pardexis, os “mouros de Meca”, árabes ali estabelecidos, com proveito sobretudo nas rotas do Levante. Se os primeiros admitiam a aliança com os europeus, porque não punha em causa e até podia promover as suas actividades, os segundos, nesta fase mais poderosos, opunham-se a ela determinantemente. Assim, o Gama, bastante exigente nas condições de paz, não chegou a consenso com o samorim, acentuando-se a animosidade.
As armadas portuguesas subsequentes preocuparam-se por defender o seu aliado Cochim contra a invasão de Calecut, diligenciando igualmente na destruição do poder naval destes inimigos. As vitórias militares de 1503 e 1504, tanto em terra como no mar, exasperavam os ânimos do samorim, levando à deserção de muitos dos seus apoiantes; tal facto obrigou-o a recorrer à grande potência do mundo islâmico prejudicada pelas navegações portuguesas, o Império Mameluco, já referido. A partir desta data, as atenções dos europeus viraram-se decisivamente para o perigo de uma armada preparada por este potentado, vendo nela a grande ameaça à sua presença no Índico. Tal facto levou-os a uma preocupação extrema pela hegemonia marítima na região, tarefa de que se ocupou com particular diligência D. Francisco de Almeida. Como se viu atrás, o recontro com as forças rumes enviadas pela Corte do Cairo ocorreu em duas ocasiões, uma inconclusiva em 1508 junto a Chaul, outra no ano seguinte ao largo de Diu, na qual os portugueses obtiveram clara vitória, destroçando a armada opositora [5].
A superioridade naval lusa tornou-se então inquestionável, mas tal facto não significou a neutralização completa de Calecut. Em 1510, Afonso de Albuquerque e o marechal D. Fernando Coutinho realizaram, por ordem de D. Manuel I, um assalto àquela cidade. Muito embora os portugueses tenham conseguido bater-se até ao paço do samorim, alguma descoordenação na hoste e a cobiça por um avultado saque permitiram aos locais desferir um contra-ataque mortal sobre a ala do marechal, perecendo grande número de portugueses. As conquistas de Goa e Malaca por Albuquerque e o acentuar do domínio luso nos mares levaram, porém, a comunidade pardexi de Calecut a dispersar-se, motivando o samorim a regressar às negociações, que ainda assim se arrastaram nos anos seguintes [6].
Assim, em 1511 ter-se-á dado o primeiro convite para que se celebrassem pazes, tendo então sido hipoteticamente prometida a autorização para a construção de uma fortaleza. Afonso de Albuquerque, de partida para a expedição de Malaca e sem ordens de Lisboa que permitissem a inflexão na tradicional política de hostilidade face ao velho inimigo, enviou como emissário a Calecut Simão Rangel. A ordem do governador não foi, porém, cumprida, coligando-se um grupo de detractores de Albuquerque, que exercia funções em Cochim, para neutralizar o emissário [7]. Na verdade, a aproximação dos portugueses a Calecut não era só mal vista por certos fidalgos portugueses, adversários da política belicista de Albuquerque. Também os reis aliados, com Cochim à cabeça, temiam esta aproximação, receando que ela fizesse perigar o seu papel, enquanto principais fornecedores de pimenta aos europeus e base fundamental das suas actividades no Índico [8].
No ano seguinte esta reconciliação entre portugueses e Calecut teve novo avanço. Muito embora Albuquerque não passasse ao Malabar, ficando absorvido na defesa de Goa, enviou lá seu sobrinho D. Garcia de Noronha, com incumbência de carregar as embarcações que nesse ano rumariam a Lisboa e averiguar sobre o estado das relações com aquele potentado. D. Garcia recebeu recados do príncipe de Calecut para que se avistassem, o que veio a suceder no final de 1512. Nessa ocasião foi proposta a paz aos portugueses, admitindo-se que estes constituíssem uma fortaleza e estabelecessem uma feitoria em Calecut, podendo o governador enviar seus delegados, para que estes escolhessem o local que mais lhes conviesse; disponibilizavam-se também todos os materiais necessários à obra. O resultado das conversações animou certamente Albuquerque que, antes mesmo de partir para o Mar Vermelho, nos inícios de 1513, enviou lá Francisco Nogueira, Gonçalo Mendes e Tomás Fernandes, com as funções de capitão, feitor e mestre de obra do empreendimento. Estes levariam instruções para que a construção se fizesse junto ao paço do samorim [9]. A iniciativa ficou, porém, mais uma vez sem efeito, fosse pelo arrependimento do soberano local em relação à sua oferta, fosse pela pressão do referido «grupo de Cochim» e mesmo dos reis de Cochim e Cananor [10].
A aproximação entre os velhos inimigos conheceu progressos com a transição política no reino indiano, pela morte do antigo soberano em Fevereiro de 1513, talvez vitimado por conjura palaciana, e ascensão do seu irmão ao trono. Ainda como príncipe herdeiro, o novo monarca, bastante apoiado na comunidade mapila, defendera sempre o estabelecimento de relações cordiais com os europeus, crente de que as hostilidades trariam certamente prejuízos àquele reino. Foi, pois, após o regresso de Albuquerque da jornada de Adem, em Outubro daquele ano, que “as coisas de Calecut tomaram assento”, como revelou em carta a D. Manuel I [11]. Por esta altura fazia-se já a obra da fortaleza, implantada junto ao paço do samorim, como sempre fora considerado prioritário, mas também junto ao porto onde ancoravam as naus, protegido por um recife. A obra era dirigida pelo citado Tomás Fernandes, que ali ficou até ao termo da construção; este era classificado pelo governador como “maravilhoso homem”, sendo motivo de mercê os seus vastos serviços prestados à Coroa no Oriente, no exercício do ofício de mestre pedreiro [12]. Os mencionados Francisco Nogueira e Gonçalo Mendes superintendiam os trabalhos, como futuro capitão e feitor. Quanto à forma da construção, muito embora de forma lacónica, Albuquerque revelava assemelhar-se bastante com a de Cochim.
A mesma informação deu-a o governador “com indisfarçável orgulho” em nova missiva, pouco menos de um mês depois [13], quando parece ter tomado em mãos aquela obra, que há muito se arrastava. Nessa data estavam já edificadas duas torres da banda do mar e o lanço de muro que as ligava, levantando-se atrás delas a torre de menagem. Albuquerque pensava então fazer outras duas torres na retaguarda, dando à construção forma quadrangular, defendendo a porta principal com um baluarte.
Calecut nas Lendas, de Gaspar Correia, c. 1560. |
É o cronista Gaspar Correia quem fornece, mais uma vez, um retrato pormenorizado da tipologia da fortificação que então se erigia em Calecut, embora aponte como data de início da obra os finais de 1512 e acrescente pormenores difíceis de comprovar. A observação directa do conjunto edificado, aliás vertida para o desenho que elaborou algumas décadas depois, é um argumento de peso quando procuramos traçar a fisionomia da construção levantada pelos portugueses, mesmo que cronologicamente os factos tenham um encadeamento deficiente. Assim sendo, a imagem que sobressai no seu texto e iconografia deverá ser entendida como um produto final de uma obra que, como se verá, durou pelo menos um ano a estar concluída.
Diga-se que o cronista Fernão Lopes de Castanheda, além da citada missiva de Albuquerque, confirma os tais traços desta caracterização [14].
A fortaleza apresentava a forma quadrangular gizada pelo governador, medindo quase 53m de lado. Tinha quatro torres também quadrangulares nas extremidades do recinto, com um sobrado, tendo alternadamente faces incorporadas no pano de muralha, ou avançadas em relação a este. Esta solução arquitectónica dificultava, necessariamente, a defesa dos muros da fortificação, porquanto torres neles integradas não permitiam o flanqueamento do tiro de artilharia. Adossada ao pano de muralha, erguera uma quinta torre quadrangular, esta sim totalmente avançada, permitindo a protecção da entrada principal do recinto, aliás única segundo o desenho e texto de Correia, virada para a banda do mar; talvez por estas características, o governador a tenha designado como baluarte. Finalmente, no centro do conjunto, destacada e isolada, estava a torre de menagem, com a mesma forma das demais, visivelmente mais espessa e alta, com dois sobrados; o acesso ao seu interior fazia-se por uma porta a alguns metros do solo, vencida por longa escadaria.
Quanto aos dispositivos de fogo e locais de fixação de artilharia, eles eram múltiplos e estão largamente assinalados no desenho do cronista. Em toda a base da fortificação, tanto nos panos da muralha como nas torres que comunicam para o exterior, foram rasgados orifícios, claramente identificáveis como bombardeiras, marcando a importância do tiro rente ao solo. Já as duas aberturas que ladeiam a mencionada porta, compostas por um buraco e fenda vertical superior, parecem poder classificar-se mais como troneiras. Refira-se ainda que, sobre este acesso, foi edificado um balcão avançado com três janelas, coberto de telhado, podendo especular-se se na sua base teriam sido rasgados matacães; iguais estruturas parecem estar representadas no desenho de Gaspar Correia, nas outras faces da construção. Todas as torres e panos de muralha eram culminados por ameias de corpo largo, sendo representados no desenho do cronista dispositivos de fogo instalados nas respectivas abertas, permitindo assim o tiro em altura, que “descobria toda a cidade” [15]; parece clara a existência de um adarve a toda a volta. Qualquer das torres apresentava rasgadas janelas, duas fileiras na torre de menagem, uma nas restantes, coincidentes com os correspondentes sobrados; não há qualquer referência de que estas pudessem servir para disparo de artilharia.
A toda a volta do interior da fortificação, adossadas ao pano da muralha, foram construídas “casinhas” para aposento da gente, notando-se de facto grande quantidade de portas viradas para o pátio do recinto, sinal de que estas eram fortemente compartimentadas e, portanto, de reduzidas dimensões. Ainda assim ocupavam uma área sensível, uma vez que o vão da fortaleza era de pouco mais de 26m. Na face interna Norte observa-se o despontar de um campanário, fazendo supor que a própria igreja ocuparia parte das construções referidas neste quadrante. Obedecia-se, assim, às instruções de Albuquerque, de que todos os homens da guarnição de Calecut se deveriam alojar e viver no interior do dispositivo fortificado, devendo o local de culto ser nele incorporado. No pátio central estava também aberto “um bom poço de água muito boa”, essencial para a sobrevivência entre muralhas. Fora da fortaleza, embora relativamente próximo, estava apenas a casa da pólvora, local onde era fabricada, representando-se igualmente dois fornos de cal. Finalmente, refira-se que em torno da fortificação existia um amplo descampado, uma esplanada talvez criada propositadamente pelos portugueses com intuitos defensivos, sendo esta totalmente rodeada pela povoação autóctone.
A fortaleza foi baptizada de Nossa Senhora da Conceição, pois fora na véspera do dia consagrado a esta santa que D. Garcia de Noronha lhe colocara a primeira pedra. Poucas referências dispomos sobre os materiais empregues na construção, embora seja certo que o samorim terá diligenciado junto dos seus oficiais para que fosse fornecida aos portugueses pedra e madeira, a qual foi disponibilizada directamente na praia onde se ergueu a fortaleza. Segundo o cronista, o andamento das obras foi bastante beneficiado pela forma como a pedra era cortada, sempre em cubos, facilitando assim a sua colocação nos panos de muralha e diminuindo os trabalhos de lapidação. Terá sido fabricada cal localmente, talvez nos dois fornos atrás referidos, com o concurso das autoridades de Calecut, embora mediante o pagamento do seu valor de mercado. Está também documentado o contínuo abastecimento deste material a partir de Cochim, transportado por portugueses ou asiáticos aliados, ora através do envio de componentes para o seu fabrico, a pedra e as conchas [16], ora transportando o produto já acabado [17].
Quanto à mão-de-obra, as informações são ainda mais lacunares. No início das obras seguiu de Cananor o pedreiro Jorge Meirinho, que levou consigo ferramentas necessárias às obras [18]. Mas muito mais significativo parece ter sido o emprego de pedreiros malabares, enviados a partir de Cochim [19]; tratar-se-iam de oficiais especializados, destinados a tarefas concretas, certamente com um convívio e uma relação de confiança já estabelecida com os portugueses, naquela praça que fora pioneira no seu estabelecimento na Índia. Segundo Gaspar Correia, foram também utilizados trabalhadores pedreiros da terra, fornecidos pelo samorim [20], o que não custa a acreditar, dada a grandiosidade da obra e a necessidade de serventes para as tarefas pesadas.
Em Setembro de 1514, no âmbito de uma viagem que realizou às fortalezas do Malabar, Albuquerque passou em Calecut, “onde a fortaleza já era quase acabada”, no dizer de Gaspar Correia, ou pelo menos “posta em boa altura”, como afirma João de Barros. Em qualquer dos casos, parece que o samorim terá colaborado na obra, pelo que as pazes assentadas anteriormente foram solenemente reafirmadas [21]. Porém, se os primeiros tempos da presença portuguesa neste porto permitiram uma certa recuperação da economia, muito abalada desde que estes frequentavam o Índico, os anos seguintes vieram revelar ao novo samorim os seus prejuízos. O afastamento de muitas embarcações de mercadores guzerates e árabes, que ligavam o mundo malaio às suas regiões de origem, teve como inevitável consequência a quebra de réditos devidos ao príncipe hindu, que se lamentava ainda de ter de partilhar os seus lucros com o monarca português [22].
A fortaleza de Calecut teve, de facto, uma curta existência de pouco mais de uma década. Como explica Luís Filipe Thomaz, ao mesmo tempo que os portugueses edificavam esta posição fortificada com o apoio da comunidade mapila da cidade, começavam a diversificar os seus interesses comerciais no Oriente. Daí em diante não importava só disputar aos “mouros de Meca” o transporte de mercadorias para a Europa, sobrepondo a rota do Cabo às do Levante. Os portugueses, dotados de posições em pontos nevrálgicos do Índico, imiscuíam-se cada vez mais nos tratos inter-asiáticos, passando de clientes a concorrentes dos “mouros da terra”, que naturalmente alteraram também a sua atitude. Entre 1520 e 1525 fomentaram uma série de revoltas contra os interesses portugueses em diversos pontos da Ásia, nomeadamente em Calecut. Nesta última data, o samorim rompeu a paz e cercou a fortaleza lusa, pelo que, gorando-se o estabelecimento de uma nova base de relacionamento amigável, o governador D. Henrique de Meneses decidiu abandonar e arrasar a fortificação, aparentemente seguindo ordens de D. João III ao vice-rei D. Vasco da Gama [23].
Os anos seguintes revelaram a oscilação de posição do Samorim face aos portugueses, num contexto de crescente protagonismo dos capitães muçulmanos que lideravam armadas de corso contra os europeus. Tal facto levou a que o novo soberano de Calecut voltasse a permitir a instalação militar portuguesa nos seus domínios, tal como o monarca europeu encomendara ao seu novo governador Nuno da Cunha. O intento foi levado a efeito em 1531, com a construção da fortaleza de Chalé, só abandonada quatro décadas depois [24].
(In André Teixeira, Fortalezas do Estado Português da Índia,
Arquitectura Militar na Construção do Império de Manuel I, Tribuna, 2008,
pp. 91-99).
[1] Cf. João Paulo Oliveira e Costa
e Victor Gaspar Rodrigues, Portugal y
Oriente..., pp. 42-43.
[2] Vide ibidem, pp. 41-45; Luís Filipe F. R. Thomaz, “Os portugueses e
a rota das especiarias”, in De Ceuta a
Timor..., pp. 169-187.
[3] Cf. ibidem, p. 52. Vide Luís
Filipe F. R. Thomaz, “Calecute”, in DHD,
I, pp. 161-168.
[4] Cf. Ásia, I, V, 5; História,
I, xxxvi e xxxviii; Lendas, I, pp.
185-186 e 202-203.
[5] Vide João Paulo Oliveira e Costa
e Victor Gaspar Rodrigues, Portugal y
Oriente ..., pp. 59-68 e 85-86; Luís Filipe Thomaz, “Calecut”, in DHD, I, pp. 161-168; José Virgílio Amaro
Pissarra, Chaul e Diu...
[6] Ibidem.
[7] Sobre este grupo, que incluía
nomes como Lourenço Moreno, Gaspar Moreira, António Real e Diogo Pereira, vide
Victor Luís Gaspar Rodrigues e Inácio Guerreiro, “O ‘grupo de Cochim’ e a
oposição a Afonso de Albuquerque”, in Stvdia,
nº 51, Lisboa, 1992, pp. 118-144.
[8] Cf. ibidem, p. 97. Vide Lendas,
II, p. 181.
[9] Cf. Ásia, II, vii, 6-7; História,
III, xcix; Góis, III, xxx. Vide
Geneviève Bouchon, Afonso de Albuquerque...,
pp. 277-282.
[10] Cf. Ásia, II, viii, 6; História,
III, cx.
[11] Carta de Afonso de Albuquerque
ao rei, de 30/11/1513 (CAA, I, pp.
132-134). Vide Ásia, II, viii, 6; História, III, cxix e cxxii; Góis, III,
xliii.
[12] Tomás Fernandes foi um dos
listados no conhecimento do feitor de Calecut Gonçalo Mendes ao feitor de
Cochim, de 02/08/1514, no qual se arrolavam os oficiais que tinham recebido
soldo naquela feitoria até Julho daquele ano (CAA, VI, pp. 119-121). Meses antes, este fora agraciado por Afonso
de Albuquerque em 100 pardaus “sobre seu soldo”, conforme o mandado do
governador ao referido feitor Gonçalo Mendes, de 29/12/1513 (CAA, V, p. 479).
[13] Carta de Afonso de Albuquerque
ao rei, de 24/12/1513 (referida por Pedro Dias, História da Arte Portuguesa no Mundo..., p. 190).
[14] Cf. Lendas, II, 329-34; História,
III, cxxvii.
[15] Cf. Lendas, II, p. 330.
[16] Mandado de Afonso de
Albuquerque, de Cananor, 04/12/1513, para o feitor de Goa Francisco Corvinel “que
por quanto João Rascão anda em serviço del rei a acarretar pedra para cal para
a fortaleza de Calecut dês a sua mulher o seu mantimento do tempo que ele no
dito cargo servir” (CAA, V, pp.
466-467) e mandado de D. Garcia de Noronha, de Cochim, 16/10/1514, com poder
delegado do governador, para o almoxarife dos mantimentos Álvaro Lopes dar dez
faraçolas de biscoito da terra “a 17 homens que vão em zambuco que daqui mando
carregado de concha para a dita fortaleza” (CAA,
VI, pp. 142-143).
[17] Mandados de D. Garcia de
Noronha, feitos em Cochim, a 27/01/1514 e 27/11/1514, com poder delegado de
Afonso de Albuquerque, para o almoxarife dos mantimentos Álvaro Lopes dar a
Çide Ale, embaixador do rei de Cambaia, 20 fardos de arroz e 10 chodenas de
manteiga para a gente da sua nau, “porquanto daqui foram duas vezes carregados de
cal para a fortaleza de Calecut” (CAA,
VI, p. 17), e mais seis paras de arroz a dez homens “que daqui mando em Zambuco
carregado de cal para a fortaleza de Calecut” (CAA, VI, p. 174).
[18] Mandado do capitão de Cananor
Jorge de Melo, de 27/09/1513, para que o almoxarife Lopo Álvares desse a Jorge
Meirinho, pedreiro “que vai a Calecut com Francisco Nogueira por mandado de D.
Garcia de Noronha”, enxadas, enxadões, picões e todas as ferramentas
necessárias à construção da fortaleza (AN/TT, CC, II-42-68).
[19] Mandados de D. Garcia de
Noronha, de Cochim, 26/06/1514 e 16/11/1514, com poder delegado de Afonso de
Albuquerque, para o almoxarife dos mantimentos Álvaro Lopes dar uma saca de
biscoito “aos pedreiros malabares que vieram de Calecut” (CAA, VI, p. 116) e sete fardos de arroz “a sete malabares pedreiros
que ora daqui mando para trabalharem na fortaleza de Calecut”, paga feita
naquele bem alimentar “por aí não haver” (CAA,
VI, p. 171). Vejam-se os mandados de pagamento de 11/15/1514, a homens que iam de
Cochim a Calecut transportando cal (AN/TT, CC,
II-53-43 e CC, II-53-70, referido por Pedro Dias, História da Arte Portuguesa no Mundo..., p. 190).
[20] Cf. Lendas, II, p. 332.
[21] Cf. Ásia, II, vii, 6-7; História,
III, cxxii; Lendas, II, p. 392.
[22] Cf. Geneviève Bouchon, Afonso de Albuquerque..., pp. 283-285.
[23] Cf. Luís Filipe Thomaz, “Calecut”, in DHD, I, pp. 161-168. Vide Sanjay Subrahmanyam, “A fundação
da fortaleza de Chalé (Chaliyam) e o sistema de relação de poder no Malabar (Kerala)”,
nota 87 à Década Quarta da Ásia, M.
Augusta Lia Cruz (ed.), Lisboa, CNCDP / Fundação Oriente / INCM, 1999, vol. II,
pp. 84-87.
[24] Vide as obras citadas na nota anterior.
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