quarta-feira, 26 de julho de 2023

A memória das raízes

Escrito por Franco Nogueira


O Gigante Adamastor



Alberto Franco Nogueira tripulando o seu veleiro "Corsário", algures junto à costa portuguesa.



«Da alteração da estrutura do Estado, como pretendem alguns, passar-se-ia à alteração do que é essencial na ordem económica e social existente. Não se trataria somente de remediar abusos, sanar injustiças, emendar erros, acusar incompetências, satisfazer queixas legítimas. Não se trataria apenas de acelerar o desenvolvimento, aumentar a produtividade nacional, melhorar a justiça social, repartir mais equitativamente a riqueza, expandir a educação e a cultura de massas, pôr enfim o progresso ao alcance de quantos constituem, a igual título, a comunidade nacional. Tudo isto deve ser feito; mas não é isto que está em causa. É outro o objectivo: dar à sociedade portuguesa uma configuração socialista, porventura na sua mais extrema expressão, e modificar em conformidade a estrutura social e económica. Não se procuraria somente corrigir excessos do capitalismo. Seria o desaparecimento da sociedade de competição, fundada na iniciativa pessoal e na propriedade privada, que daria lugar à absorção do indivíduo no Estado. Negar-se-ia a liberdade de espírito; não haveria margem para a aventura e a fantasia pessoal; e ignorar-se-ia o estímulo que representa a conquista de um benefício pelo esforço individual. Seria a abolição de toda a hierarquia impulsionadora; e toda a vida pública e privada e a própria alma humana seriam tecnicamente enquadradas e orientadas. Alguns, receosos destes resultados extremos, julgam poder parar em meio caminho, e sugerem a adopção de alguns ângulos do socialismo, rejeitando por outro lado alguns dos seus princípios básicos. Mas aqui temos de ver que se são possíveis as contradições no pensamento, estas não são viáveis quando se passa à acção. A uma política social tem de corresponder uma política económica, e com esta tem de alinhar uma política financeira, e todas têm de encontrar o seu fundamento numa estrutura do Estado, da moral colectiva, e da sociedade. Acima de tudo, interessa o comportamento do Estado em face do indivíduo, e neste particular não parecem viáveis quaisquer compromissos. Um povo e uma Nação não são apenas um conjunto de homens a trabalhar mecanicamente e um território não é apenas uma oficina: são igualmente uma alma, um espírito, e acima de tudo um destino que se sente, se pratica e se cumpre em comum. Negar-lhos, igualá-los a todos os outros, é anulá-los. Sem dúvida: um Estado moderno pode e deve ser social, no sentido de garantir o bem comum, arbitrar os conflitos de interesses, assegurar a justiça distributiva, manter a igualdade na aplicação da lei. Mas há um abismo entre o Estado social, que respeita a pessoa humana, e o Estado socialista, que a esmaga. Não está no carácter dos portugueses sujeitarem-se a este último.»

Franco Nogueira («Fecho de um Debate», texto baseado nas palavras pronunciadas em Lisboa, no cinema Tivoli, no decurso de uma reunião política, em 23 de Outubro de 1969, in «Debate Singular»).

 

«Num texto elaborado e recentemente publicado pelo Ministério da Educação para orientação dos professores do ensino secundário, podemos colher, entre muitos outros exemplos análogos, este modelo de estultícia pedagógica e mental: “Dá-se um zero a um aluno que não sabe quem escreveu 'Os Lusíadas'. Pois que se dê também um zero a um aluno que não sabe como se faz o queijo”. O Ministério da Educação ignora assim ou procede como se ignorasse, que saber o que são "Os Lusíadas" constitui um saber de carácter universal, implica valores universais como são os valores poéticos, cuja aprendizagem através de "Os Lusíadas" é a via que, por excelência, os portugueses têm a felicidade, ou a virtude histórica, de possuir, via que tem na adolescência a idade propícia para ser iniciada, pois é essa a idade na qual o ser humano pode concentrar todas as suas virtualidades somáticas, sentimentais e intelectuais na descoberta da poesia, como as pode concentrar na descoberta do amor. Por outro lado, "fazer o queijo" é coisa que em qualquer idade, por quem quer que seja e seja qual for o seu grau de ignorância ou sabedoria, de estupidez ou inteligência, pode ser imediatamente aprendida. E a terem de saber os alunos “como se faz o queijo”, então teriam de possuir também, e pelas mesmas razões, o conhecimento de uma infinidade de outros particulares e equivalentes conhecimentos, o que leva à conclusão de não haver no mundo homem algum que não fosse “chumbado” caso se aplicasse tal preceito escolar.»

Orlando Vitorino («Exaltação da Filosofia Derrotada», 1983).


« – Na situação de crise em que Portugal se encontra [estava-se então em 1978], fala-se muito dos riscos de uma perda da independência nacional. Há, por um lado, a transferência dos centros de decisão vitais para além-fronteiras, o que em certos casos é já um facto. Mas, para além desse ponto, crê que pode colocar-se, num prazo mais ou menos longo, o perigo dum desaparecimento de Portugal?

– (...) Os perigos, os riscos a que se refere são reais, dolorosamente reais. Há a ideia, segundo parece, de que Portugal, por ter mais de oitocentos anos de existência, é automaticamente eterno. Eu não conheço nenhum decreto que prescreva a eternidade de Portugal; e se o houvesse ainda era preciso que os demais respeitassem esse decreto; e a História mostra-nos países que apareceram e desapareceram, e até em épocas bem próximas de nós o facto se tem dado. Por que seria Portugal uma excepção? E atente nisto: Portugal é hoje um país empobrecido, muito para além da realidade aparente. Abandonámos o Ultramar, simplesmente, sem negociação; e estamos endividados para gerações: Repito: para gerações. Isto basta para nos aterrar, para nos alarmar. Mas há muito mais. Estamos a aplicar os empréstimos em salários e bens de consumo, e muito pouco em equipamentos e investimentos. Perdemos milhares e milhares de quadros  professores, engenheiros, médicos, gestores técnicos, etc. – que foram expulsos, destruídos: e cumpre não esquecer que um homem, sobretudo um homem qualificado, é o bem mais precioso e o investimento mais caro de um país. Depois, por falta de confiança, fugiram de Portugal alguns milhões de contos: não estou a justificar o facto: estou a apontá-lo. É incalculável o que saiu do país em obras de arte, jóias, mobílias, pratas: devem estimar-se em vários milhões de contos também. Embora fossem propriedade privada, pertenciam ao património cultural e artístico do país, e mais tarde ou mais cedo encontrariam o seu lugar em museus portugueses. Muito mais seria possível acrescentar. Parecia-me vantajoso que a massa dos Portugueses tomasse consciência destes aspectos para se aperceber de quanto o país foi e está sendo depauperado. Não são apenas os centos de milhões de contos que devemos e que, é bom não esquecer, temos de pagar. Há que entrar em linha de conta com os prejuízos a que aludi atrás. A vulnerabilidade de Portugal é portanto imensa. Para além de tudo, todavia, o facto decisivo é este: a vontade dos Portugueses. Se essa vontade for vigorosa, e firme, e tenaz, Portugal pode sustentar a sua independência, e retomar a sua autonomia em relação aos centros de decisão hoje exteriores. Recorda-se de que Herculano dizia que somos independentes porque o queremos ser? Eu tenho esperança de que saberemos continuar a querer. Ou seremos então a geração que vai trair todas, todas as gerações anteriores? Eu vejo que na União Soviética se exaltam e veneram as grandes figuras da História, desde Ivan o Terrível a Pedro o Grande, desde Catarina II a Tolstoi. Vejo que os Estados Unidos celebram todos os dias os seus grandes vultos, os seus grandes valores. Na Inglaterra, os grandes nomes – Isabel I, Shakespeare, Nelson, Wellington, mil outros – são sagrados, e são apontados diariamente à veneração pública. E é então num momento em que por toda a parte se proclama o nacionalismo, a independência dos povos, que nós vamos abdicar? Temos acaso vergonha de um Nuno Álvares, de um Camões, de um Infante, um D. João II, um Albuquerque? Acho que se impõe um regresso aos valores autênticos, permanentes, e há que proclamá-los mesmo perante os sorrisos sardónicos e benevolentes das mentalidades superiores. Das mentalidades daqueles que têm muitas teses intelectuais mas não sentem nada; e daqueles que por ignorarem tudo julgam saber tudo; e de quantos pensam ter a vida começado com eles sem ao mesmo tempo admitirem, para serem lógicos, que a vida também acabará com eles. Ou estará o dinheiro estrangeiro a influenciar a inteligência portuguesa. E a juventude portuguesa? Já não estremece e palpita com Portugal?

(...) – Pensa que é hoje importante o empreendimento do combate cultural pelos sectores mais jovens?

– Sim, sem a menor hesitação. Não acredito que as ideias se combatam com a força, e que sejam vencidas pela violência e pela repressão. As ideias combatem-se e destroem-se com outras ideias. Atrever-me-ia a dizer que, neste ponto, e em certo sentido, muito parece estar simplificado: a falência cultural da esquerda é patente, e não só em Portugal, aliás. Já reparou que as ideias, o vocabulário, os conceitos, até os slogans usados pelos nossos responsáveis de esquerda, são os mesmos, rigorosamente, os mesmos de há trinta, quarenta, cinquenta anos? Não há uma novidade de consequência, não há um pensamento que aponte caminhos além dos já experimentados e que comprovadamente falharam em toda a parte. Sim, o combate cultural é fundamental: nas escolas, nas universidades, nos meios sindicais, em toda a parte, em suma, há que denunciar os sofismas, os erros, os falsos princípios. Não com arrogância, nem como quem quer impor a sua verdade. Esse totalitarismo é apanágio da esquerda, de uma esquerda imaculada, única detentora da verdade, da isenção, do desinteresse, da santidade em suma. Apenas se deve proceder através da análise fria, do exame documentado, das conclusões objectivas já autorizadas pelos factos e pela história. Não importa, penso eu, a especulação ideológica, a criação brilhante das grandes abstracções intelectuais; importa mais demonstrar a inoperância, o não fundamento, as consequências funestas dos ideais de esquerda. O que se disse, o que se afirmou, o que se acusou, o que se tripudiou em Portugal, o que se defendeu, o que se atacou!! Recordo-me de que um jornal, cujo nome não cito, publicou em Maio de 1974 um artigo condenando as touradas, por alienantes, e que terminava assim: "o primeiro fascista português foi Afonso Henriques". Recordo-me de uma emissora dizer que Camões fora um poeta menor ao serviço de imperialistas. Que efeito teria hoje lembrar e documentar tudo isto?».

Franco Nogueira («Juízo Final»).




«Se, mesmo esquecendo de momento a catastrófica descolonização, a tentativa neo-totalitária de que o país foi alvo ou a desorganização da nossa economia e produtividade, é objectivo afirmar que o 25 de Abril representa efectivamente a mudança da ditadura para a legitimidade democrática, o certo é que, em si e por si não é uma data que simbolicamente identifique a pátria portuguesa; é uma data de significado conjuntural, mas não de significado essencial...

“A poesia é mais verdadeira do que a história”, disse certeiramente Aristóteles; realmente a história, inquérito nunca objectivo sobre o passado (jamais inteiramente documentável e cientificamente interpretável) é um conto narrado de forma diferente por cada época, por cada historiador, por cada prisma filosófico ou ideológico. Daí a fortuna e a desfortuna de sucessivas datas políticas tão depressa exaltadas como combatidas ou esquecidas...

O certo é que nós esquecemos todas as datas políticas da agitada história helénica, mas não esquecemos Homero, Ésquilo, Sófocles, Platão ou Fídias. Havia uma sabedoria nacional em ter-se compreendido que a nação portuguesa era simbolizada com muito mais verdade por um poeta ou por um poema, do que por uma efeméride política; sabedoria que parece ter-se perdido neste intuito de algum modo manipulatório de ritualizar o 25 de Abril, acontecimento tão enorme, que mereceria ser sobreposto a todos os outros de que a existência portuguesa foi fértil.

Ora, sendo perfeitamente legítimo que a comemoração do 25 de Abril tenha vindo substituir a do 28 de Maio, já não o parece que a tenham preferido à do 10 de Junho, que para muitos portugueses, senão para a maioria, continua a ser o verdadeiro Dia de Portugal...

(...) “O rito é o mito em acto”, citei, atrás, não por acaso.

Talvez que a intenção tenha sido afinal a de mitificar o 25 de Abril, inserindo-o a partir de agora no ritual da nossa liturgia cívica e esperando-se que a repetição, a solenidade e o ditirambo acabem por fazer esquecer aos portugueses o reverso da medalha.

E talvez que se procurasse também (matando dois coelhos com a mesma cajadada), desmistificar o nosso nefando poeta colonialista, que encheu de quimeras a cabeça tonta dos portugueses, fazendo-os acreditar que este povo significou alguma coisa na história universal precisamente com a gesta (para alguns ainda indigesta!) da expansão marítima, que nos teria desviado do nosso destino peninsular e europeu.




Mas ao contrário, é precisamente na substância mítica, psicológica e filosófico-histórica de uma epopeia como “Os Lusíadas”, actualizada por Fernando Pessoa na “Mensagem”, que é possível discernir o carácter e a identidade do povo português, ou a sua estrutura cultural sublimada; e isto é verdadeiro, mesmo a partir da hodierna perspectiva anti-colonialista, tão certo é que ambos os poemas exprimem a motivação profunda da personalidade e da independência de Portugal: o não ter sido esta meramente vegetativa e antes ter sido uma entidade colectiva motriz da evolução humana e social, uma pátria ecuménica que efectivamente “deu novos mundos ao mundo”.

E esta perspectiva sobre a identidade portuguesa não terminou o seu ciclo; fomos sempre europeus, e é precisamente como europeus, mas da espécie portuguesa, que estamos ainda, e estaremos, nos cinco continentes, embora com um outro estatuto político.

Não há contradição entre a nossa europeidade e o nosso ecumenismo; “essência da Europa”, de Portugal disse Reinhold Schneider, já que aqui, na periferia e à beira do Atlântico, se desvendou a fundamental vocação europeia: descobridora, universalizadora, promotora de uma nova dinâmica das civilizações.

Mas esvaziem-nos da nossa identidade, aniquilem a nossa memória colectiva, destruam o nosso orgulho de sermos pátria independente, cortem-nos da nossa universalidade, encerrem-nos num figurino pré-fabricado e obedientemente talhado segundo as ideologias da hora, e que seremos então?

Na “Análise Espectral da Europa”, com a sua habitual agudeza, Keyserling apontou o claro-escuro da personalidade nacional: por um lado a “explosividade”, que nos lançou imparavelmente na aventura cósmica; por outro lado a “crispação com a qual e na qual se desperdiçam, sem finalidade”, as forças dos portugueses.

Somos um povo que ora se supera e transcende, ora se divide e paralisa ao afastar-se da sua identidade real para se mascarar do que não é. Somos um povo hoje tenso e crispado, à procura de si próprio e regressado de muitas ilusões.

É por isso que, neste ano de 1977, se começa mais cedo a comemorar Camões... discutindo uma rejeição, que subitamente o torna mais vivo do que nunca!».

António Quadros («A Arte de Continuar Português»).





A memória das raízes


Não se apurou ainda – e acaso jamais será possível fazê-lo – se a história é realmente feita pelos povos, cabendo depois a alguns homens registá-la e descrevê-la, e à maioria dos homens esquecê-la. Mas a crónica da realidade humana diz-nos que efectivamente, de tempos a tempos, surgem homens que apontam caminhos não trilhados, e que os povos seguem. Esses homens constituem emanação de uma força colectiva: sintetizam os sentimentos da grei, interpretam e exprimem com lucidez as aspirações por vezes confusas da comunidade, arrastam esta para novos ideais que sabem insuflar-lhe, são capazes de superar o imediato para antever um futuro largo, conseguem libertar-se do contingente ou acessório para atingir o que é essencial e é duradouro, ou mesmo permanente. Esses homens, criando nos demais a convicção de que têm a consciência superior das coisas, aliciam os espíritos, mobilizam as vontades, firmam novos padrões de valor; e a estes, nos momentos de crise, de dúvida, de angústia, outros homens se acolhem e amparam; e aí buscam o conforto das certezas interiores, tomando como seus os objectivos por que valha a pena lutar, e morrer. A esses homens chamamos então homens de génio; e a realidade que deixam atrás de si ao desaparecer, não é igual à que encontraram e fica enriquecida para gerações, ou pelo menos diferente para largo tempo. Dir-se-ia que o homem comum é mais pobre do que a realidade encontrada, e é esta que o afeiçoa e valoriza; o homem de génio é mais rico do que a realidade que se lhe depara, e imprime nesta o seu cunho. Decerto: todos os homens têm de ser havidos por iguais perante a lei, e no acesso às oportunidades da vida, e perante a justiça social. Mas os homens de génio existem, e bem acima dos demais; e uma igualdade artificial, imposta para além daqueles domínios, se não é simples demagogia e procura converter-se em direito, estiola o progresso, mata a liberdade, destrói o poder de criação, aliena os homens. Nesse caso, poderia estar-se a mascarar a formação de uma classe de privilegiados que não se funda em trabalho ou mérito mas em poder político, quase sempre conquistado por cima de ruína, violência, agressão de consciências. Mas voltemos aos factos: no mundo, no seio de comunidades nacionais, se estas mantêm intactas as suas forças e se não estão afectadas as suas estruturas morais, têm surgido sempre e hão-de surgir homens de génio – aqueles que rompem os quadros usuais, traçam as suas próprias coordenadas, desvendam ou criam realidades insuspeitadas e até aí inexistentes, e apontam aos outros homens novos caminhos, por vezes bem ousados, e ásperos de trilhar.

Luís de Camões foi um daqueles homens. Foi um daqueles seis ou sete portugueses sem cuja obra, exemplo ou acção, Portugal não seria o que tem sido, e o que ainda é. Podemos e devemos exaltar em Camões o poeta lírico, o poeta épico, guerreiro, o humanista, aquele a quem na vida não faltou «honesto estudo, com longa experiência misturado», como nos diz no final dos Lusíadas; podemos e devemos fazer o historial do homem e a exegese da obra; mas o que importa é salientar um outro traço da sua personalidade. Além do poeta de génio e do humanista, há que sublinhar em Camões o português que teve consciência do que é Portugal. Escreveu Oliveira Martins que Os Lusíadas andavam dispersos no pensamento de todos os Portugueses: Camões foi o verbo nacional que exprimiu o sentimento colectivo (O. M., Camões, 63). Camões revela-nos, com efeito, o segredo da nacionalidade portuguesa (O. M., ob. cit.). Creio mesmo que esta é a grande criação de Camões e a sua permanente mensagem: a consciência de uma consciência nacional. Sem dúvida: esta já se havia formado, e imposto em Aljubarrota, e traduzido em cultura, e manifestado com originalidade e audácia nas descobertas e navegações. Mas é justamente quando essa consciência entra em declínio que se ergue Camões – para a sublimar, para a fixar em termos que não poderiam morrer, para a transmitir aos vindouros.

Batalha de Aljubarrota

Mosteiro de Santa Maria da Batalha

Nunca se sublinhará em excesso um facto: na segunda metade do século XVI é a partir da corte, dos dirigentes, dos homens que deveriam ser responsáveis – que emanam os sinais de desagregação e decadência. O rei afortunado, D. Manuel, casara três vezes com princesas castelhanas, e estas arrastam para Portugal um acompanhamento de serventuários e cortesãos, de músicos, físicos, capelães, letrados, escudeiros, confessores, homens de palácio, todos forasteiros, e vindos de Castela; para a alta-roda de finas maneiras exprimir-se em língua alheia, sobretudo em castelhano, e deturpar e corromper o idioma próprio; prevalecia uma atmosfera de gozo eufórico; e governantes e seus apaniguados instalavam-se em grande, alimentando um luxo de minoria. Administração e corte de Lisboa, sem política e sem vontade, inutilizavam ou desaproveitavam os homens de fé e de isenção. Para lá dos mares, pela África e pela Índia, ainda se batiam alguns homens de carácter; mas a empresa das navegações, a manutenção dos domínios, a feitura das naus, haviam-se transformado em negócio especulativo e em lucro de comissões aos favoritos e oportunistas; a escolha dos capitães do mar e dos capitães de armas dependia de nepotismo, de apoio de facções ou grupos da corte, da intriga, e não de mérito ou experiência. E no reinado seguinte, de D. João III, e sem embargo das virtudes pessoais do homem, tudo se agravou. Foram subjugados pelo espírito cosmopolita, inspirados por outros e por interesses de outros, a corte, o escol, os grandes mercadores, e alhearam-se do cerne vital do país; e em causa foram postos os valores, os princípios, as bases em que assentava a própria independência nacional. Catarina de Áustria, a rainha, sempre se manteve estrangeira, e dominava o rei; e durante a sua regência entregou claramente Portugal ao poderio estrangeiro. Ficou a nobreza cingida ao papel de serventuária do Paço; no povo enfraquecera, se não se obliterara, a antiga e altiva consciência do seu valor colectivo e dos seus interesses permanentes; mas de algum modo, difuso e nebuloso, pressentia a campanha de desnacionalização conduzida pelos poderosos em nome de ambições pessoais ou de grupo, e até de mitos ocasionais. Por isso, alguns homens da arraia anónima, quando se discutia como educar D. Sebastião, exigiam: que «vista à portuguesa, com o seu camareiro-mor; coma à portuguesa; cavalgue à portuguesa; fale à portuguesa; todos os seus actos sejam portugueses; e com isto lhe fareis hábito para que tenha grande amor ao reino e coisas dele». Mas tudo isto importava aos dirigentes bem pouco. Com os seus grupos, estavam enfeudados ao estrangeiro, de que recebiam avultados fundos e a favor de cujos objectivos trabalhavam em Portugal [1]; e por isso, e pela sua ignorância ou insensibilidade perante a história, a visão que possuíam dos interesses nacionais conduzia-os a alinhar pelos interesses estrangeiros a política portuguesa. No fundo, a sua visão levava-os a julgar, ou a dizer, que o bem de Portugal consistia apenas em satisfazer o que outros afirmavam ser o interesse de Portugal sem se aperceberem de que esses outros estavam a prosseguir objectivos próprios e não portugueses. Era a obediência a pressões estranhas; era a prioridade concedida a problemas pessoais ou de grupo ou de classe, sobre questões nacionais; e era também a subserviência perante as ideias, os mitos, os objectivos a que os grandes poderes da época, para seu proveito, davam curso generalizado, pretendendo persuadir os mais fracos de que seria vantagem sua adoptá-los. Todos sabemos as consequências deste desvario da consciência nacional, deste ajoelhar perante ideias de fora, desta infiltração de interesses de terceiros: a perda da independência nacional.



Camões apercebeu-se de tudo isto? Sim: e para o documentar, com o seu génio e o poder divinatório da arte, legou-nos Os Lusíadas. Em 1568, ainda menino de 14 anos, reinava D. Sebastião, e Camões passou de Goa a Moçambique por 1569, devendo ter chegado ao reino por 1570. É ínfima a tença de 15$000 ao ano que lhe concede o rei, e que lhe é paga irregularmente durante três anos. Por isso se pode dizer que a vida de Camões no reino frisou pela miséria; e parece fundamentada a frase de Diogo do Couto, seu amigo, quando escreve: «e em Portugal morreu este excelente poeta em pura pobreza». Mas na sua última década de vida – entre 1570 e 1580 – Camões compreende bem a crise nacional, a decadência da sociedade portuguesa, e vê quanto estava carcomido o cerne e apodrecidas algumas traves mestras da nacionalidade. Num passo dos Lusíadas exclama:

 

O favor com que mais se acende o engenho

Não no dá a pátria, não, que está metida

No gosto da cobiça e na rudeza

Duma austera, apagada e vil tristeza.

 

Justamente, essa vil tristeza provinha do descaso atribuído aos problemas gerais. Camões era áspero na condenação:

 

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse

A quem ao bem comum e do seu rei

Antepuser seu próprio interesse.

 

E por isso o poeta nos diz que:

 

Nenhum ambicioso que quisesse

Subir a grandes cargos cantarei

Só por poder com torpes exercícios

Usar mais largamente de seus próprios vícios.

 

E não havia homens que da história de Portugal faziam razoira sem mercê? Sim: eram aqueles que

 

...se desviam

Do lustre e do valor dos seus passados,

Em gostos e vaidades atolados.

 

Perante a queda, a inversão de valores, o abandono de pontos de referência só portugueses, Camões pergunta dolorosamente por que força do destino não tem Portugal

 

...um ledo orgulho e geral gosto

Que os ânimos levante de contínuo

A ter para trabalhar ledo o rosto.

 

Tudo isto se passa porque

 

Aqueles que devem à pobreza

Amor divino e ao povo caridade,

Amam somente mandos e riqueza,

Simulando justiça e integridade.

 

Para Camões, o uso da força e do poder tem de ser feito em prol do bem comum; e os que assim não procederem, não vencerão, pois

 

...a vitória verdadeira

É saber ter justiça nua e inteira.


Quantos frequentam os reais paços, diz o poeta, «vendem adulação» e possuem «honras vãs» e «ouro puro»; mas não dão aos homens verdadeiro valor, e por isso possuem aqueles bens sem os merecer.




Deste modo, e sem recurso a exegeses difíceis e eruditas, sabemos que Luís de Camões, regressado de além-mar, tomou consciência dos males do reino, dos vícios da governação, da falência dos dirigentes, da desagregação da sociedade, dos perigos corridos pela nação. E lançando um olhar a toda a história de Portugal, desce às raízes mais profundas do povo português, invoca os altos feitos, sublinha as grandes virtudes, assinala aqueles que por obras valorosas se foram da lei da morte libertando; mas por detrás de tudo, e como pano de fundo, está o povo, a massa do povo português. Verdadeiramente, o que o poeta canta é o «peito ilustre lusitano»; é o «amor da Pátria» «não movido de prémio vil», «mas alto e quase eterno»; é em suma toda «a gente lusitana». Verdadeiramente, o que o poeta reflecte, interpreta e exprime é uma consciência nacional que fixa numa linguagem nova, que recria em novos símbolos, que vive em novos heróis, que alicerça em novos valores só portugueses e de virtualidade permanente. «Camões e D. Sebastião, os Lusitanos e Alcácer-Kibir, eis aí os dois homens e os dois actos que ficaram para sempre gravados na imaginação colectiva, como uma fé e uma esperança, como um mandamento e um cativeiro» (Ol. Mart., Camões, 123). Já foi dito por alguém com suprema autoridade – Carolina Michaëlis – que a verdadeira figura dominante de Os Lusíadas é a Pátria Portuguesa como entidade colectiva. Por isso, Os Lusíadas, afirma-o a mesma ilustre senhora, são um livro nacional. Deste facto, aliás, se aperceberam os coevos do poeta, e aqueles que lhe sucederam, até a actualidade. E assim, pelo mundo culto, Camões foi havido como cantor da civilização ocidental, tesouro lusitano, expressão acabada do patriotismo português, expoente da consciência nacional.

Da consciência nacional. Este facto é de importância máxima. Explica o papel que há quatro séculos Camões desempenha na vida moral da nação, o lugar iminente que ocupa no nosso património cultural e espiritual, e justifica o culto que lhe é tributado em geração após geração. Explica também o motivo por que alguns entre nós quiseram, nos últimos quatro ou cinco anos [2], negar Camões e expurgá-lo da vida nacional e fazê-lo esquecer no ânimo do povo: é que o poeta representa as raízes de uma pátria, constitui base de apoio moral, no presente, alicerce fundamental para o futuro, e diz-nos que somos um povo que vem dos confins da história e que, se não trair o seu carácter nem alienar os seus valores, há-de ter um destino a cumprir em autonomia e num devir permanente. Fez esta reflexão o autor de o Portugal Contemporâneo: como Israel nos seus cativeiros sucessivos, o português, abraçado à sua bíblia e enlevado no sonho messiânico do sebastianismo, amassado com lágrimas, balbuciará as estrofes de Camões sempre que vir apontar no céu uma aurora fugaz de renascimento, e sempre que contemple melancolicamente o crepúsculo saudoso do seu passado perdido (Ol. Martins, Camões, 319). Sim: os que pretenderam negar Camões sabiam bem que objectivos prosseguiam: provocar uma ruptura de raiz e absoluta com o passado válido, destruir os caboucos do homem português, tentar criar um homem novo – sem passado, sem dimensão espiritual, sem travejamento moral, e por isso pobre e desgarrado, e à mercê de tudo. Em suma: um homem português que fosse jogo de novos valores políticos e sociais, de uma nova mística que integraria o povo português no messianismo alheio, em obediência a uma política e a centros de decisão exteriores. Era indispensável destruir a consciência nacional: destruir Camões significava largo passo nesse caminho. Outros, ao que parece, quiseram apoderar-se de Camões como se este pudesse ser propriedade de qualquer ideologia, grupo ou partido. Não. Aquele homem de génio, que morreu em pura pobreza, foi só português, cegamente português, incondicionalmente português. Afigura-se que está bem assim.

(In Franco Nogueira, Juízo Final, Civilização Editora, 7.ª edição, 2000, pp. 59-65).


Luís de Camões lendo Os Lusíadas, por António Carneiro.



[1] Ainda que não esteja absolutamente documentada, é crível a frase atribuída a Filipe II de Espanha: «Não tenho direito a Portugal? Então eu herdei-o, conquistei-o e paguei-o!».

[2] Repete-se: este texto foi composto, dito e publicado em 1980.

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