Escrito por Franco Nogueira
Fortaleza de Sagres |
«O êxito das devassas marítimas arrastou-nos ao limiar de gigânteas empresas cujas perpectivas saíram tais que não pudemos recuar; envolvidos no imprevisto das situações inéditas a rasgos de sonho e audácia, era espantosa a contradição entre a grandeza da obra começada e a escassez dos recursos de toda a ordem. Superar os números pequenos, multiplicá-los para serem grandes foi empresa de génio; poucos homens, pouco dinheiro, poucos, inadequados navios ao princípio, insuficiente ciência e técnica.
Só a valorização humana salvaria, pela reflexão, pela mobilidade,
pelo heroísmo. Uma superestrutura épica respondeu ao fundo lírico, um processo
de sublimação quase reduziu a letra morta as embaraçosas condições iniciais.
Cálculo e aventura, paciência e temeridade, sonho e matemática, exemplarmente conciliados forçaram as portas à Idade Moderna, com o derrube de quantas colunas de Hércules vedavam os caminhos do Globo.
Ao princípio houve a fixação experimental nas ilhas, as cidades insulares ou quase, nas pequenas penínsulas, no abraço dos rios, uma forma anfíbia de manter as rotas e posições essenciais. Primeiro talassocracia. Ninguém a definiu melhor que o embaixador do rei dos batas a Pero de Faria, chegado a Malaca: “... leão coroado no trono espantoso das águas do mar, no assopro de todos os ventos”».
Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).
«Tenha sido ou não sido o que quer que for, só digo a V. Srn.ª resolutissimamente que Castela, França, Inglaterra e Holanda são inimigos piores que declarados, e que não tardarão muito em se declarar. Castela quer Portugal; Inglaterra e França querem Índia e Brasil; e Holanda quer na Índia o que possui e no Brasil o que perdeu: nisto não há dúvida.»
Padre António Vieira (Carta
a D. Rodrigo de Meneses, data de Roma, aos 10 de Novembro de 1672).
«A inferioridade de um povo manifesta-se, principalmente, ao macaquear ideias, princípios e gestos de outros povos.»
Norton de Matos (Memórias, III).
«Foi fácil aos novos impérios elaborar a cobertura ideológica do anticolonialismo e explorar em seu proveito as novas oportunidades. Interpretaram em sentido amplo e desvirtuaram os princípios de autodeterminação consignados na Carta das Nações Unidas. Estimularam o sentimento de culpabilidade em que a Europa continuava enredada. Exerceram pressões económicas e políticas. Erigiram-se e lançaram-se mitos revolucionários e ousados, apoiados na propaganda russa e americana: o Governo Mundial, o dever moral de auxílio aos países pobres, a abolição das fronteiras das nações pequenas, a libertação do individuo pelo socialismo ou pela democracia parlamentar. No fundo, eram inteiramente diferentes as realidades: os novos mitos destinavam-se apenas ao consumo dos povos fracos, e por detrás das novas doutrinas cada um dos grandes adversários procurava somente denegar ao outro o apoio do Terceiro Mundo e, ao mesmo tempo, assegurar-se o exclusivo dos mercados e das matérias-primas oferecidas por aquele. Foi transferida para as Nações Unidas a luta por aqueles objectivos. Apresentou-se o organismo de Nova Iorque como espelho e expoente da consciência universal e como esperança derradeira da sobrevivência da humanidade. Solicitou-se nas opiniões públicas a convicção de que obedecer às injunções da O. N. U. constituía um imperativo moral e ideológico dos tempos modernos, e que correspondia, além disso, aos interesses nacionais bem entendidos. Era havida a instituição como definitiva e final: era eterna: e seria avisado tomá-la nessa base. Nessa directriz foi comum e paralela a política de russos, americanos e asiáticos. Os latino-americanos iludiram-se por uma analogia falsa entre as suas independências e aquelas que se reclamavam para os territórios do terceiro mundo; e convenceram-se de que, asseguradas as boas graças deste, poderiam contar com o seu apoio para enfrentar o conjunto de países industrializados e ricos. Assim comungou a América do Sul na política de Washington, de Moscovo e dos asiáticos. Sentiu-se a Europa isolada em Nova Iorque, e impressionou-se com o facto. Cederam os ingleses em África: apresentaram a cedência como submissão aos mais elevados deveres morais da época nova: mas, dentro do pragmatismo britânico, procuraram também reconverter a sua soberania política transformando-a em poderio económico, financeiro e técnico. Por linha idêntica se orientaram os franceses. Dobraram-se logo os belgas, sujeitos para mais a fortes pressões dos Estados Unidos, que aceitaram por as julgarem invencíveis. Entre 1959 e 1961 produziu-se a entrada maciça dos novos países africanos na O. N. U. Washington saudou o facto como vitória sua. Procedeu Moscovo de igual modo. Os europeus, sem embargo de se pressentir que o faziam com alguma relutância, comungaram resignados nos aplausos gerais. Foi imensa e arrogante a euforia dos afro-asiáticos: acreditaram que possuíam o mundo. Dir-se-ia que a humanidade conquistara um êxito histórico, e que os povos, agora em colaboração harmoniosa e de consciência tranquila, iriam dedicar-se às tarefas da paz e do desenvolvimento global. Seriam efémeras as ilusões, e do seu naufrágio pouco se haveria de salvar.»
Franco Nogueira («Debate Singular»).
"Quando surgem novos impérios, estes nunca consideram correcta a estrutura da comunidade das nações: e novas doutrinas são criadas, e apresentadas como modernas e idealistas, para substituir as anteriores"
Se nos debruçarmos sobre os negócios do reino no período filipino e durante a restauração, poder-se-á acaso pensar que não estavam presentes os problemas de além-mar. Seria errado esse ângulo de visão. Mantinha-se vivaz a consciência dos senhorios distantes, e do que representavam para a nação; e havia sobretudo o sentir de que tudo se esbarrondava mercê da impotência do reino. Dentro de rigorosa objectividade, todavia, não podemos atribuir somente a terceiros o plano inclinado em que éramos precipitados. Nos reinados dos três Filipes podemos assinalar mais de uma providência útil à protecção dos domínios: altas figuras de portugueses eram as escolhidas para os cargos supremos nas províncias; foi criado o Conselho da Índia; e eram portugueses os navios que asseguravam o comércio e a navegação das rotas nacionais [1]. Foram outras as causas da decadência: o ódio internacional contra a política externa da Casa de Áustria, de que sofríamos os reflexos; o surto de novos impérios marítimos, que aproveitaram a oportunidade para atacar as posições portuguesas, e expandirem-se à custa destas; e, acima de tudo, os vícios intrínsecos da sociedade portuguesa. Estas três causas aparecem-nos intimamente conjugadas e cada uma é função das demais.
Na Índia, depois do governo de D. Luís de Ataíde, nenhum entrave foi oposto à decadência. Cada governador, com reflexo das incertezas da corte, tinha a sua política própria: e quase sempre procurava destruir a do antecessor. Lavrava a corrupção, a intriga, a vingança pessoal, a avidez do enriquecimento, a intolerância religiosa fomentada pela Inquisição, o malbaratar dos haveres públicos, o desleixo na defesa. Tínhamos de enfrentar os adversários locais: e os nossos sucessivos erros políticos e as incertezas de Lisboa mais animaram a sua hostilidade. E os novos poderes marítimos fundavam as suas Companhias das Índias Orientais: os impérios sempre praticaram o seu imperialismo por organizações interpostas, que protegem, mas cujo carácter supostamente privado lhes evita responsabilidades públicas directas: e tendo por arma essas Companhias os ingleses, os franceses e os holandeses precipitaram-se sobre os nossos despojos, porque Portugal os ia abandonando. Ormuz, Aden, a costa do Malabar, Ceilão, Malaca, outras posições mais, sucumbiram à investida das novas potências; e as nossas armadas eram atacadas e as nossas mercadorias aprisionadas.
Mas não sofríamos no Índico somente. Ao iniciar-se a segunda metade do século XVI, assinala-se a presença da França no Brasil. Mais tarde, uma armada francesa, do comando do almirante Villegagnon, ataca o Rio de Janeiro e outros portos; a da baía da Guanabara faz base de operações contra o comércio e a navegação dos portugueses. Mem de Sá e seu sobrinho Estácio de Sá, auxiliados pelos padres Manuel da Nóbrega e Anchieta, organizam a defesa, e reúnem forças para um contra-ataque que ao fim de quase dois anos consegue libertar o Brasil da armada de França. E nos fins do século XVI são os holandeses que ocupam a orla marítima do Nordeste brasileiro. O príncipe Maurício de Nassau é o chefe impulsionador: e conseguiu estabelecer um domínio extenso e efectivo que durou até 1637. Sem embargo do reino se encontrar sob os Filipes, foi profunda a indignação causada na consciência nacional. Nobres, prelados, mercadores, plebe, dentro da unidade moral do reino perante o fenómeno ultramarino, juntaram-se para prover à defesa do Brasil e conseguir a expulsão dos holandeses: e por subscrição entre si acumularam mais de 230 000 cruzados. Uma frota foi aprestada, e aos esforços do governador Matias de Albuquerque se deveu o restabelecimento da integridade territorial brasileira. Foi assim possível à restauração, a partir de 1640, continuar a colonização e a evangelização do Brasil [2]. Para o efeito, sucederam-se os emissários de D. João IV: e entre todos o padre António Vieira foi um dos mais destacados, pela sua eloquência, pelo seu apostolado fervoroso, pelo seu agudo sentido político [3].
Se nos voltarmos para a África neste período, de novo aí encontramos os holandeses. Por 1629, surgem nas costas angolanas: Luanda e Benguela são atacadas. Em algumas áreas conseguem implantar o seu domínio: e por 1641 aquelas cidades caem em seu poder. Desembarcam em São Tomé, e instalam-se na ilha. Salvador Correia de Sá e Benevides, também sobrinho de Mem de Sá, é nomeado ao mesmo tempo governador do Rio de Janeiro e capitão-mor de Angola. Organiza no Brasil uma frota, e depois de uma travessia directa do Atlântico expulsa os holandeses da província de Angola. Não foi necessário acometê-los em São Tomé: sabedores do desastre sofrido no continente, logo abandonam a ilha. E a agressão holandesa também não nos poupou em Moçambique. Cedo se aperceberam de quanto eram vitais, para a rota da Índia, os pontos de apoio na costa oriental. Desde o início do século XVII, os nossos fortes e estabelecimentos são atacados pelos capitães dos Países-Baixos. Durante cerca de três décadas não desistem dos seus intentos. E só por 1630, mercê da acção enérgica e tenaz de D. Nuno Álvares Pereira – três vezes governador da província – se firma com solidez a posição portuguesa sobre o Índico.
Todas estas vicissitudes de que havia notícia no reino, perturbavam a consciência nacional. Conheciam-se os «vícios, insuficiências e erros dos homens», e nestes residia o mal mais grave; e era claro para todos que «a classe dirigente, a nobreza guerreira, falira estrondosamente» [4]. Contra os ataques dos holandeses, franceses e ingleses, e dos povos locais, unificava-se o reino; e a subscrição pública, para custear as despesas com a expulsão dos holandeses do Brasil, ficou como símbolo daquele sentimento. Verificava-se que iam de desastre em desastre os negócios do império. «E o sentimento da defesa do domínio ultramarino, que entrara nas razões que haviam convencido os espíritos débeis a aceitar a anexação a Castela, levantava agora todos os ânimos contra uma situação política que tão desastradamente a comprometiam» [5]. Foi esta «uma das razões que concorreram para a proclamação da independência»; e «a consciência do império, agora que ele interessava a todas as classes, era mais forte do que nunca» [6]. Mas se isto era assim no plano nacional, a Restauração foi surpreendida no plano internacional com as ambições das potências. Já o Prior do Crato, na busca ansiosa de um apoio externo para a independência do reino, se sentira compelido a dar compensações no Ultramar, quer em benefícios e privilégios, quer em promessas territoriais. E agora a Restauração sentia que em todas as potências europeias existiam idênticos desejos sôfregos. A obsessão em torno do Ultramar português aparecia a condicionar todas as negociações com franceses, ingleses, suecos, holandeses, dinamarqueses. O tratado de aliança, concluído ao tempo do casamento de Catarina de Bragança com Carlos II, fornece-nos exemplo frisante: continha cláusulas e compromissos sérios sobre a defesa da metrópole portuguesa: mas inseria também outras disposições. Segundo estas, Portugal houve de ceder, a título de dote da princesa, as praças de Tânger e Bombaim; autorizar a liberdade de comércio em Goa, Cochim e Dio; entregar as posições de Ceilão, se esta voltasse ao domínio português; reconhecer privilégios da Baía, Pernambuco e Rio de Janeiro; e abrir mão das praças e territórios que os ingleses conseguissem conquistar aos holandeses e que houvessem pertencido a Portugal. Estava-se assim perante uma luta pelo poder na Europa: era o caminho da hegemonia da Inglaterra. Os novos impérios contestavam a prioridade e os direitos de Portugal. E foram então postas em causa as bulas de Nicolau V, que eram fonte de direito e reconheceram a Portugal a perpetuidade dos seus domínios. A um direito internacional vigente, iam as potências opor um outro, para satisfação dos seus interesses nacionais: quando surgem novos impérios, estes nunca consideram correcta a estrutura da comunidade das nações: e novas doutrinas são criadas, e apresentadas como modernas e idealistas, para substituir as anteriores. Em 1609, por instigação do seu governo e a pedido da Companhia das Índias Orientais, o advogado holandês Hugo Grotius publicava o seu Mare Liberum: era a base de uma nova filosofia política da sociedade internacional que atribuía direitos ao poder mais do que à legalidade. Refutou Portugal a nova doutrina, elaborando a sua própria: e o padre Serafim de Freitas foi o seu grande expositor [7]. Mas na altura, e com o rodar do tempo, passou a ser prática aceite e generalizada entre as potências da Europa, no que respeitava a Portugal, esta orientação: o reconhecimento de Portugal e a paz com Portugal estavam somente ligados à metrópole portuguesa: e respeitada esta sentiam-se as potências livres para, directa ou indirectamente, nos moverem guerra no ultramar e procurarem a partilha entre si. Nenhuma estranheza pode causar, portanto, o carácter leonino dos acordos que a Restauração foi obrigada a aceitar. Estava-se em face de uma reestruturação do equilíbrio europeu, que se processou entre os fins do século XVI e a primeira metade do século XVII: nesse quadro, a protecção da metrópole portuguesa constituía aspecto secundário: acima de tudo interessava às potências a obtenção de prerrogativas no ultramar português: a debilidade do reino permitia-lhes que quase impunemente atacassem as nossas posições e delas de apossassem: e as alianças que contraímos eram de alto preço, porque não obstavam nem evitavam a luta para além dos oceanos. De tudo, porém, a culpa maior pertencia ao nosso enfraquecimento, e tibieza.
(In Franco Nogueira, As Crises e os Homens, Livraria Civilização Editora, 2.ª edição, 2000, pp. 124-127).
[1] Na sequência da Casa de Ceuta, da Casa da Guiné e Mina, o Conselho da Índia foi criado em 1604. Mendes
da Luz, O Conselho da Índia, 1952.
[2] Sobre a acção portuguesa no Brasil,
neste período, são evidentemente fundamentais as obras de Jaime Cortezão: Introdução à História das Bandeiras, 2
vols.: A Colonização do Brasil; e Raposo Tavares e a Formação Territorial do
Brasil. Como documentação exaustiva, a História
da Colonização do Brasil, orientada por Carlos Malheiro Dias.
[3] Sobre a actuação do Padre Vieira,
ainda se lê com proveito a citada História
de António Vieira, de J. Lúcio de Azevedo.
[4] Jaime Cortezão, in História de Portugal, ed. de Barcelos,
V, 336 e 337.
[5] Jaime Cortezão, ob. cit., 462.
[6] Jaime Cortezão, ob. cit.,
462.
[7] Confrontar com o estudo capital do Professor Doutor Marcello Caetano, já citado, sobre a obra de Serafim de Freitas, Lisboa, 1959.
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