Não se reduz, pois, a um lusocentrismo, mas não deixa por isso de ser uma manifestação lusíada, para usar o termo consagrado por Camões. Queremos dizer que a mediação entre o humano e o divino, o concreto de que se arranca para atingir a soberania universal do Espírito, como Espírito Santo, é, já não a antiga matéria da Bretanha, com a sua demanda do Graal, os seus templários e os seus cavaleiros da Távola Redonda, mas a matéria de Portugal, a «matéria» humana, cultural e cultual portuguesa, tal como a representou e assumiu em excedência e sublimação, o génio de Dinis e também de Isabel.
Este lusismo fundamental do Rei D. Dinis, poeta do amor cortês segundo o paradigma provençal, ter-se-á manifestado antes de mais nada nas cantigas de amigo de sabor popular. O Rei criticou o artificialismo da Gaya Ciência palaciana e deleitou-se na liberdade e na frescura do ar livre das pastorelas e dos ritmos populares das paralelísticas, dos bailados ou bailios e demais cantigas da finda e do refrão (1).
Poeta de grande sensibilidade, D. Dinis entendeu a criatividade linguística e filológica da fala e da poesia do povo português, tomando consciência da autonomia e originalidade da nossa língua. Daí, sem dúvida, a sua iniciativa de ordenar que todos os documentos oficiais deixassem de ser escritos em latim para o serem em português (2). Com este édito, com a sua própria poesia (o mais importante núcleo lírico da nossa Idade Média, nas suas 138 canções de vários géneros), com o estímulo constante ao surgimento de uma literatura de língua portuguesa, do que é modelo o romance de Amadis de Gaula, de João e Vasco da Lobeira, que Cervantes considerou o melhor de todos os livros que neste género se compuseram (3), sendo a única obra que D. Quixote salvou da fogueira a que lançou todos os outros romances de cavalaria, o Rei deu à língua portuguesa, definitivamente, a sua personalidade e a sua autonomia face às outras línguas ibéricas, em especial a castelhana, ao mesmo tempo que abria para o futuro as perspectivas do seu enriquecimento.
Com a língua portuguesa a libertar-se progressivamente da matriz latina e da influência castelhana, torna-se viável o nascimento de um pensamento português, tão certo é que a filosofia radica na filologia e que uma língua autónoma contém uma filosofia virtual. A língua, disse Heidegger, não corresponde a um pensamento, é o próprio pensamento (4), já que a palavra é a expressão audível e visível da onticidade, já que pensar é partir das palavras para os conceitos, isto é, de signos que reflectem toda uma experiência cultural situada e concreta para a universalidade das ideias. Uma língua é uma ponte necessária e insubstituível entre o particular e o geral, entre o fluxo energético e fluente do pensado ainda sem forma, para a forma do pensamento. É pensamento situado, radicado e qualificado que se assume no concreto vital para se transcender no voo metafísico.
D. Dinis antecipa Fernando Pessoa, ao compreender que não pode haver pátria portuguesa sem língua portuguesa. Minha pátria é a língua portuguesa, diria seis séculos mais tarde o autor de Mensagem. A língua portuguesa não é evidentemente uma criação do Lavrador, porque uma língua não se forja por via erudita. O povo já a usava há muito, fazendo emergir da romanização linguística toda uma matriz arcaica anterior, não pelo regresso dos seus vocábulos, mas pela tonalização original de um latim bárbaro que por todos os modos veiculou a subida à tona de antigas vivências, de esquecidas visões, de formas de relação do homem concreto português com a terra, com a história e com a cultura. O que D. Dinis fez afinal foi receber e por assim dizer oficializar o magistério linguístico do povo, em paralelo com o que genialmente conseguira Dante Alighieri em Itália, Dante, seu contemporâneo e, como veremos, sob tantos aspectos seu mestre.
O Português foi pois ampliado desde o nível tradicional e popular ao erudito e neste contexto é significativo que o Rei tenha mandado traduzir para a nossa língua algumas obras de fundo, como o Código das Sete Partidas do seu avô, o Rei Afonso X, o Sábio, de Leão e Castela, a Geografia ou Crónica do Mouro Razis ou o Livro das Concordâncias de Gaston de Foix. Não é menos significativo desta intencionalidade bem consciente que a Rainha Isabel tenha escrito sempre em Português ao seu irmão, o Rei Jaime de Aragão (5).
Ao criar em 1288-1290 o Estudo Geral ou a Universidade no bairro de Alfama, em Lisboa, aberto a todos os que que quisessem inscrever-se e ensinando Gramática, Lógica, Filosofia Natural, Direito Civil, Direito Canónico e Medicina, manifestou o Rei objectivos concomitantes com o que atrás escrevemos: ensinar a língua portuguesa e as suas leis, não esquecendo que a língua não é apenas um fenómeno de comunicação e de expressão, porque é também um instrumento de conhecimento. De facto, manifesta-se já na própria orgânica e plano de estudos da primeira Universidade portuguesa a intenção de desenvolver os estudos filosóficos em geral, ao lado de uma filosofia do direito, ambos viabilizadores da formação de uma classe intelectual, laica ou secular, ao serviço da expansão da ideia portuguesa.
Não nos esqueçamos de que até aqui o ensino era restrito aos Conventos com primazia para Alcobaça e para Santa Cruz de Coimbra. Embora os seus reitores e clérigos tenham aderido à iniciativa de D. Dinis, oferecendo ao Estudo Geral para seu sustento, rendas de igrejas e mosteiros não há dúvida, como afirmou Joaquim de Carvalho, de que a Universidade Portuguesa foi essencialmente uma fundação régia (6).
Foi em 1288 que o Rei, depois de se ter reunido com os abades e priores dos principais Conventos, se dirigiu ao Sumo Pontífice, solicitando autorização para a nova Universidade. Data de 22 de Novembro desse mesmo ano a petição, assinada por vinte e quatro Abades e Priores, de Alcobaça, Santa Cruz de Coimbra, S. Vicente de Lisboa, Santa Maria de Guimarães, Santo Estêvão de Santarém, S. Clemente de Loulé, Santa Maria de Faro, S. Miguel de Torres Vedras, etc., pedindo que uma parte das rendas eclesiásticas fosse utilizada na manutenção do Estudo Geral.
Tanto era o empenho do Rei no início imediato das suas actividades docentes, que ele já estava a funcionar em 1289, ao que se referia, confirmando-o, a Bula do Papa Nicolau IV, datada de 12 de Agosto de 1290, que concedia a solicitada autorização (7).
É curial observar que D. Dinis escolheu como regimento do Estudo Geral português, não uma organização do tipo dominantemente professoral, como a da Sorbonne, mas uma organização essencialmente estudantil, à maneira de Bolonha (8). Aliás, inicialmente, o termo Universidade designava o conjunto de corpos docente e discente: universitas magistrorum et auditorium(9).
Contrastando com a moderna Universidade pombalina, iluminista, positivista, burocrática, centralista e estatal (e é curioso observar como entre nós as Universidades livres recentemente criadas seguem o molde das estatais), a Universidade tradicional portuguesa no paradigma da fundada pelo Rei-Lavrador, uma das mais antigas da Europa, colocava o acento tónico mais no estudante do que no professor, isto é, mais num aprender e num querer aprender livre e activo, do que numa atitude passiva e inteiramente vinculativa a um ensino ex-cátedra, com o primado total do professor ou lente.
A Universidade tradicional portuguesa nasceu e desenvolveu-se, escreveu Afonso Botelho, de raiz vincadamente discente (10).
Seja como for assim conseguiu o soberano, que tinha tido um tão excelente mestre como Domingos Jardo, o fundador da Estudiaria (11) (escola precursora do futuro Estudo Geral), um alargamento fecundíssimo da área da cultura (12).
Verdade se diga que os tempos não eram de contestação e anarquia, ao contrário os estudantes sabiam que iam ocupar um lugar de relevo na hierarquia da sociedade portuguesa. D. Dinis queria fomentar uma élite laica e culta, ao lado da élite eclesiástica. Mas interessava-lhe fundamentalmente uma élite formada na liberdade de pensamento, que só era possível num Studium Generale valorativo de autonomia mental do estudante, de raiz discente e, por conseguinte, sem o peso excessivo dos argumentos da autoridade.
Túmulo de D. Dinis, o Rei-Lavrador |
Às duas beatitudes se acede, disse o poeta florentino na Monarquia, simultaneamente pela razão humana, que toda se oferece nos filósofos, pelo Espírito Santo, que nos revela a verdade sobrenatural de que carecemos e por Jesus Cristo, o eterno Filho de Deus. (...) Ao duplo fim do homem, escreve mais adiante, é necessário um duplo poder directivo: o do Sumo Pontífice que, segundo a revelação, conduz o género humano à vida eterna, e o do Imperador que, segundo as lições do filósofo, dirige o género humano para a felicidade temporal (13).
O Monarca ou Imperador depende por um lado da dispensação do Espírito Santo, do qual recebe o seu carisma, e da fidelidade a Jesus Cristo, co-eterno filho de Deus; e por outro lado da razão humana, da filosofia, pelas quais aprende e aprendem os humanos o caminho para a felicidade temporal. Daí o necessário da simultânea criação de um culto popular do Paráclito e de uma escola superior de raiz discente, mas de intenção filosófica, aristocrática e teleológica, a que se acrescenta como veremos o apoio complementar de uma organização militante, a Ordem do Templo, breve transformada na Ordem de Cristo.
Não se esqueça enfim que, no Estudo Geral de D. Dinis, como aliás em todas as Universidades europeias, se ensinavam grandes autores e filósofos de sangue luso, de que se estava então bem perto: apontemos antes de todos Paulo Orósio, o bracarense discípulo de Santo Agostinho, autor da primeira história universal de sentido filosófico; depois o lógico e aristotélico Pedro Julião ou Pedro Hispano, mestre das Summulae Logicales, adoptadas por todo o lado, que viria a ser o Papa João XXI; e ainda, entre outros, pensadores como João de Deus, Álvaro Pais e Fr. João de Alcobaça. A Universidade de D. Dinis, com a primazia espiritual dos cistercienses e dos crúzios, orientava-se principalmente pela filosofia de Aristóteles, de Santo Agostinho e da Patrística (in Portugal, Razão e Mistério, Guimarães Editores, 1987, Livro II, pp. 111-116).
Notas:
(1) Américo Cortês Pinto, Dionisos, Poeta e Rey, Ed. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Lisboa, 1082, p. 296.
(2) Ibid., p. 297.
(3) Ibid., p. 301.
(4) M. Heidegger, Qu'appelle-t-on penser?, trad. francesa, P.U.F., Paris, 1959.
(5) Estas cartas, em número de 50, estão publicadas na obra Rainha Santa - Cartas Inéditas e outros Documentos, de Sebastião Rodrigues, Coimbra, 1958.
(6) Joaquim de Carvalho, Instituições de Cultura, in História de Portugal, de Barcelos, Vol. III, 1929, pp. 602 a 607.
(8) Dionisos, Poeta e Rey, ob. cit., p. 306.
(9) Rei D. Dinis, ob. cit., p. 47 e 48.
(10) Afonso Botelho, O Drama do Universitário, Ed. Cidade Nova, Lisboa, 1955, p. 88.
Afonso Botelho |
(12) Dionisos, Poeta e Rey, ob. cit., p. 306.
(13) Dante Alighieri, Vida Nova e Monarquia, trad. port. de Carlos de Soveral, Guimarães Ed., Lisboa, p. 211.
Continua
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