Agostinho sacrificando a ídolos maniqueístas. Atribuído a Aert van den Bossche. |
Definição dada pelo platónico Apuleio, dos deuses celestes, demónios aéreos e homens terrestres
Os demónios são - quanto ao género, seres animados; passíveis, quanto ao ânimo; quanto à mente, racionais; aéreos, quanto ao corpo; quanto ao tempo, eternos.
Nestas cinco propriedades, nada, absolutamente nada, referiu em que os demónios parecessem ter de comum exclusivamente com os homens bons alguma coisa que não tivessem em comum com os maus. Efectivamente, descreve um pouco mais pormenorizadamente, no seu lugar próprio, homens, deles falando como de seres ínfimos e terrestres, depois de ter falado dos deuses do Céu; e, uma vez evocados os dois extremos, inferior e superior, trata em último lugar dos demónios, que ocupam o meio. Escreve ele:
Portanto, os homens, - orgulhosos pela razão, poderosos pela palavra, dotados de alma imortal, de membros votados à morte, de espírito ágil e inquieto, de corpos pesados e débeis, de costumes dessemelhantes e erros parecidos, de audácia obstinada e de esperança firme, de actividade estéril e de fortuna instável, individualmente mortais, todos, porém, no seu género, perpétuos porque se sucedem na renovação das gerações, de existência fugitiva, de tardia sabedoria, de morte rápida, de vida lastimosa -, habitam na terra.
Lúcifer |
Ora ele não lhes pôs em relevo qualquer destas boas qualidades que permitem distinguir os bons dos maus. E, embora se tenha abstido de fazer ressaltar demasiado livremente a sua malícia, fê-lo, não para os ofender a eles, mas antes para não ofender os seus adoradores, a quem se dirigia. Todavia permitiu que os seus leitores precavidos compreendessem o que deviam pensar desses demónios: assim, aos deuses, no seu entender todos bons e felizes, pô-los absolutamente a salvo das paixões e, como ele mesmo confessa, das tempestades que agitam os demónios, e só os relacionou pela eternidade dos corpos; todavia, em relação à alma, declarou abertamente que os demónios se assemelham, não aos deuses, mas aos homens. E, mesmo esta semelhança, respeita não à sabedoria, bem de que os próprios homens podem participar, mas à perturbação das paixões que dominam os insensatos e os maus, que os sábios e os bons dominam, preferindo não as ter, a ter de as vencer. Se Apuleio quisesse dar a entender que os demónios têm de comum com os deuses, não a eternidade do corpo mas a da alma, não teria de certo excluído os homens deste comum privilégio porque, como platónico que é, pensa sem dúvida que também os homens têm alma imortal. Por isso é que, ao descrever esta espécie de seres animados, ele diz que os homens são dotados
de alma imortal, de membros votados à morte. (...)
Se o homem pode obter a amizade dos deuses por intercessão dos demónios
Arcanjo S. Miguel |
Enfim, que malícia, que castigo suspendeu estes falsos e falazes mediadores, como se, por assim dizer, estivessem de cabeça para baixo? É que a parte inferior do seu ser animado, isto é, o corpo, têm-na eles em comum com os seres superiores; mas a parte superior, isto é, a alma, têm-na em comum com os seres inferiores. Estão unidos aos deuses celestes pela parte que é escrava e, desgraçados, estão unidos aos homens terrestres pela parte que domina. Realmente, o corpo é escravo, como diz Salústio:
Usamos do espírito preferentemente para mandar e do corpo para servir,
e acrescenta:
Uma qualidade é comum a nós e aos deuses, e outra a nós e aos brutos,
ao falar dos homens que têm, como os brutos, um corpo mortal. Mas estes, que os filósofos nos propuseram como mediadores entre nós e os deuses, bem podem dizer do seu corpo e da sua alma: esta é comum a nós e aos homens, e aquele é comum a nós e aos deuses. Com a diferença, como disse, de que estão ligados e suspensos às avessas, tendo o corpo escravo comum com os deuses bem-aventurados e a alma suspensa, com os desgraçados dos homens, ou seja: exaltados pela parte inferior e rebaixados pela parte superior. Donde se conclui: ainda que alguém julgue que eles têm de comum com os deuses a eternidade, porque morte nenhuma poderá, como acontece nos seres terrestres, separar o seu espírito do seu corpo como veículo eterno de um corpo de seres dignos de honra, mas antes como eterno veículo de condenados.
Na opinião de Plotino, são menos desgraçados os homens num corpo mortal do que os demónios num corpo eterno
O Pai, na sua misericórdia, preparava-lhes vínculos (vincla) mortais.
Assim, o facto de os homens terem um corpo mortal, pensou ele atribuí-lo à misericórdia de um Deus-Pai, que não quis mantê-los sempre na miséria desta vida. Desta misericórdia considerou indigna a iniquidade dos demónios, que, na miséria duma alma sujeita às paixões, receberam, não um corpo mortal como o dos homens, mas sim um corpo eterno. De certo que seriam mais felizes do que os homens se, como estes, tivessem um corpo mortal e, como os deuses, uma alma bem-aventurada. E seriam iguais aos homens se, com uma alma atribulada, tivessem ao menos merecido, como eles, um corpo mortal - contanto que, evidentemente, pudessem repousar, pelo menos depois da morte, das suas tribulações. Mas eles, devido à miséria da sua alma, não são mais felizes do que os homens, e, devido à perpétua prisão que é o seu corpo, são até mais infelizes do que os homens. Ao afirmar que eles são eternos, quis dar a entender que eles não poderiam transformar-se em deuses, porque os demónios não são capazes de progredir na prática da piedade e da sabedoria.
Arcanjo S. Miguel |
(...) Sendo mortais, poderão os homens gozar da verdadeira felicidade?
O homem Jesus Cristo mediador entre Deus e os homens
Ressurreição de Jesus Cristo |
Assim, o homem mortal e infeliz, muito afastado dos seres imortais e felizes, que mediador poderá escolher que o conduza à imortalidade e à beatitude? O que poderia deleitá-lo na imortalidade dos demónios, é miséria; o que poderia chocá-lo na mortalidade de Cristo, já não existe. Naquele caso, tem que se precaver contra a desgraça sem fim, - neste caso, já não tem que temer a morte que não pôde ser eterna, mas amar a felicidade sempiterna. Se se interpusesse um mediador imortal e infeliz, seria para fechar a passagem à imortalidade feliz, porque o que impede de lá chegar - a própria infelicidade - persiste sempre. Mas, ao contrário, o que era mortal e feliz interpôs-se, uma vez passada a mortalidade, para dar aos que morreram a imortalidade - o que ele mostrou em si próprio ressuscitando e conferindo aos que são infelizes a beatitude de que jamais foi privado.
Há, pois, um mediador mau que separa os amigos - e há um mediador bom que congraça os inimigos. São muitos os mediadores que separam, porque, se a multidão dos anjos bons tira a sua beatitude da participação no Deus único, a desgraçada multidão dos anjos maus, privada desta participação, faz oposição mais para impedir do que para facilitar a nossa felicidade. A sua própria multidão de certo modo nos ensurdece com a sua vozearia, para nos tornar impossível o acesso ao bem único e beatificante. Para o conseguirmos, não são precisos muitos mediadores: basta um - precisamente aquele cuja participação nos torna felizes, o Verbo de Deus incriado, por quem tudo foi criado. Todavia, não é enquanto Verbo que ele é mediador, porque o Verbo, soberanamente imortal e soberanamente feliz, está longe dos imortais infelizes. Ele é mediador enquanto homem, mostrando por isso mesmo que, para atingir aquele que é, não somente o Bem feliz (beatum) mas também beatificante (beatificum) não é preciso procurar outros mediadores que julguemos encarregados de dispor os degraus da nossa ascensão - pois foi o próprio Deus bem-aventurado (beatus) e beatificante (beatificus), tornado partícipe da nossa humanidade, quem nos forneceu um meio rápido de participarmos na sua divindade. Realmente, ao libertar-nos da mortalidade e da miséria, não foi para os anjos imortais e felizes que nos encaminhou, para nos alcançar uma felicidade e uma imortalidade deles recebida: foi sim para aquela Trindade cuja participação faz a felicidade dos próprios anjos. Por isso, quando quis, para ser mediador, pôs-se abaixo dos anjos na forma de escravo, manteve-se acima deles na sua forma de Deus, fazendo-se caminho da vida entre os inferiores, Ele mesmo que é a vida entre os superiores (in A Cidade de Deus, Fundação Calouste Gulbenkian,1993, Vol. II, pp. 837-44 e 853-857).
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