Aristóteles |
Autoridade quer dizer autoria. A autoridade é assim correlativa com a liberdade. Este significado original e eminente de autoridade mantém-se ainda no domínio literário, onde autor é o escritor que comunica por meio de livro o seu livre pensamento.
Autor de todas as coisas visíveis e invisíveis é Deus, e dizem-se autorizados os sacerdotes que representam a divina autoridade. A autoridade política equivale à liberdade do legislador, pelo que não se deve confundir a autoridade das leis com o poder dos serviços públicos que as fazem cumprir. Ter autoridade é, pois, ter de qualquer forma o dom ou a graça de ser autor.
Autor indiscutível e indiscutido foi, durante séculos, Euclides, cujos Elementos de Geometria regularmente disciplinavam sucessivas gerações de estudantes. Os teoremas euclidianos foram impostos por virtude das demonstrações cogentes e gradativamente encadeadas que os acompanham e, por fim, foram tidos por modelos de simplicidade, de evidência e de intuição. Observe-se, porém, que o método euclidiano é um método de exposição e de demonstração, referido a um saber previamente construído, e não um método de investigação e de invenção.
Aristóteles foi, também, durante séculos, a primeira autoridade em física. Os livros aristotélicos não são, porém, livros de mera exposição e demonstração de doutrinas, mas, pelo contrário, exemplos e exercícios do orgão lógico para a indagação da verdade. Do uso que durante a Idade Média foi feito dos livros aristotélicos, muitas vezes discutidos e comentados sem prévio recurso à observação e experimentação, não há que inculpar o pensamento de Aristóteles.
Em questões que não podiam, ou não podem, ser resolvidas pela observação e pela experimentação, preconizava Aristóteles o método de autoridade. Não há, efectivamente, outro método de estudo senão a recensão das opiniões de vários autores, entre as quais o estudante escolhe a melhor, por preceitos de ordem lógica, e não por preconceitos alheios à indagação da verdade. O uso de citações, corrente em trabalhos universitários, demonstra que continua acima da crítica o método de autoridade.
A citação de autores, a descrição de observações e a narrativa de verificações, em ciência, valem apenas de complementos da indução ou da dedução. O que em ciência interessa é a relação do conceito com a tese, a antítese e a síntese. O que no livro de ciência constitui mensagem original é a estrutura linguística, estilística e lógica, o trivial.
Trivium |
Quem escreve e publica não ignora quão difícil é obter do leitor a justa apreciação do que na obra existe de significativa e perene verdade. Todo o estudante universitário está advertido de que as citações e as ilustrações existentes nos livros de homens que passam por doutos, podem ter sido copiadas de livros anteriormente escritos sobre o mesmo tema, e que, por isso, não valem de prova de que o autor haja profundamente estudado o pensamento daqueles que chama em abono da sua tese ou proposição. As citas, ao passarem de livro para livro, são muitas vezes transcritas sem exactidão, sem referência verificável à página donde foram extraídas, e, no caso das frases mais célebres, sem alusão ao escrito onde pela primeira vez foram registadas.
O respeito pela autoridade, que também é o método de autoridade, prescreve que sempre as citações sejam acompanhadas da respectiva informação bibliográfica. Quando oriundas de livros estrangeiros devem as citações ser traduzidas para vulgar para que melhor se aprecie o valor que o escritor atribui ao argumento, se é certo que pela tradução se entende uma forma de assimilação; mas convém ainda que em nota figure o texto original, para que o leitor poliglota possa exercitar as suas faculdades de crítica. Recorrer à leitura do contexto das palavras citadas, afastar comentadores importunos, infiéis e desactualizados, discernir o que magister dixit, tal é o método para evitar pleitos que muitas vezes se dilatam em conversas inúteis e desultórias.
Ao estudante que quiser compreender as características de civilização em que vivemos, se aconselha a leitura imediata das obras de Aristóteles. Grande parte das críticas mais violentas que durante a Idade Média foram dirigidas contra as escolas aristotélicas resultaram improcedentes, não atingiam propriamente a essência da doutrina do Liceu. Os detractores do aristotelismo pretendiam ferir, para além do Filósofo, a verdade oculta nos seus escritos acroáticos.
A autoridade de Aristóteles não foi, durante a Idade Média, incompatível com a livre discussão de teses que caracteriza o ambiente das universidades europeias. S. Tomás de Aquino disse que o estudo da filosofia não tem por fim saber o que os outros pensaram, e afirmou também que em coisas humanas o argumento de autoridade é o mais débil (1). Todos os escritos filosóficos são obras humanas, não podem ser comparados a escrituras sagradas ou canonizadas, pelo que neles é permitido distinguir «o que é vivo e o que é morto», como a propósito de Hegel escreveu seu discípulo Benedetto Croce (2).
Basílica de S. Pedro (Vaticano). |
A actualização do tomismo, com elementos de outros sistemas filosóficos que vão surgindo nos vários povos, tem sido trabalho árduo, e por vezes meritório, de escritores católicos. Entre a Encíclica Aeterni Patris /1879) e a Encíclica Humani Generis (1950) poderemos ver que o tomismo passa por um período de apologia perante o positivismo, tomando como linha de referência o trabalho propedêutico a que se dedicou o Cardeal Mercier enquanto esteve no instituto Filosófico de Lovaina (4). A tentativa de relacionar directamente a razão com a fé, de conciliar o pensamento gnósico com o pensamento pístico, sem mediação do pensamento sófico, ensinada por Aristóteles, nunca desenvolveu as virtudes nem suscitou as graças que os crentes esperam da apologética religiosa.
A inteligência humana inclina-se, sim, perante as escrituras que considera sagradas, aquelas em que os crentes lêem a palavra divina ou inspirada por Deus, e inclina-se porque de as interpretar só é digno quem estiver ungido por ordenação sacerdotal. Os estudos positivos de linguística, de estilística e de lógica, que habilitam para o exercício da filologia profana, não bastam para aproximar o estudante do misterioso domínio da teologia revelada. O pensador leigo deve estar liberto da ilusão de que lhe seria possível proceder ao «livre exame» da Escritura Sagrada, deve aceitar a interpretação que lhe for dada por quem se encontra para isso autorizado, ou seja, pelo indirecto ou directo representante do Autor, pelo ministro de Deus.
O exame da Escritura Sagrada, efectuado apenas com o auxílio do senso-comum e das ciências positivas, pode levar à profanação do culto e à derrogação das leis divinas, sem que do processo o examinador tenha consciência. Na ordem do hierárquico, do sagrado, do religioso, os efeitos da profanação não surgem patentes aos olhos de quem os causa: ficam ocultos até se declararem em devido tempo, e por isso na humanidade os filhos expiam os males provocados pelos pais e pelos avós, mas atribuem o erro das gerações antecedentes muito mais à ignorância do que à desobediência. É muito clara a doutrina da transmissão do pecado original que só aparece obscura nas palavras que a deslocam para o campo da hereditariedade biológica, o que repugna por incompatível com a ideia de Natureza.
A história relata, é certo, que alguns teólogos, intermediários e intérpretes entre as Sagradas Escrituras e a cultura profana do seu tempo, induziram em erro muitos fiéis; todos foram julgados, uns pelo Magistério Eclesiástico, outros pela crítica dos doutos, condenando-se assim as insubstantes formas de pontificado entre o temporal e o espiritual. Infelizmente, nos países e nas épocas de deficiente instrução teológica, alguns escritores religiosos transgridem a linha de demarcação entre a razão e a fé, (segundo a nomenclatura escolástica) e citam até a palavra divina em apoio de doutrinas muito contingentes e afastadas da interpretação canónica e autorizada. Na cultura portuguesa também há exemplos desse abuso que atingiu maior acuidade em esquecidos livros de política, mas aparece e reaparece em obras de apologética, escritas por estrangeiros, e traduzidas por portugueses, ou escritas por portugueses e abonadas com citações estrangeiras.
A apologia e a filosofia são processos diferentes de relacionar a cultura com o culto. Assim é que o apologeta da Igreja Católica não se limita a justificar a teologia dogmática, mas também a teologia moral e até a teologia política, fazendo passar a razão humana por todas as argúcias e subtilezas indispensáveis à acção missionária e até à acção militante. O que a Igreja Católica, ou os seus representantes da hierarquia eclesiástica, ou até os fiéis menos esclarecidos, decidiram ou resolveram em certas oportunidades e em certas circunstâncias, é apresentado como passado que o apologeta se vê coagido a defender, a justificar e a explicar. Ora na apologética nem tudo interessa a todas as épocas e a todos os povos, pelo que os livros escritos para os ambientes culturais da Europa Central nem sempre são utilizáveis para edificação religiosa das nações peninsulares e insulares.
Não só nos livros de apologética, mas também nos livros de moral, se nota a explicável mas injustificada preponderância do pensamento francês que ignora, limita e contraria muitos aspectos da portuguesa religiosidade. Importa não esquecer que a articulação da filosofia com a apologia não se tem efectuado pelo mesmo processo na história de todos os povos, e que só violentando a interpretação dos acontecimentos será possível estabelecer paralelo entre a história religiosa de Portugal e a história religiosa da França. Não se justifica, portanto, a real ou aparente subordinação do pensamento português à cultura francesa no que diz respeito à teologia dogmática e muito menos à teologia moral.
Álvaro Ribeiro |
Notas:
(1) Studium philosophiae non est ad hoc quod sciatur quid homines sensirent, sed qualiter se habeat veritas rerum. 1. De Caelo et Mundo. Lest. 22 - Locus ab auctoritate quae fundatur super ratione humana infirmissimus est. Sum. Theol. 1.ª P. q. 1 a 8 ad 2. Citado por P. Pedro Descoqs S. J. Institutiones Metaphysicae - Éléments d'Ontologie - Paris, 1925. T. 1, p. 80.
(2) Benedetto Croce - O que é vivo e o que é morto na filosofia de Hegel. Tradução de Vitorino Nemésio - Coimbra, 1933.
(3) R. P. Jean-Baptiste Raus, C. SS R. - La Doctrine de S. Alphonse sur la vocation et la grace - Paris, 1926. Este livro é muito importante porque elucida o que se deve entender por tomismo e situa a doutrina perante as decisões do Magistério Eclesiástico. É, além disso, digno de especial menção porque se refer a um problema de interesse para a história da teologia em Portugal.
(4) L. de Raeymaeker - Le Cardinal Mercier et l'Institut Supérieur de Philosophie de Louvain, 1952.
O que é uma doutrina acroática? O que significa "acroático"?
ResponderExcluirPeço desculpa. Fui ver no dicionário: acroático - que não é compreendido senão por meio de explicações. :)
ResponderExcluirA expressão «escritos acroáticos» significa, para Álvaro Ribeiro, os escritos «reservados» de Aristóteles, ou os seus escritos tão-só susceptíveis de serem compreendidos pelos iniciados.
ResponderExcluirDe facto, o dicionário, tendo em conta a rigidez dogmática que o caracteriza, não é de todo o nosso melhor aliado. Assim, por exemplo, os termos «acroático» e «acroamático», tidos por sinónimos, são apenas dois nomes que se aproximam. Aliás, «Akroamatikos» pressupõe aquele que sabe ou se predispõe a ouvir. Ademais, entre os pitagóricos também já se distinguiam os acusmáticos dos matemáticos. No fundo, tudo depende do contexto, não no sentido erudito ou académico do termo, mas no «sentido» do que a nossa percepção é capaz de realizar enquanto tal.