segunda-feira, 7 de junho de 2010

A Grande Deturpação (i)

Escrito por Orlando Vitorino








Já se encontra disponível, com uma nota prefacial de João Luís Ferreira, o Manual de Teoria Política Aplicada, de Orlando Vitorino. Na referida nota consta o seguinte:

«A passagem atribulada pela Faculdade de Letras de Lisboa na década de 40, valeu-lhe [a Orlando Vitorino] o comentário de Vitorino Nemésio de que seria o primeiro contestatário da universidade portuguesa. Polémico e provocador, interveio na vida espiritual portuguesa da segunda metade do século XX fundando e dirigindo o jornal Acto (2 números, 1951-52), com António Quadros, a revista Teoremas de Teatro (13 números, 1955-71) e Teoremas de Filosofia (um único número de 1969), o suplemento do Jornal da Madeira a "Ilha" (12 números, 1970) e a revista Escola Formal (6 números, 1977-78) com Afonso Botelho.

Entre textos e obras inéditas surge agora este Manual de Teoria Política Aplicada que organizou a partir de textos da revista Escola Formal e a que juntou dois capítulos do seu livro Exaltação da Filosofia Derrotada (1983), nomeadamente, aqueles em que propõe "Uma Constituição para Portugal" e "Uma Organização do Ensino". O projecto de livro, com uma introdução inédita, foi organizado e revisto pelo autor, embora tenha algumas lacunas que Orlando Vitorino não chegou a completar. Presume-se que a compilação de textos e a sua revisão, bem como a introdução, tenham sido elaboradas entre a conclusão da Exaltação e a apresentação, no Porto (Março de 1985), da sua pré-candidatura às eleições Presidenciais de 1986.

Com este volume, e com uma oportuna reedição de O Processo das Presidenciais de 1986 e de O Plutocrata, recupera-se o pensamento de teoria política de Orlando Vitorino disperso em publicações esgotadas e de difícil acesso. O leitor poderá, assim, ter oportunidade de conhecer não só o pensamento político de Orlando Vitorino como também uma outra forma de pensar a política e a realidade. A política definiu-a, Orlando Vitorino, como uma antiga arte de governar os povos».

Entretanto, cumpre-nos dizer que esta iniciativa, em torno da obra de Orlando Vitorino, constitui mais uma vitória sobre o silêncio que sobre ela tem recaído. Aliás, a obra orlandina é tanto mais significativa quanto, no presente, paira um criptocomunismo instalado em todos os sectores da sociedade portuguesa. De resto, exemplos não faltam, como o que releva da economia mista planificada em que se combinam sectores públicos com sectores privados, ou os que relevam do sindicalismo centralizado, da Universidade podre e vazia, quando não da Constituição Política ordenada segundo consensos ideológicos em detrimento de princípios transcendentes e filosóficos.

Por outro lado, sempre coube ao socialismo aumentar os poderes do Estado para assim tributar ou lançar impostos contra a propriedade, a prosperidade e o bem-estar dos portugueses. De sorte que num Estado despótico e autocrático a contribuição dá lugar ao imposto, porque aí, verdadeiramente, o Estado impõe. Desse modo, fiscalizar significa desapropriar o cidadão para, consequentemente, o tornar dependente de uma organização política, económica e culturalmente uniformizada. 



De facto, Portugal continua inteiramente refém do monopólio da representação popular, em que os partidos, confundidos com a democracia, se lançam à conquista do poder para benefício de poderes e organizações internacionais. Não admira, pois, que Orlando Vitorino escrevesse sobre o que designa por a Grande Deturpação, constituída por Oito Ilustrações, das quais serão apenas transcritas as sete primeiras, podendo o leitor, caso esteja interessado numa imagética de feição simbólica e esotérica, clicar aqui para ler a Oitava. Fiquemos, então, com as Sete Ilustrações da grande deturpação da inteligência, enquanto aguardamos, consoante informação aventada por João Luís Ferreira, mais um livro inédito de Orlando Vitorino, intitulado As Teses da Filosofia Portuguesa.

Miguel Bruno Duarte




O que é a Grande Deturpação






Há uma cultura real e uma cultura oficial. Trata-se de uma distinção que está longe de surpreender o leitor medianamente interessado por estas coisas. Há quarenta ou cinquenta anos, ainda era fácil detectar imediatamente a cultura oficial, com sua galeria de jarrões que teve como arquétipo o ainda hoje famoso Júlio Dantas. Os tempos mudaram e a imagem alterou-se. Com a alteração da imagem, alterou-se o conteúdo. O que se conservou foi a cultura oficial, a sua sanha à cultura real e a sua mesma eficácia, agora mais ampla e profunda que ameaça de morte - coisa inimaginável há quarenta anos - a presença dos valores do espírito. É a grande deturpação da inteligência.

Há cinquenta anos, o caso mais grave daquela eficácia não foi a obstrução de Júlio Dantas à estética do Orfeu, que deu origem ao admirável Manifesto do Almada. Vinte anos depois, o caso repetiu-se, com os neo-realistas no lugar do Dantas e a Presença no lugar do Orfeu. Trinta anos mais tarde, o caso volta a repetir-se, com os mesmos neo-realistas no lugar do mesmo Dantas e a Filosofia Portuguesa no mesmo lugar da Presença. Mas não deram origem, estas repetições, a novos Manifestos como o do Almada. Dantas é que premiou os seus epígonos, juntando aos jarrões azuis da Academia alguns jarrões vermelhos do neo-realismo, como J. Prado Coelho ou Urbano T. Rodrigues. Aliás, Dantas era um percursor dos neo-realistas, na literatura e na simpatia ideológica. Foi ele quem, primeiro, fez em Portugal o elogio de Brecht, ainda desconhecido no mundo, e sugeriu, para modelo da reforma do nosso Teatro Nacional, a organização soviética do teatro moscovita. Embora um tanto retrógrados, ainda hoje o elogio de Dantas e uma alfinetada, como a que David Mourão-Ferreira mesmo agora lhe deu, na Filosofia Portuguesa, são um ritual a respeitar para curriculum identificador.

Não são estes, todavia, os casos que dão a medida aproximada do que é capaz a sanha e a eficácia da cultura oficial.

Enfim, os tempos mudaram, alterou-se a galeria dos jarrões, alteraram-se os fins, os conteúdos e os modos de agir da cultura oficial, mas conservou-se a sua sanha e a sua eficácia.

Em nossos dias, com as sociedades indefesas à penetração até daqueles que se destinam a destruí-las, vimos formarem-se dois blocos de forças culturais que, com fácil domínio sobre os poderes dos Estados, sobre as instituições académicas, e argentárias e sobre as redes da informação pública, se vão introduzindo em todos os povos e aí esmagam os valores do espírito que só as singulares culturas reais são capazes de exprimir, representar e actualizar. Uma vez instaladas, são como as patas do cavalo de Átila e depressa constituem a cultura oficial que, satisfazendo todas as carências de civilizadismo intelectual dos governos absorvidos na planificação da economia e na recolha dos impostos, irá ser transmitida às inteligências pelo ensino e divulgada na opinião pelos meios de comunicação pública.










Os dois blocos que, desde 1945, entre si disputam dominar e esmagar, sob a bandeira da equidade uniformizante e humanitária, a infinita variedade do mundo do espírito, são o bloco marxista e o bloco da Unesco. As diferenças que há entre eles não são irredutíveis e um denominador comum os torna solidários até à morte: a destruição das culturas reais que, exprimindo cada uma delas, em sua singularidade, uma manifestação do espírito, são a razão de ser das pátrias. A resistência que fatalmente têm de encontrar em cada povo, leva-os a ambos, num primeiro estádio da penetração, a dizerem respeitar e reconhecerem a existência de cada cultura real. Antes de reduzirem cada uma delas a uma variedade folclórica para exibir em festivos congressos internacionais, chegam a atribuir-lhe uma função: a que consistirá em adaptar as singulares e vividas expressões do espírito às formas abstractas e vazias do internacionalismo humanitário. Encontram sempre em cada povo agentes ou sicários para exercerem essa função. Quando a adaptação estiver completada, também se evanesceu completamente a existência desse povo.

A introdução em Portugal da Unesco foi mais tardia do que a do modelo cultural marxista. Iniciou-se ao mesmo tempo, nos finais da 2.ª Guerra Mundial, a expansão organizada, e talvez acordada, de ambos. Mas as circunstâncias locais do salazarismo fizeram hostilizar o projecto da Unesco e, discreta ou secretamente, abrir as portas aos marxistas. Parece ter acontecido o equivalente na guerra de África onde, para "contrariar" a acção "ocidental", se facilitou a insinuação das forças comunistas. Entretanto, o bloco marxista já fizera, nos anos trinta, uma primeira investida.

Só em 1969, com a destituição de Salazar, se desfez a resistência oferecida à Unesco que logo afirmou decididamente a sua presença na reforma do ensino. Já, nessa data, o bloco marxista havia corroído sectores fulcrais da cultura real: os ambientes universitários já estavam marxizados, a imagem marxista da história de Portugal já havia sido composta por António Sérgio e seus epígonos, os mais libertos da literatura, do jornalismo e da arte estavam já minados.

O "25 de Abril" produto de vários factores, foi sobretudo um resultado desta cultura oficial em que se misturavam os dois blocos rivais. A partir de então, veio ela abandonando o bloco marxista para se entregar completamente nas mãos do bloco da Unesco que, sem dificuldades nem contradições, imediatamente absorve e integra a obra do seu rival. O sector onde esta situação se mostra mais patente e tem mais fundas consequências é o do ensino. Em alguns outros sectores, porém, a penetração do bloco marxista já era de tal modo profunda que o despertar político antimarxista da sociedade portuguesa não o consegue demover nem sequer atingir. É o caso da comunicação pública onde os próprios orgãos ao serviço dos partidos políticos anticomunistas continuam a valorizar e, até, a só conhecer os produtos culturais marxistas, sejam eles os mais insignificantes.

Os dois blocos vêem-se pois impedidos de, até sectorialmente, se afastarem do que lhes é comum, de separarem um do outro a respectiva actividade. Estão indissoluvelmente solidários na grande deturpação.


Sete Ilustrações da Grande Deturpação

O terreno onde a actividade da grande deturpação é mais fácil e eficaz é o do ensino. O leitor encontrará, na quinta parte deste Manual, um esboço do que ela tem levado a cabo. Nas páginas que imediatamente se vão seguir, apenas se reúnem alguns exemplos ou ilustrações, colhidos entre inumeráveis outros, que valem como amostras do trabalho incessante que, em todos os domínios da inteligência, entre nós como em toda a parte, a grande deturpação exerce sem descanso.



PRIMEIRA ILUSTRAÇÃO

que mostra como o ensino universitário é um agente de deturpação

com a narrativa de uma mentira




Reitoria da Universidade de Lisboa




O Dr. Soares Martinez, no colóquio que se seguiu a uma das conferências de Frederico Hayek no Grémio Literário, fez o elogio hiperbólico do grande economista para, a seguir, investir contra a Escola Formal em desagravo da Universidade. Disse, primeiro, que aquele era um dia para sempre memorável na sua vida por ser o dia em que conhecia pessoalmente o extraordinário pensador político e economista que é F. Hayek. Acrescentou depois que não podia calar a indignação contra a Escola Formal por ter afirmado ser F. Hayek "ignorado da nossa obscurantista e ridícula Universidade". É que ele, professor da Faculdade de Direito, sempre ensinara aos seus alunos as doutrinas de Hayek.

Orlando Vitorino respondeu a S. Martinez e delicadamente o desafiou a mostrar que os alunos formados nos institutos universitários de economia tenham aí alguma vez ouvido expor ou sequer falar das doutrinas de Hayek. Soares Martinez retorquiu que isso aconteceria - o que não negou - nos institutos de economia mas não na Faculdade de Direito.

Honestamente nos propusemos publicar aqui um esclarecimento ou correcção do que afirmáramos. E para isso fomos ler a "sebenta" da cadeira de S. Martinez, publicada com o título de Manual de Economia Política em 1971/72. São dois grossos volumes de texto escrito pelo autor, não recolhido de apontamentos dos alunos, e na sua publicação ou elaboração colaboraram vários assistentes, entre os quais um de nome Sousa Franco que julgamos ser o actual presidente de um partido político que se está por saber se é ou não socialista.

Sofremos uma decepção. Ao longo de mais de 880 páginas, não só em parte alguma se expõem, por mais minimamente, as doutrinas de Hayek mas até o seu nome apenas aparece, a p. 274 do vol. II, entre os nomes dos "vários economistas contemporâneos da corrente neoliberal". Percorremos depois as bibliografias que à velha maneira universitária se alinham no final de cada capítulo: encontrámos, decerto, toda a espécie de mediocridades estrangeiras e nulidades portuguesas, como Teixeira Ribeiro ou Pereira de Moura, mas de Hayek nem um livro.

Que nos havia, então, dito o indignado Prof. Soares Martinez? Mas, mais grave, como se pode hoje ensinar economia sem ter em conta um dos doutrinadores e sistematizadores de mais larga influência em toda a actual investigação e prática da economia política? Como é que, sem os argumentos e contribuições de Hayek, se pode hoje ensinar o que seja o mercado (Cap. VIII do livro de S. Martinez), o que sejam os preços (Cap. VII), o que seja a origem e a história do liberalismo (Cap. IV), o que vale e aonde leva o planeamento da economia (Cap. XII) ? Vejamos este último caso.

A ignorância ou ausência da refutação que Hayek faz do planeamento tem consequências catastróficas para as lições do Prof. da Faculdade de Direito de Lisboa. Reconhecendo que o planeamento da economia só tem tido insucessos, expõe "as causas do insucesso do planeamento" que diz serem as seguintes:

1. "Falta de solidez das previsões do planeamento" que atribui a "excessos de abstracção dos planificadores". Ora F. Hayek demonstrou que o planeamento é sempre, inevitavelmente, dirigido por determinações abstractas do planificador. Daí a sua irrealidade e irrealização, ou o seu "insucesso" inevitável, que não resulta, portanto, da menos ou mais excessiva abstracção do seu dirigismo, mas lhe é inerente.

2. A falta de "directrizes políticas" do planeamento é a segunda causa. Ora o planeamento, com seu carácter abstracto e dirigista, nunca pode ser falta de directrizes políticas porque ele não pode ser senão (...)

3. Seria a 3.ª causa "a insuficiência de dados estatísticos", isto é, de informações. Ora o erro fundamental do planeamento reside, tecnicamente, na impossibilidade de haver informações suficientes quando o mercado é abolido ou, sequer, condicionado; e não há planeamento sem o condicionamento ou a abolição do mercado.






Não atendendo, deste modo, às doutrinas de F. Hayek, o Dr. S. Martinez não passa de mais um defensor do planeamento da economia e da intervenção do Estado, de mais um professor que ou só ensina socialismo ou inibe as gerações de alunos, que lhe passam pelas aulas, de conhecer os erros do socialismo e a pobreza e servidão a que eles conduzem (in Manual de Teoria Política Aplicada, Verbo, 2010, pp. 145-151).

Continua


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