segunda-feira, 21 de junho de 2010

A unidade do intelecto

Escrito por S. Tomás de Aquino








Como todos os homens, por natureza, desejam saber a verdade, também neles é natural o desejo de fugir dos erros e de os refutar quando têm essa faculdade. Ora, entre todos os erros, o mais inconveniente parece ser aquele em que se erra sobre o intelecto que naturalmente nos habilita a conhecer a verdade evitando os erros. Há já algum tempo que se implantou entre muita gente um erro acerca do intelecto. Originado nos escritos de Averroes, consiste em defender que o intelecto a que Aristóteles chama "possível", e que Averroes designa impropriamente pelo nome "material", é uma substância separada do corpo segundo o ser, que de modo nenhum se une ao corpo como forma. Mais ainda: Averroes defende que o intelecto possível é único para todos os homens.

Já escrevemos por várias vezes contra este erro. Todavia, dado que que a impudência dos que o defendem não cessa de resistir à verdade, é nossa intenção avançar novos argumentos contra esse erro a fim de o refutarmos com toda a evidência.

Não iremos mostrar aqui que a posição acabada de referir é errónea por contrariar a verdade da fé cristã. Isso será imediatamente evidente seja para quem for. Se, de facto, se subtraísse aos homens, a diversidade do intelecto, a única de todas as partes da alma que se vê bem ser incorruptível e imortal, após a morte nada restaria das almas dos homens excepto a substância única do intelecto; e desta feita se suprimiria a retribuição das recompensas e das penas e a respectiva diversidade. Iremos mostrar outrossim que a posição referida não contraria menos os princípios da filosofia do que os ensinamentos da fé. E dado que nesta matéria alguns, como eles mesmo dizem, não querem saber das palavras dos Latinos e dizem-se seguidores da dos peripatéticos, cujos livros sobre essa matéria nunca viram, à excepção dos de Aristóteles, o fundador da seita peripatética, mostraremos em primeiro lugar que a referida posição vai contra as suas palavras e os seus ensinamentos.


Tomemos, então, a primeira definição da alma dada por Aristóteles no livro II sobre A Alma, onde afirma que ela é «o acto primeiro de um corpo natural organizado». E para que ninguém diga que esta definição não se aplica à alma toda, porque Aristóteles havia dito, no condicional, «se tivermos de afirmar qualquer coisa de comum à alma toda», - que eles interpretam, justamente, como se não pudesse ser o caso -, consideremos as palavras que se seguem no texto. Ei-las: «Dissemos, de facto, em sentido universal, o que a alma era: uma substância segundo a forma, isto é, a quididade de cada corpo», ou de outra maneira: a forma substancial de um corpo natural organizado.

E não se diga que se exclui a parte intelectiva dessa universalidade, o que Aristóteles refuta no que diz a seguir: «Que, portanto, a alma não é separável do corpo, ou, dado que ela é naturalmente divisível, ao menos algumas de suas partes da alma, eis o que é evidente, pois o acto de certas partes da alma é o acto de algumas partes do corpo. Já relativamente a outras partes nada impede a separação, porque não são acto de nenhum corpo». Isto só pode ser interpretado como dizendo respeito à parte intelectiva, a saber, intelecto e vontade. Daqui ressalta com evidência que certas partes desta alma, que antes definira universalmente designando-a como acto de um corpo, são acto de partes precisas do corpo, enquanto que outras não são acto de nenhum corpo. Porque, como mais adiante se verá, não é a mesma coisa a alma ser acto de um corpo e uma das suas partes ser acto de um corpo.



S. Gregório de Nissa



Mas, no que vem a seguir, ainda é mais evidente que ele inclui o intelecto também sob essa definição geral, sobretudo havendo suficientemente provado que a alma é o acto de um corpo, portanto, que a alma separada não vive em acto. Todavia, como se pode dizer que uma coisa vive em acto graças à presença de uma outra, não apenas se for a sua forma, mas também o seu motor - tal como a combustão em acto de um combustível na presença de um comburente e o movimento em acto de qualquer móbil na presença de um motor -, alguém podia duvidar se, estando a alma presente, um corpo vive em acto, como o móbil se move em acto na presença de um motor ou como uma matéria está em acto na presença de uma forma. E, principalmente, porque Platão defendeu que a alma não se une ao corpo como uma forma, mas mais como um motor ou um piloto, como é evidente por Plotino e Gregório de Nissa, que menciono porque não foram Latinos mas Gregos. O Filósofo insinua esta dúvida quando acrescenta, a seguir ao que disse: «Também não se vê se a alma é acto do corpo, como o timoneiro, do navio». E porque a dúvida persiste depois do que disse, conclui «que é metaforicamente que se determina e se descreve assim a alma», pois ainda não era líquido ter demonstrado a verdade.

A fim de tirar a dúvida, avança a seguir para a demonstração do que é mais certo em si e segundo o conceito com base naquilo que é menos certo em si mesmo, mas é mais certo para nós, ou seja, a partir dos efeitos da alma, que são os seus próprios actos. Para tal, distingue imediatamente as operações da alma, dizendo que «o animado distingue-se do inanimado pela vida» e que são muitas as operações que dizem respeito à vida como por exemplo, «a intelecção, a sensação, o movimento local e o repouso» bem como o movimento nutritivo e de crescimento, de maneira que diz-se que vive tudo aquilo que possui uma destas operações da alma. Depois, mostradas as suas relações mútuas, ou seja, como é que uma pode existir sem a outra, conclui com isto que a alma é o princípio de todas as operações e que «é determinada por elas, como pelas suas partes, que são as faculdades vegetativa, sensitiva, intelectiva e o movimento», mas que todas elas se encontram num só indivíduo, o homem.



Aristóteles e Averroes contra a torre da falsidade


Platão defendeu também a existência de diversas almas no homem em conformidade com a diversidade das operações da vida que o integram. Por esta razão, Aristóteles levanta a seguinte dúvida: «cada uma dessas faculdades é a alma» em si mesma ou uma parte da alma? E no caso de serem partes de uma mesma alma, elas diferem segundo o conceito ou também pelo lugar, quer dizer, pelo orgão? Acrescenta que «em relação a algumas não há dificuldade», mas em relação a outras há lugar para dúvida. Prova de imediato que é de facto claro, quanto ao que diz respeito à alma vegetativa e à alma sensitiva, dado que certas plantas e animais, mesmo quando seccionados, continuam a viver, pelo que todas as operações da alma que se dão no todo realizam-se numa qualquer das partes. Mas relativamente às que dão lugar a dúvidas, mostra, acrescentando, que «acerca do intelecto e da potência teorética, nada é ainda evidente». Aristóteles não diz isto querendo mostrar que o intelecto não é alma, conforme o Comentador e seus sequazes explicam de uma maneira ruim, porque é evidente que ele aqui está a responder ao que havia dito antes, «que relativamente a algumas há lugar para a dúvida» Daí dever entender-se: nada disto é ainda evidente, se o intelecto é alma ou se é uma parte da alma, e se for uma parte da alma, se está separada localmente ou apenas conceptualmente.

E mesmo dizendo que "nada é ainda evidente", não deixa de manifestar a primeira hipótese que vem à cabeça, acrescentando: «mas parece que é um outro género de alma». Esta afirmação não deve ser interpretada tal como o Comentador e os seus sequazes a explicam, de uma maneira ruim, que Aristóteles a fez porque é equivocamente que se chama alma ao intelecto ou porque não se lhe pode aplicar a definição referida. A maneira como devemos interpretá-la vem logo a seguir: «e só isto pode ser separado, como o eterno do corruptível». É nisto, portanto, que consiste o outro "género", em parecer que o intelecto é algo de eterno enquanto que as outras partes da alma são corruptíveis. E uma vez que o corruptível e o eterno não parecem ser compatíveis numa substância, parece que, entre todas as partes da alma, só o intelecto é que pode ser separado, não do corpo, evidentemente, tal como de maneira ruim o Comentador explica, mas das outras partes da alma, de forma que não se acham numa só substância da alma.


Torna-se evidente que é assim que se deve entender, a partir do que acrescenta: «Daí ser claro, em relação às outras partes da alma, que elas não são separáveis», quer dizer, segundo a substância da alma ou localmente.



Averroes



Já atrás o tínhamos averiguado, e o que então dissemos chega para provar. Que Aristóteles não está a pensar na separabilidade em relação ao corpo, mas da mútua separabilidade das potências, eis o que se torna evidente pelo que segue: «é claro que se distinguem conceptualmente», ou seja, umas em relação às outras, «o acto de sentir é diferente do de opinar». E, assim, é evidente que aquilo que aqui determina responde à pergunta feita acima. Com efeito, tinha-se perguntado se uma parte da alma se separa de outra apenas conceptualmente ou também segundo o lugar. Pondo de parte aqui esta questão relativa ao intelecto, sobre o qual agora nada determina, relativamente às outras partes da alma Aristóteles diz com clareza que não são separáveis segundo o lugar, mas que o são conceptualmente.

Portanto, posto isto, a saber, que a alma é determinada pela actividade vegetativa, vegetativa, sensitiva, intelectiva e pelo movimento, pretende mostrar de seguida que em todas estas partes a alma não se une ao corpo como o timoneiro ao navio, mas como uma forma. Deste modo certificar-se-á o que é a alma em geral, o que antes havia sido dito apenas metaforicamente. Prova-o com as operações da alma, assim: é, na verdade, evidente que aquilo que opera alguma coisa é em sentido primordial a forma do operador, como quando se diz que é pela alma que se conhece e que é pela ciência que se conhece, mas pela ciência primeiro do que pela alma, porque pela alma só conhecemos o que esta possui por ciência; de igual modo, dizemos que estamos de saúde pelo corpo e pela saúde, mas primeiro pela saúde. Desta maneira se torna evidente que a ciência é a forma da alma e que a saúde é a forma do corpo.

A partir daqui acrescenta: «a alma é em sentido primordial aquilo pelo qual vivemos», que é dito por causa da faculdade vegetativa, «pelo qual sentimos», por causa da sensitiva, «pela qual nos movemos», por causa da faculdade motora, «e pela qual pensamos», por causa da faculdade intelectiva. E conclui: «Por esta razão ela será noção e forma, mas não como uma matéria e um sujeito». Portanto, é evidente que o que disse antes - a alma é o acto de um corpo natural - se conclui aqui, não só em relação à faculdade sensitiva, vegetativa e motora, mas também à intelectiva. A doutrina de Aristóteles foi, portanto, que aquilo pelo qual pensamos é a forma de um corpo natural.

Mas para que ninguém diga aqui que Aristóteles não afirma que aquilo pelo qual pensamos é o intelecto possível, mas outra coisa qualquer, excluímos manifestamente essa hipótese atendendo ao que diz no livro III sobre A Alma, falando acerca do intelecto possível: «Chamo, então, intelecto àquilo pelo qual a alma opina e pensa» (in A Unidade do Intelecto, Edições 70, 1999, pp. 45-55).



A Escola de Atenas, de Rafael (Vaticano).


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