Como todos os homens, por natureza, desejam saber a verdade, também neles é natural o desejo de fugir dos erros e de os refutar quando têm essa faculdade. Ora, entre todos os erros, o mais inconveniente parece ser aquele em que se erra sobre o intelecto que naturalmente nos habilita a conhecer a verdade evitando os erros. Há já algum tempo que se implantou entre muita gente um erro acerca do intelecto. Originado nos escritos de Averroes, consiste em defender que o intelecto a que Aristóteles chama "possível", e que Averroes designa impropriamente pelo nome "material", é uma substância separada do corpo segundo o ser, que de modo nenhum se une ao corpo como forma. Mais ainda: Averroes defende que o intelecto possível é único para todos os homens.
Já escrevemos por várias vezes contra este erro. Todavia, dado que que a impudência dos que o defendem não cessa de resistir à verdade, é nossa intenção avançar novos argumentos contra esse erro a fim de o refutarmos com toda a evidência.
Não iremos mostrar aqui que a posição acabada de referir é errónea por contrariar a verdade da fé cristã. Isso será imediatamente evidente seja para quem for. Se, de facto, se subtraísse aos homens, a diversidade do intelecto, a única de todas as partes da alma que se vê bem ser incorruptível e imortal, após a morte nada restaria das almas dos homens excepto a substância única do intelecto; e desta feita se suprimiria a retribuição das recompensas e das penas e a respectiva diversidade. Iremos mostrar outrossim que a posição referida não contraria menos os princípios da filosofia do que os ensinamentos da fé. E dado que nesta matéria alguns, como eles mesmo dizem, não querem saber das palavras dos Latinos e dizem-se seguidores da dos peripatéticos, cujos livros sobre essa matéria nunca viram, à excepção dos de Aristóteles, o fundador da seita peripatética, mostraremos em primeiro lugar que a referida posição vai contra as suas palavras e os seus ensinamentos.
E não se diga que se exclui a parte intelectiva dessa universalidade, o que Aristóteles refuta no que diz a seguir: «Que, portanto, a alma não é separável do corpo, ou, dado que ela é naturalmente divisível, ao menos algumas de suas partes da alma, eis o que é evidente, pois o acto de certas partes da alma é o acto de algumas partes do corpo. Já relativamente a outras partes nada impede a separação, porque não são acto de nenhum corpo». Isto só pode ser interpretado como dizendo respeito à parte intelectiva, a saber, intelecto e vontade. Daqui ressalta com evidência que certas partes desta alma, que antes definira universalmente designando-a como acto de um corpo, são acto de partes precisas do corpo, enquanto que outras não são acto de nenhum corpo. Porque, como mais adiante se verá, não é a mesma coisa a alma ser acto de um corpo e uma das suas partes ser acto de um corpo.
S. Gregório de Nissa |
Mas, no que vem a seguir, ainda é mais evidente que ele inclui o intelecto também sob essa definição geral, sobretudo havendo suficientemente provado que a alma é o acto de um corpo, portanto, que a alma separada não vive em acto. Todavia, como se pode dizer que uma coisa vive em acto graças à presença de uma outra, não apenas se for a sua forma, mas também o seu motor - tal como a combustão em acto de um combustível na presença de um comburente e o movimento em acto de qualquer móbil na presença de um motor -, alguém podia duvidar se, estando a alma presente, um corpo vive em acto, como o móbil se move em acto na presença de um motor ou como uma matéria está em acto na presença de uma forma. E, principalmente, porque Platão defendeu que a alma não se une ao corpo como uma forma, mas mais como um motor ou um piloto, como é evidente por Plotino e Gregório de Nissa, que menciono porque não foram Latinos mas Gregos. O Filósofo insinua esta dúvida quando acrescenta, a seguir ao que disse: «Também não se vê se a alma é acto do corpo, como o timoneiro, do navio». E porque a dúvida persiste depois do que disse, conclui «que é metaforicamente que se determina e se descreve assim a alma», pois ainda não era líquido ter demonstrado a verdade.
A fim de tirar a dúvida, avança a seguir para a demonstração do que é mais certo em si e segundo o conceito com base naquilo que é menos certo em si mesmo, mas é mais certo para nós, ou seja, a partir dos efeitos da alma, que são os seus próprios actos. Para tal, distingue imediatamente as operações da alma, dizendo que «o animado distingue-se do inanimado pela vida» e que são muitas as operações que dizem respeito à vida como por exemplo, «a intelecção, a sensação, o movimento local e o repouso» bem como o movimento nutritivo e de crescimento, de maneira que diz-se que vive tudo aquilo que possui uma destas operações da alma. Depois, mostradas as suas relações mútuas, ou seja, como é que uma pode existir sem a outra, conclui com isto que a alma é o princípio de todas as operações e que «é determinada por elas, como pelas suas partes, que são as faculdades vegetativa, sensitiva, intelectiva e o movimento», mas que todas elas se encontram num só indivíduo, o homem.
Aristóteles e Averroes contra a torre da falsidade |
Platão defendeu também a existência de diversas almas no homem em conformidade com a diversidade das operações da vida que o integram. Por esta razão, Aristóteles levanta a seguinte dúvida: «cada uma dessas faculdades é a alma» em si mesma ou uma parte da alma? E no caso de serem partes de uma mesma alma, elas diferem segundo o conceito ou também pelo lugar, quer dizer, pelo orgão? Acrescenta que «em relação a algumas não há dificuldade», mas em relação a outras há lugar para dúvida. Prova de imediato que é de facto claro, quanto ao que diz respeito à alma vegetativa e à alma sensitiva, dado que certas plantas e animais, mesmo quando seccionados, continuam a viver, pelo que todas as operações da alma que se dão no todo realizam-se numa qualquer das partes. Mas relativamente às que dão lugar a dúvidas, mostra, acrescentando, que «acerca do intelecto e da potência teorética, nada é ainda evidente». Aristóteles não diz isto querendo mostrar que o intelecto não é alma, conforme o Comentador e seus sequazes explicam de uma maneira ruim, porque é evidente que ele aqui está a responder ao que havia dito antes, «que relativamente a algumas há lugar para a dúvida» Daí dever entender-se: nada disto é ainda evidente, se o intelecto é alma ou se é uma parte da alma, e se for uma parte da alma, se está separada localmente ou apenas conceptualmente.
E mesmo dizendo que "nada é ainda evidente", não deixa de manifestar a primeira hipótese que vem à cabeça, acrescentando: «mas parece que é um outro género de alma». Esta afirmação não deve ser interpretada tal como o Comentador e os seus sequazes a explicam, de uma maneira ruim, que Aristóteles a fez porque é equivocamente que se chama alma ao intelecto ou porque não se lhe pode aplicar a definição referida. A maneira como devemos interpretá-la vem logo a seguir: «e só isto pode ser separado, como o eterno do corruptível». É nisto, portanto, que consiste o outro "género", em parecer que o intelecto é algo de eterno enquanto que as outras partes da alma são corruptíveis. E uma vez que o corruptível e o eterno não parecem ser compatíveis numa substância, parece que, entre todas as partes da alma, só o intelecto é que pode ser separado, não do corpo, evidentemente, tal como de maneira ruim o Comentador explica, mas das outras partes da alma, de forma que não se acham numa só substância da alma.
Torna-se evidente que é assim que se deve entender, a partir do que acrescenta: «Daí ser claro, em relação às outras partes da alma, que elas não são separáveis», quer dizer, segundo a substância da alma ou localmente.
Averroes |
Portanto, posto isto, a saber, que a alma é determinada pela actividade vegetativa, vegetativa, sensitiva, intelectiva e pelo movimento, pretende mostrar de seguida que em todas estas partes a alma não se une ao corpo como o timoneiro ao navio, mas como uma forma. Deste modo certificar-se-á o que é a alma em geral, o que antes havia sido dito apenas metaforicamente. Prova-o com as operações da alma, assim: é, na verdade, evidente que aquilo que opera alguma coisa é em sentido primordial a forma do operador, como quando se diz que é pela alma que se conhece e que é pela ciência que se conhece, mas pela ciência primeiro do que pela alma, porque pela alma só conhecemos o que esta possui por ciência; de igual modo, dizemos que estamos de saúde pelo corpo e pela saúde, mas primeiro pela saúde. Desta maneira se torna evidente que a ciência é a forma da alma e que a saúde é a forma do corpo.
Mas para que ninguém diga aqui que Aristóteles não afirma que aquilo pelo qual pensamos é o intelecto possível, mas outra coisa qualquer, excluímos manifestamente essa hipótese atendendo ao que diz no livro III sobre A Alma, falando acerca do intelecto possível: «Chamo, então, intelecto àquilo pelo qual a alma opina e pensa» (in A Unidade do Intelecto, Edições 70, 1999, pp. 45-55).
A Escola de Atenas, de Rafael (Vaticano). |
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