Mas recordemos também que para Dante, em cujo Canto XIV do Paraíso surge significativamente e em momento culminante, a alegoria de uma Cruz Templária - signo venerável, escreve, formada pelos quadrantes reunidos num círculo (43), na qual Cristo resplandece tanto que não sou capaz de encontrar uma imagem para o representar (44), correndo de um braço para o outro e do cimo ao pé dessa cruz (que não é a cruz do martírio de Jesus, como concordam todos os exegetas) luzes que cintilavam - mais fortemente quando se juntavam e quando se cruzavam (45) -, para Dante, dizíamos, os Perfecti de Acção, colocados nos Céus superiores e que tomam a sua cruz para seguir Cristo (46), são por ele chamados explicitamente Cavaleiros de Cristo. Como se sabe, aliás, esta expressão tomar a cruz era a usual para designar o alistamento numa Cruzada (bordando uma cruz no hábito) ou a adesão a uma Ordem militar de Cavalaria, como a de Santiago, de S. João, de Calatrava, de Avis ou do Templo, devotadas à defesa dos lugares santos e à luta contra o infiel.
Na ordenação moral do Paraíso, segundo Dante Alighieri, é alto o lugar que ocupam os Perfecti de Acção ou Cavaleiros de Cristo; acima dos Incipientes e dos Proficientes da Acção, dos Proficientes da Vontade e até dos Proficientes da Inteligência, tendo apenas em plano mais elevado do que eles, nos dois últimos círculos dos Céus superiores, os Perfecti da Vontade e os Perfecti da Inteligência, ou seja, os Príncipes justos e sábios e os Espíritos contemplativos (47).
A conotação entre a obra de D. Dinis e o pensamento de Dante é forçosa. Se o nosso Rei, homem extremamente inteligente e culto, neto de Afonso X, o Sábio, e discípulo dos melhores mestres da época, não deve já ter conhecido o Paraíso, devia conhecer contudo o Inferno e o Purgatório, e estava certamente familiarizado com a Monarquia (provavelmente escrita entre 1310 e 1313) bem assim como com toda a vaga de fundo mental e espiritual de que se reclamava o poeta. Lembremos as relações que D. Dinis e a Rainha Isabel de Aragão mantinham com as cortes da Sicília e de Nápoles, a que estavam ligados por laços fraternais; o relacionamento intelectual com os pensadores «espirituais» aragoneses, sobretudo Raimundo Lúlio e Arnaldo de Vilanova, este com frequentes viagens a Itália; o intercâmbio natural das Ordens religiosas, em especial a Franciscana, a que os soberanos estavam ligados; os laços comerciais e culturais com a Itália, sendo de observar que, como já sublinhámos, a renovação da marinha portuguesa foi feita com forte contribuição italiana, em especial por intermédio do Almirante genovês Manuel Pessanha, que veio para Portugal em Janeiro ou Fevereiro de 1317; e, enfim, as frequentes embaixadas enviadas por D. Dinis a Roma ou a Avinhão, a propósito do interdito do Reino, da questão dos bens e privilégios do Clero, da extinção e das comissões do alto clero onde a doutrina gibelina, anti-guelfa, ilustrada nos seus princípios e sem radicalismo pela Monarquia, se tornara uma das mais apaixonadas controvérsias do tempo.
A verdade é que, ao transpor de um pensamento que velava ou cifrava no essencial, para a acção fundadora da nova Milícia de Cristo, Milícia que se iria tornar no principal instrumento de afirmação e da expansão lusíada no mundo, servindo simultaneamente não só um ideal religioso e ecuménico, mas também a acção da Coroa portuguesa, D. Dinis veiculava, implicitamente, o ideal da Monarquia segundo Dante.
Ideal que estava muito longe de ser o do poder pelo poder, o do simples voluntarismo cesarista, de base pessoalista, económica e territorialmente ambiciosa, como o querem sistematicamente os leitores positivistas, materialistas e marxistas do passado histórico, e também não era o que dois séculos e meio depois seria concebido nos princípios do século XVI por Carlos V e pelo Doutor Mota, seu conselheiro, isto é, um Império de reminiscência guelfa, ao serviço da Igreja Universal, de que herdaria Filipe II em interpretação aliás muito inferior, já que Carlos V era um soberano de outra cepa. No lance, quando ascendia no horizonte a heresia de Lutero, foi o chanceler do Imperador, Mercurino Gatinara quem, segundo Ramón Menendez Pidal, defendeu o ideal dantesco e gibelino do Império, contra a teoria mais romano-cêntrica do Doutor Mota (48).
Esta divergência é fundamental e, sem consciência do que representava, ser-nos-á sempre difícil entender a diferença entre por um lado a Monarquia espanhola de Fernando e Isabel, de Carlos V e dos Filipes - e por outro lado a Monarquia portuguesa de D. Dinis e dos soberanos de Avis, com exclusão de D. João III e, talvez, do Cardeal D. Henrique.
A Monarquia Universal, segundo Dante, é paralela e complementar da soberania eclesiástica e espiritual do Papa. Não se lhe opõe, mas apetece a distinção clássica dos dois poderes. Não pretende ser com ela coincidente (como na concepção faraónica e, mais tarde, na coroa dupla do Basileus bizantino), mas também não quer ser dela absolutamente dependente, até no espiritual.
Como escreveu o poeta-filósofo numa das últimas páginas da sua obra doutrinária, dois fins deu ao homem a inefável Providência: a beatitude desta vida, que consiste no exercício da própria virtude e que se figura pelo paraíso terrestre; e a beatitude da vida eterna, que consiste na fruição da presença divina (49).
Mas, explica, a estas diferentes beatitudes, como a diversas conclusões, se deve chegar por diferentes meios. Chegamos à primeira por doutrinas filosóficas, desde que, todavia, sigamos os ensinamentos destas e exercitemos as virtudes morais e intelectuais. Chegamos à segunda por meio de doutrinas espirituais que excedem a razão humana, desde que as ponhamos em prática com o auxílio das virtudes teologais, fé, esperança e caridade (50).
Dante Alighieri |
Saliente-se o essencial da posição de Dante, no seu tempo contestada pelas acções ou ambições políticas e até por vezes territoriais do poder papal e eclesiástico: só Deus elege, só Deus investe, porque só Deus não tem superior (52). Sendo assim, prova-se que o Imperador ou Monarca do Mundo imediatamente se vincula ao príncipe do Universo, que é Deus (53), d'Ele recebendo a autoridade temporal (...) sem qualquer intermediário, desde a fonte da autoridade universal (54). E se César deve ter por Pedro o respeito de um filho primogénito por seu pai, contudo recebeu o governo do Mundo de Aquele que é o Governador de todas as coisas espirituais e temporais (55).
Compreendem-se perfeitamente, à luz da época, as paixões despertadas por esta questão. Se se entendesse conceptualmente e geralmente que o imperador do Mundo, o Monarca Universal, tinha, por si próprio, o carisma do Espírito Santo, então ficaria profundamente diminuída ou até em muitos aspectos ferida de morte a autoridade política, temporal e moral de um Sumo Pontífice que ao tempo excomungava Reis e Príncipes, lançava o anátema sobre Estados e interditava Reinos e Povos inteiros, proibindo-os de receber os sacramentos se desobedecessem às suas Bulas ou a muitas determinações conciliares, inclusivamente em questões onde havia conflitos de competências entre os poderes espiritual e terrenal. Já observámos, aliás, algumas das questões que opuseram alguns Reis de Portugal, incluindo o próprio D. Dinis, aos Bispos e à Cúria romana.
Por outro lado, sob que critério seria possível atribuir ao Imperador a autoridade em domínios que o Papa até aí considerava do seu foro, embora não fossem puramente espirituais, e como seria nele reconhecível o charis que ao Papa é garantido pela escolha (inspirada pelo Espírito Santo) dos seus Eleitores eclesiásticos, os Cardeais e os Bispos, sucessores de Pedro?
Dante procurou resolver o problema teológico pelo menos em parte, dizendo que, se é verdade que foi Deus que pré-ordenou o movimento dos astros, a fim de que pela Sua providência todas as coisas se reunissem nas várias ordens, então só Deus elege, só Deus investe, porque só Deus não tem superior, de onde se conclui que aqueles que hoje se chamam Eleitores (o Papa, os Cardeais e os Bispos), ou aqueles que no passado receberam tal nome, não têm qualquer direito a esse título e, quanto muito, poderão ser considerados reveladores da Providência Divina (56).
Ao apresentar esta teoria, Dante não fundamentou no entanto, quanto a nós, o problema da eleição do Monarca em termos satisfatórios. São o Papa e a Igreja que o elegem, o sancionam, o coroam? Então há sem dúvida uma eleição com legitimidade transcendental, com um carácter de sagrado: o Monarca, investido por um carisma de ordem sagrada, encontra-se ligado ao Céu por uma ponte legítima, guiado pelo que em si a estabelece e por isso é chamado Pontifex ou Pontífice.
Frederico II, Imperador da Germânia e rei da Sicília. |
Mas então, pode interrogar-se, qual a alternativa, em época que não tinha ainda no seu aparelho conceptual a ideia de uma eleição democrática, pelo sufrágio popular? Como impedir que qualquer tirano, arrogando-se o título de Imperador, subisse ao poder pela simples força de um exército de mercenários? Por outro lado, a hereditariedade, sem a sanção de um poder mais alto do que os da genealogia e do sangue constituiria bastante garantia para a legitimidade transcendental e divina que Dante desejava para a sua Monarquia ideal?
É aqui, precisamente aqui, que a resposta de Dante Alighieri se nos afigura de mais frágil (porque apaixonada) fundamentação. A seu ver o povo romano, sujeitando a orbe, não teve outra intenção que não fosse o bem público (...). Ora aqueles que se propõem o bem da república propõem-se o fim do direito, assim ganhando a legitimidade. Sujeitando a orbe, foi legitimamente que o povo romano se adjudicou a dignidade do Império (59).
Por outras palavras, conquistando o universo, chegou o povo legitimamente ao império (60), já que certos indivíduos, ou melhor, certos povos, nasceram para o comando: os que realizam o fim do direito, que é a justiça, como de Eneias e dos Romanos, disse Virgílio (guia de Dante) pela boca do profeta Anquises, na Eneida (61).
Não admira por conseguinte que o povo Romano tenha triunfado entre os vários atletas que lutaram pelo império do mundo (62), nomeadamente dos Assírios, dos Egípcios, dos Persas e dos Gregos de Alexandre Magno. Roma é, pois, o Quinto Império, o Império definitivo, porque o povo que triunfou de todos os outros na luta pelo império do mundo, triunfou por juízo divino (63).
Não há dúvida de que na Monarquia Dante alude directamente à famosa profecia do profeta Daniel ao Rei da Babilónia, Nabucodonosor, interpretando o seu sonho sobre a estátua com cabeça de ouro fino, o peito e os braços de prata, o ventre e as ancas de bronze, os pés metade de ferro e metade de barro, que teria sido despedaçado por uma pedra que se despenhou dos píncaros sem intervenção humana e que se transformou depois numa alta montanha, que encheu toda a terra (64).
No seu discurso ao rei, Daniel interpreta o sonho como uma alegoria a quatro impérios sucessivos. O Quinto, o da pedra metamorfoseada em alta montanha que encherá toda a terra, será o Império de Deus, que nunca será destruído e subsistirá para sempre.
Eis o Quinto Império, que na exegese tradicional judaica será o de Israel, seguindo-se ao dos Babilónios, dos Medas, dos Persas e dos Gregos. Assim nasceu o mito, que ao longo dos tempos teve numerosas interpretações. Poderoso e sedutor mito (conotado com o do Regresso ao Paraíso), que Dante, atribuindo agora aos Assírios, Egípcios, Persas e Gregos os quatro primeiros Impérios, projecta na Roma, antiga e ressurgida, a seu ver o Quinto Império pelas razões que aduz.
Daí que Dante se dirija deste modo ao Papa, ao Alto Clero, ao partido Guelfo: que deixem então de injuriar o Império Romano aqueles que se dizem filhos da Igreja. Vêem que Cristo, esposo da Igreja, confirmou o Império nas duas pontas da sua existência: no nascimento e na morte. Penso que agora se pode considerar assaz evidente que o povo romano se adscreveu o Império do Universo com toda a legitimidade (65).
Concluindo que a autoridade espiritual do Monarca (Imperador dos Romanos e do mesmo passo Imperador Universal) desce sobre ele, sem qualquer intermediário, desde a fonte da autoridade universal (66), não recebendo o poder temporal eclesiástico, nem a existência, nem a faculdade que é a autoridade, nem mesmo o exercício puro e simples, mas apenas aperfeiçoamentos acidentais ou mesmo maior eficácia pela luz da graça que Deus, no céu, e a benção do Sumo Pontífice na terra, lhe infundem (67), esperava Dante Alighieri como vimos, que o advento de Henrique VII de Luxemburgo, Rei dos Romanos, restaurasse o Império Romano Universal, Quinto Império do Mundo, com todos os carismas, direitos e prerrogativas por ele deduzidos no seu livro, isto é, sem as limitações, as interferências e os interditos de um poder Sumo-Pontifical extrapolado para fora do seu círculo e da sua autêntica (e aí, não negada), jurisdição.
A concepção de Alighieri é italocêntrica, ou melhor, romanocêntrica. Dir-se-ia que, movido pelas paixões do seu tempo, não extraiu todas as conclusões da sua própria tese. A argumentação de que as vitórias antigas dos romanos atestam o juízo de Deus e a legitimidade da sua candidatura, ad aeternum, ao Império Universal, não nos pode hoje convencer, ou teríamos então de atribuir idêntica legitimidade, sucessivamente aos ingleses, aos alemães, aos norte-americanos ou aos soviéticos (in ob. cit., pp. 133-140).
Notas:
(42) H. Schaeffer, História de Portugal, ob. cit., p. 318.
(43) Dante, Paraíso, Canto XIV, 100, in La Divine Comédie, ob. cit., p. 172.
(44) Ibid., Canto XIV, 103.
(45) Ibid., Canto XIV, 109.
(46) Ibid., Canto XIV, 106.
(47) V. quadro sinóptico da ordenação moral do Paraíso, segundo Dante, in La Divine Comédie, ob. cit., p. 592.
(48) Ramón Menendez Pidal, Idea Imperial de Carlos V, Ed. Espasa-Calpe, S.A.., Madrid, 1941, pp. 9 a 35.
(49) Dante Alighieri, Vida Nova e Monarquia, trad. portuguesa de Carlos Soveral, Guimarães Ed. LIsboa, 1954, p. 210.
(50) Ibid., p. 211.
(51) Ibid.
(52) Ibid., p. 212.
(53) Ibid., pp. 209 e 210.
(55) Ibid., p. 213.
(56) Ibid., p. 212.
(57) Ibid.
Papa Inocêncio III |
(59) Ibid., p. 148.
(60) Ibid., p. 153.
(61) Eneida, IV, 848.
(62) Monarquia, ob. cit., p. 160.
(63) Ibid., p. 156.
(64) Do Livro de Daniel, in Bíblia Sagrada, Ed. Verbo, Lisboa, 1982, pp. 1016/1017.
(65) Monarquia, ob. cit., pp. 170 e 171.
(66) Ibid., p. 212.
(67) Ibid., p. 184.
Continua
Nenhum comentário:
Postar um comentário