sábado, 24 de dezembro de 2022

A Crise Política Europeia e a Situação Externa de Portugal

Escrito por Oliveira Salazar





    «(...) Duas palavras, agora, sobre o problema político.

O Sr. Presidente do Ministério [General Domingos de Oliveira] declarou que iam ser preparadas, finalmente, a reforma da Constituição política e a organização nacional destinada a continuar e completar a restauração geral do País. A sua autoridade de chefe de Governo e de oficial general, com larga folha de serviços, marcou nitidamente uma posição, que está em correspondência com as superiores necessidades do Estado e com o pensamento – quero crê-lo – de todos aqueles que ligam à Ditadura a devida significação. Peço licença para apresentar sucintamente as razões da minha concordância com este modo de ver.

Pode afirmar-se que entre os homens que pensam nas coisas públicas em Portugal se encontram três posições diversas, relativamente a este problema. Condensá-las-ei nas três proposições seguintes:


       1.ª a Ditadura nada tem que ver com a política;

       2.ª a própria Ditadura é a solução do problema político;

       3.ª a Ditadura deve resolver o problema político português.


Examinemos, pela sua ordem, estas três atitudes.

É, sobretudo, fora dos elementos afectos à Ditadura e entre os seus inimigos que se defende a primeira tese – a Ditadura nada tem que ver com a política. Segundo estes, a Ditadura teria como única razão de ser a necessidade de uma obra administrativa, concluída a qual nada mais haveria a fazer do que restabelecer a ordem constitucional, suspensa ou violada desde 28 de Maio de 1926. Quem pensar um pouco nesta atitude mental descobre facilmente que ela se apoia sobre dois outros conceitos – um acerca da administração, outro acerca da natureza ou da origem dos males de que enfermava o País.

Na verdade, se a Ditadura só há-de fazer administração e não política, é que a administração se pode separar da política. Isto não corresponde à realidade dos factos.

É apenas verdade que se pode fazer administração fora de toda a política partidária, mas neste sentido estrito não se há-de dizer pode-se, há-de de dizer-se – deve-se. Quando, porém, se tem em mente a verdadeira, a alta acepção da palavra política, julgo impossível fazer-se, sem esta, administração que se imponha e valha. Fora do pequeno expediente, a execução a bem dizer material duma regra, pode afirmar-se que a verdadeira administração tem sempre atrás de si um conceito de Estado, finalidade social, de poder público e suas limitações, de justiça, de riqueza e das funções desta nas sociedades humanas, quer dizer, uma doutrina económico-política, se quereis mesmo, uma filosofia. Ai dos governos, melhor, ai dos povos cujos governos não podem definir os princípios superiores a que obedece a administração pública que fazem.

Mas não é este o único conceito erróneo que está na base dos que recomendam a ditadura simplesmente administrativa. O outro é julgar-se que todos os males nacionais provinham dos homens a quem estava confiado o ónus do governo, e que, afastados esses e substituídos por outros, estaria resolvido o problema. Reduz-se assim a uma defeituosa arrumação partidária uma das mais delicadas e complexas questões nacionais.

Sou dos que, tendo meditado longamente sobre os vários acidentes da vida pública portuguesa, lançam sobre os homens do passado responsabilidades, ainda que grandes, menores que as que vulgarmente se lhes assacam; e nunca pude compreender que sejam eles mesmos a preferir se atribua a incompetência, a desonestidade e a ambição o que mais fundadamente se deve supor derivado de vícios de organização ou de deficiências de fórmulas políticas.

Daqui deduzo que a ditadura que governa e que administra não é, nem pode ser, no campo dos princípios ou no das realidades nacionais, simples parêntese da vida política partidária.

Passemos adiante. A segunda proposição afirma que a Ditadura é de si mesma a solução do problema político. Parece-me que também aqui há erro ou exagero.

Sem dúvida que a ditadura, mesmo considerada apenas como a concentração no governo do poder de legislar, é uma fórmula política: mas não se pode afirmar que represente a solução duradoura do problema político; ela é essencialmente uma fórmula transitória.




Porque as ditaduras bastas vezes nascem do conflito entre a autoridade e os abusos da liberdade, e vulgarmente lançam mão de medidas repressivas da liberdade de reunião e da liberdade de imprensa, confundem muitos ditadura e opressão. Não é isto da essência da ditadura, e compreendida a liberdade (única noção para mim exacta) como a garantia plena do direito de cada um, a ditadura pode até, sem sofisma, suplantar sob esse aspecto muitos regimes denominados liberais. Ela é em todo o caso um poder quase sem fiscalização, e este facto faz dela instrumento delicado que facilmente se gasta e de que facilmente se pode abusar. Por tal motivo não é bom que a si mesma se proponha a eternidade.

Somos assim chegados à terceira proposição, única, a meu ver, verdadeira: a Ditadura deve resolver o problema político português.

Porque há-de fazê-lo? Porque a experiência demonstrou que as fórmulas políticas que temos empregado, plantas exóticas importadas aqui, não nos dão o governo que precisamos, lançaram-nos uns contra os outros em lutas estéreis, dividiram-nos em ódios, ao mesmo tempo que a Nação na sua melhor parte se mantivera, em face do Estado, indiferente, desgostosa e inerte.

Para que há-de fazê-lo? Para que a sua obra reformadora se não inutilize e se continue, para que o seu espírito de trabalho e de disciplina se consolide e se propague, para que se crie a mentalidade nova que é indispensável à regeneração dos nossos costumes políticos e administrativos, à ordem social e jurídica, à paz pública, à prosperidade da Nação.

Como há-de fazê-lo? Por meio duma obra educativa que modifique os defeitos principais da nossa formação, substitua a organização à desorganização actual e integre a Nação, toda a Nação, no Estado, por meio de novo estatuto constitucional.

Pode fazê-lo? Se todos os portugueses de boa vontade, a quem nos dirigimos, quiserem ajudar-nos, isso pode fazer-se. Quero exprimir-me melhor: isso tem de fazer-se, porque é impossível admitir que este País arraste uma existência miserável entre os dois únicos governos – demagogia e ditadura mais ou menos parlamentar – e em face dos quais a Nação só costuma ter duas atitudes: ou de rojo ou de costas, ambas indignas de si.

Não nos ocultemos que é árdua a tarefa e que vai para o futuro ser mais dura ainda a batalha. Mas quem alguma vez venceu sem que lutasse?»

Oliveira Salazar («Ditadura Administrativa e Revolução Política», in «Discursos, 1928-1934», na Sala do Risco, em 28 de Maio de 1930, onde oficiais do Exército e da Armada se reuniram com o Governo para comemorar o 4.º aniversário da Ditadura Nacional).

 




«Aos portugueses apresenta-se um problema: aderir ou não à União Nacional. Não se lhes abre, com efeito, senão um de dois caminhos: ou rasgar vida nova no quadro daquele movimento e nas linhas políticas e sociais esboçadas por Oliveira Salazar, ou aceitar o retorno ao passado, decerto com modificações que, no entanto, seriam feitas por homens e obedeceriam a ideias que haviam mantido o país por dezasseis anos em sobressalto constante. Neste dilema, logo nos começos daquele mês de Agosto de 1930 aderem à União Nacional os monárquicos. Em Londres, no seu exílio, D. Manuel segue atentamente a situação portuguesa, e Aires de Ornelas, seu lugar-tenente, instruía a Causa Monárquica para apoiar os princípios da União Nacional. É publicada uma declaração em que afirma: “A Causa Monárquica aplaude, pois, a patriótica iniciativa do governo e aceita lealmente, e de um modo geral, sem quebra das suas opiniões políticas, a doutrina do manifesto”. Depois, vem a adesão dos católicos. Lino Neto, presidente do Centro Católico, diz publicamente que este “vê com simpatia a União Nacional e faz votos por que realize a sua finalidade declarada”. Neste endosso há alguma reserva, todavia: sublinha-se que o Centro não constitui um partido político e lamenta-se que no seu manifesto a União Nacional não haja mencionado a Acção Católica. E correm rumores de que alguns prelados haviam aconselhado ao clero uma atitude de neutralidade, mesmo de distância. Na sua esmagadora maioria, contudo, os católicos seguem a União Nacional: no fim de contas, os princípios desta eram encabeçados e expostos pelo homem que fora o mais destacado militante e doutrinador do Centro Católico. E na sua generalidade sustentam a União Nacional as Forças Armadas, sobretudo através dos seus elementos mais jovens. E aceitam-na, ou pelo menos não a hostilizam, homens dos antigos partidos, em particular muitos liberais conservadores, alguns membros da União Republicana, do Partido Nacionalista, de outros grupos ainda. Por outro lado, aderem à União Nacional a classe média, a pequena burguesia, além dos oportunistas que vêem naquela o seu futuro. E frustrada, exausta, desiludida, a massa anónima do povo não regateia a sua colaboração. Disseminado, há o sentimento de que se procura uma nova mística que reconduza o país às suas raízes e que traga à superfície as forças latentes nos homens e na terra. Nesse conjunto, porém, sobressaem os monárquicos dissidentes irredutíveis. Não se enquadram na União Nacional os monárquicos dissidentes, os integralistas, os tradicionalistas, aqueles para quem o trono a restaurar não era o trono derrubado em 1910; nem tão-pouco algumas patentes militares, por questão de princípio ou compromisso anterior; e repudiam-na os homens de partidos radicais, desde os democráticos históricos até aos da extrema-esquerda, e todos aqueles que nas pequenas vilas e cidades firmavam a sua influência e poder no jogo partidário e que, por verem o fim deste, sentem o risco de subversão na vaga revolucionária.

Desenvolve o ministro do Interior, Lopes Mateus, a actividade sem descanso. É constante a sua acção junto dos governadores civis, na sua maioria oficiais do exército, e das autarquias locais; e por toda a parte constitui comissões distritais e concelhias da União Nacional. Obtém resultados, e ao novo movimento afluem activamente, segundo o apelo de Salazar, muitos homens de boa vontade. Mas estão por igual empenhados em destruir a ditadura as forças oposicionistas. Pelo país, os rumores, os boatos, as notícias desencontradas não consentem descanso ao governo. Murmura-se que Vicente de Freitas encabeça discretamente um golpe para fazer cair Salazar; fala-se na agitação mantida por Rolão Preto, em especial junto da juventude; monárquicos e integralistas, como Hipólito Raposo ou Paiva Couceiro, não estariam sossegados; e os bem informados dizem saber de novas conspirações em unidades militares. Aparece muito citado o nome de João de Almeida, herói de África, e alegam-se entendimentos seus com Vicente de Freitas, ou com Rolão Preto; e é preso aquele oficial [Anos mais tarde, em carta a Salazar, João de Almeida desmente que tivessem algum fundamento tais rumores]. Lopes Mateus [homem sincero, mas rude e ao que parece de capacidades intelectuais limitadas: popularmente, é cognominado de Cabo Mateus] não hesita: tem aperfeiçoado a organização da sua polícia de informações, e efectua detenções que julga indispensáveis à garantia da ordem pública. E concita a animosidade de muitas forças políticas. Estas, todavia, não poupam também o chefe do governo, Domingos de Oliveira; e alguns oficiais avistam-se com Salazar, a título particular, para lhe darem parte das suas inquietações, e transmitirem as suas ideias. Mas o ministro das Finanças alega a sua qualidade de simples membro do governo, sem responsabilidades efectivas na definição e condução da política geral do gabinete. Não deixa de se lamentar, contudo, em conversas com os mais íntimos. Desabafa com José Nosolini, companheiro de lutas no Imparcial; e com Serras e Silva, de cuja residência em Coimbra fora assíduo colaborador, nas sessões de tertúlia política; e com os irmãos Diniz da Fonseca, agora em especial com o Joaquim. Em todos deixa a sensação de que está preparado para ser chefe do governo, e de que se já o fosse correriam as coisas por outra forma; e entendia que tudo provinha da indigência ideológica e escassa imaginação política de Domingos de Oliveira, além da sua frouxidão e falta de pulso firme. Para mais, os exilados mantinham-se em irrequietismo permanente. Embora arrastando uma existência nominal, não se dissolvera a Liga de Paris. Bernardino Machado, uma sombra à beira dos oitenta anos, continuava no entanto a intrigar, a escrever, a manobrar; e Afonso Costa não se fatigava nos seus contactos e nas suas viagens. Actua também em Paris um outro grupo, de homens mais novos, cujas figuras de maior destaque são Moura Pinto, Jaime de Morais, Jaime Cortesão: é o Grupo de Buda. Está sobretudo ligado à orientação política de José Domingues dos Santos, e tem como objectivo último o retorno maciço dos exilados a Portugal e a deposição da ditadura. Mas o ministro do Interior consegue prevenir, naquele Verão de 1930, todos os golpes e desmantelar todas as conspirações. Mais do que todos, no entanto, contribuía Carmona para manter a unidade das forças armadas e da nação: àquelas inspirava respeito, e pelo país além não diminuíra a sua popularidade. Mas estava apreensivo, temia pela concórdia entre portugueses, e solicitava, em encontros com o Cardeal Cerejeira, que o prelado erguesse as suas preces pela paz em Portugal.»

Franco Nogueira («Salazar, II, Os tempos áureos (1928-1936), Estudo Biográfico). 


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«O caso português

É nesta Europa doente, convulsa, empobrecida, desequilibrada, procurando tacteante as soluções políticas do futuro, que é preciso localizar o caso português. Reduzir, como se tem visto, o movimento que implantou a Ditadura a uma “conspiração de caserna” para que a classe militar viesse a usufruir o Poder é desconhecer as razões profundas do mal-estar geral, as tendências do nosso tempo, todas as fraquezas, abdicações, insuficiências do poder público, que estão na base daquilo a que pôde chamar-se a “crise do Estado moderno”.

Com motivos de ocasião no eclodir, sem dúvida; com a cor local que lhe dá a especial gravidade dos nossos problemas, certamente; com a modalidade que haviam de imprimir-lhe as circunstâncias da política portuguesa e a nossa maneira de ser e de sentir, a Ditadura, ainda que indecisa, titubeante, irregular na marcha e na acção, ela própria no começo mais sentimento instintivo que ideia clara, é um fenómeno da mesma ordem dos que por esse mundo, nesta hora, com parlamentos ou sem eles, se observam, tentando colocar o Poder em situação de prestígio e de força contra as arremetidas da desordem, e em condições de trabalhar e de agir pela Nação, sobranceiramente às divisões e ódios dos homens e aos interesses particulares dos grupos. Ir mais longe ou mais perto nesta orientação depende de possibilidades nacionais, sobretudo da preparação do espírito público, mas não constitui diferença essencial.

Todos sabem de onde vimos – de uma das maiores desorganizações que em Portugal se devem ter verificado na economia, nas finanças, na política, na administração pública. Divisões intestinas, solidariedades equívocas na política e na administração, erros acumulados, a falta de correcção de vícios da nossa organização social, desordem constitucional permanente, sucessivas revoluções que nada remediavam e agravavam todos os males, fizeram perder a fé no Estado como dirigente e coordenador dos esforços individuais; e a intranquilidade existente no espírito público manifestava mesmo desconfiança na sua força para defender a vida e os bens dos cidadãos. Debruçado tristemente sobre o passado glorioso que é a sua História, e sobre as ruínas, as misérias, a desorganização do presente, desconhecendo as suas enormes possibilidades de grande nação, penhor do futuro, o País caiu na “apagada e vil tristeza” do poeta e parecia ter desistido de viver um grande pensamento de renovação interior e de marcar no mundo, sem afrontar ninguém, a posição que pode e deve marcar.

Todos sabem de onde vimos – e todos sabem onde estamos. Os esforços feitos e os resultados obtidos, sejam quais forem as deficiências impostas pela gravidade dos males existentes, impediram a catástrofe e garantem que se está no caminho da salvação e do ressurgimento. Se descontarmos as arguições feitas pelos que são forçados a recorrer à campanha do boato contra a Ditadura – eu responderei com os números em breves dias à nova ofensiva contra as finanças –; se examinarmos à verdadeira luz os sofrimentos próprios da cura, gerais na europa molestada pela guerra; se pesarmos bem a situação em 1926, a que existe hoje e a que está em perspectiva pelo prosseguimento da reorganização nacional, concluiremos que, apesar dos motivos de insatisfação, comum em diversos graus a todos os povos, escapámos a um despenhadeiro mortal e nos encontramos em terreno seguro, de onde podemos conquistar a prosperidade. Há paz; há ordem; um espírito de vida nova anima o País; há confiança e há crédito; impõem-se à administração princípios de moral que completam, na execução, a justiça da lei; há um plano de vida para o Estado, formulado sobre os interesses gerais da colectividade (e todos sabem que, uma vez assentes, os programas do Governo se cumprem); o País, aliviado da atmosfera de irredutibilidades partidárias, está menos dividido, e não tendo escolhido os seus representantes, sente-se mais perto do Poder, sente que o Governo é mais seu, confia mais na sua justiça e na sua acção.

Aqui é que estamos; e, sabendo já de onde vimos, é necessário ver para onde iremos agora.

Apesar da agitação revolucionária que pretende reconstituir o estado anterior e constantemente desmente o que por outro lado afirma, é certo não haver declarações públicas de políticos responsáveis no sentido da defesa de um passado que para todos parece não dever ter sequência nem ser digno de imitação, pois que há confissões de erros e propósitos de emenda.

A unanimidade de vistas sobre este aspecto negativo do problema dispensa-nos de insistir. Demais sabemos nós e sabem eles que, a dar-se o desaparecimento da Ditadura pelo regresso ao regime das facções, toda a obra de restauração, todas as possibilidades existentes seriam substituídas pelas causas anteriores de desorganização e de ruína, agravadas na sua força destrutiva por indisciplina maior, por paixões exacerbadas, pelo aniquilamento das últimas resistências materiais e morais que pudessem opor-se a todos os desmandos e até mesmo à subversão das condições de existência da própria sociedade.

Que fazer então? A atitude de aconselhada independência e neutralidade, aguardando que do simples embate das forças políticas surja o Estado futuro, é atitude imprevidente, indigna de governantes, falha de lógica, desconhecedora das realidades sociais: nunca barco abandonado à fúria de ventos contrários demandou porto de abrigo, e muitas vezes se despedaçou, ao tocar a terra, contra os rochedos da costa!

Que fazer então? Tomar resolutamente nas mãos as tradições aproveitáveis do passado, as realidades do presente, os frutos da experiência própria e alheia, a antevisão do futuro, as justas aspirações dos povos, a ânsia de autoridade e disciplina que agita as gerações do nosso tempo, e construir a nova ordem de cousas que, sem excluir aquelas verdades substanciais a todos os sistemas políticos, melhor se ajuste ao nosso temperamento e às nossas necessidades.»

Oliveira Salazar («Princípios Fundamentais da Revolução Política», in «Discursos, 1928-1934», na Sala do Conselho de Estado, em 30 de Julho de 1930, perante o Governo e os representantes de todos os distritos e concelhos do País).

 




«Com efeito, precisamente a 5 de Outubro, esboça-se em Lisboa uma manifestação oposicionista. Segundo a polícia, deveria coincidir com uma tentativa de insurreição, que aquela frustrara; e a nota, que o governo publica, dá conta da prisão de alguns militares e civis, membros do comité revolucionário, e cuja lista completa as autoridades afirmam possuir.  Dias depois, Cunha Leal, que se encontrava deportado em S. Miguel mas com liberdade de movimentos na ilha, é detido na fortaleza de S. Brás; e como desde há tempo se lhe atribuísse a agitação que se notava entre os demais deportados em Ponta Delgada, foi aquele deslocado para o Funchal. Continuava a pairar, todavia, uma atmosfera de tensão no país. Subia a animosidade contra o ministro do Interior; e muitos oficiais, firmes no seu apoio ao governo, não têm confiança no ministro da Guerra, Namorado de Aguiar. Consideravam alguns, por outro lado, que Domingos de Oliveira se mostrava pouco eficiente. E em muitos elementos militares começa a ter curso a opinião de que é tempo de confiar a civis as responsabilidades políticas do governo. Estas dissidências, contudo, não chegavam a ter expressão exterior: todos compreendiam a necessidade de uma frente unida perante os ataques da oposição e as tentativas dos antigos políticos para repor um sistema partidário que, se vitorioso de novo, seria agora muito mais radical do que o existente em 28 de Maio de 1926. E naquele Outono de 1930 esta visão parecia confirmada pelos factos. Em Novembro, na verdade, surgem novas notícias de conspirações que a polícia ia desmantelando; e nos princípios de Dezembro as autoridades descobrem substanciais partidas de armamento ofensivo.»

Franco Nogueira («Salazar, II, Os tempos áureos (1928-1936), Estudo Biográfico).

  

«Alguns reparos...

Procurei apresentar o mais claramente que me foi possível os princípios basilares em que, segundo o manifesto da UNIÃO NACIONAL, deve apoiar-se a nova ordem de coisas, e no entanto não estranharia que muitas objecções se levantassem em vosso espírito a tudo que acabo de dizer-vos.

Um reparo prevejo eu; em tam longo discurso, exclusivamente sobre matéria política, pouco se fala de liberdade, de democracia, de soberania do povo, e muito, ao contrário, de ordem, de autoridade, de disciplina, de coordenação social, de Nação e de Estado. É certo, e há-de confessar-se corajosamente, se nos dispomos a fazer alguma coisa de novo, que há palavras e conceitos gastos sobre os quais nada de sólido se pode edificar já.

Nós apreendemos pelo raciocínio e vimos pela experiência que não é possível erguer sobre este conceito – a liberdade – um sistema político que efectivamente garanta as legítimas liberdades individuais e colectivas, antes em seu nome se puderam defender – e com alguma lógica, Senhores! – todas as opressões e todos os despotismos. Nós temos visto que a adulação das massas pela criação do “povo soberano” não deu ao povo, como agregado nacional, nem influência na marcha dos negócios públicos, nem aquilo de que o povo mais precisa – soberano ou não – que é ser bem governado. Nós temos visto que tanto se apregoaram as belezas da igualdade e as vantagens da democracia, e tanto se desceu, exaltando-as, que se ia operando o nivelamento em baixo, contra o facto das desigualdades naturais, contra a legítima e necessária hierarquia dos valores numa sociedade bem ordenada.

Ora nós queremos ser mais positivos – tanto é, mais verdadeiros na nossa política.

Na crise de autoridade que o Estado atravessa, dar-lhe autoridade e força para que mantenha imperturbável a ordem, sem a qual nenhuma sociedade pode manter-se e prosperar; organizar os poderes e funções do Estado de forma que se exerçam normalmente, sem atropelos ou sem subversões; não coarctar o Estado a livre expansão das actividades que se movem e actuam no seu seio, senão no que seja reclamado pelas necessidades de harmonia e coexistência social; definir os direitos e garantias dos indivíduos e das colectividades, e estabelecê-los e defendê-los de tal modo que o Estado os não possa desconhecer e os cidadãos os não violem impunemente – isto é liberdade.

Arrancar o Poder às clientelas partidárias; sobrepor a todos os interesses o interesse de todos – o interesse nacional; tornar o Estado inacessível à conquista de minorias audaciosas, mas mantê-lo em permanente contacto com as necessidades e aspirações do País; organizar a Nação, de alto a baixo, com as diferentes manifestações de vida colectiva, desde a família aos corpos administrativos e às corporações morais e económicas, e integrar este todo no Estado, que será assim a sua expressão viva – isto é dar realidade à soberania nacional.

Ter bem presente no espírito que os homens vivem em condições diferentes e que esse facto se opõe, por vezes, a que seja uma realidade a sua igualdade jurídica; proteger o Estado de preferência aos pobres e aos fracos; fomentar a riqueza geral para que a todos caiba ao menos o necessário; multiplicar as instituições de assistência e de educação que ajudem a elevar as massas populares à cultura, ao bem-estar, às altas situações da Nação e do Estado; manter não só abertos, mas acessíveis, todos os quadros à ascensão livre dos melhores valores sociais – isto é amar o povo e, se a democracia pode ainda ter um bom sentido, isto é ser pela democracia.

Aí tendes o meu pensamento em face dos vossos reparos.»

Oliveira Salazar («Princípios Fundamentais da Revolução Política», in «Discursos, 1928-1934», 30 de Julho de 1930).

 

Oliveira Salazar e o Marechal Gomes da Costa.

«Com efeito, a 30 de Dezembro de 1930, reúnem-se no Quartel-General do Governo Militar de Lisboa algumas centenas de oficiais. Têm por objectivo declarado solenizar a entrega da Grã-Cruz de Cristo ao brigadeiro Daniel de Sousa, governador militar. Na realidade, trata-se de sublinhar a solidariedade entre os oficiais da guarnição de Lisboa, e destes com a ditadura. Com o general Domingos de Oliveira, estão presentes Salazar e quase todos os demais membros do gabinete. Discursa o presidente do ministério, mas são palavras de circunstância as que profere; e limita-se a sublinhar que o Exército será rude contra atentados à ordem pública. Reveste tom diverso o tema escolhido por Oliveira Salazar: este empenha-se em fazer o elogio das virtudes militares.

Decerto: a ditadura exige, para levar a termo limpo a sua obra, esforço e dedicação da força armada. Mas este ponto fora tratado pelo chefe do governo. Apesar de ser “quasi um escandalo” pelo que representa de ousadia da sua “parte civil e mestre-escola”, Salazar propõe-se fazer uma simples palestra sobre a “função”, o “ideal”, e as “virtudes militares”. Antes de tudo, e no rumo da vida, há que possuir-se vocação, que é a “íntima harmonia entre a formação do nosso espírito e o espírito da nossa profissão”. Porque, se “vida não é um brinquedo”, também escusa de ser “o fardo que muitos levam, curvados sob peso com que não podem, escravizados a uma sina que não compreendem”. É apenas uma coisa séria, em que a realização se deve aproximar quanto possível de um certo ideal. “Nesse sentido, cada vida deixa de ser tempo que passa para ser obra que fica”. E que é a função militar? É a “actuação da força organizada para a defesa do agregado social e para a realização da justiça”. Essa força tem de garantir “a primeira e mais sagrada das liberdades, que é a independência". Alguns pensam que o progresso intelectual e moral da humanidade virá a tornar inútil a função militar; e outros julgam esta ultrapassada, porque a vida social se converte espontaneamente em equilíbrio perfeito das actividades individuais. Mas estes são problemas de filosofia e ciência social. Na realidade, tanto internamente como no terreno internacional, o problema é político e técnico: a política dita o objectivo a atingir, a técnica dita os meios e a organização. Há que manter uma proporção bem definida entre o pessoal e o material, para que se obtenha um máximo de rendimento com um mínimo de custo: de outro modo seriam parasitários os efectivos militares. No plano individual, exigem-se dos que a exercem algumas qualidades específicas: “valor”, “lealdade”, “patriotismo”. São virtudes inerentes à função. “Compreende-se acaso um militar cobarde? Um camarada desleal? Um combatente traidor à Pátria?” Não; porque então “já não há exército mas só multidão armada”. “O valor é mais que uma virtude militar: é o próprio atributo da força”. E a “força marcha em forma e em cadência – é a sua necessidade estrutural de ordem no espaço e no tempo; a força marcha erecta – é a revelação externa da confiança; a força tem o passo rígido e firme – domina, é senhora da terra em que rende; a força não se nega a si própria – morre, mas não se rende; a força não descansa nem mesmo para morrer – morre mas devagar”. E a lealdade? Esta “é a verdade do sentimento”; e por esse motivo a força “não comporta conciliábulos nem combinações secretas”; e “bate-se de frente”, sendo “desleal atacá-la pelas costas”. E o patriotismo? Para qualquer, “o patriotismo não pode desprender-se da família, do torrão natal, dos interesses e dos homens”, “das saudades dos lugares e das pessoas”, “dos vivos e dos mortos”. Mas para o soldado “não há a aldeia, a região, a província, a colónia – há o território nacional”. Para o militar, “não há a família, os parentes, os amigos, os vizinhos”: só há a “Pátria, em toda a sua extensão material, no conjunto dos seus sentimentos e tradições, em toda a beleza da sua formação histórica e do seu ideal futuro”. E à Pátria tudo é devido: “a saúde, a comodidade, o dia e a noite, a paz, a família, mesmo a vida”. E “parece que é por esse consumo de vidas que a Pátria se mantém, e aumenta a sua beleza e engrandece o seu poder”. Porque “fora do são nacionalismo, fora da noção e amor da Pátria – não há, pois, vida nem força militar: há exércitos de parada ou hordas organizadas para a pilhagem”. Desta forma, a “carreira militar não é um modo de vida como outro qualquer, mas o exercício de uma função como nenhuma outra na sociedade e no Estado”. E todavia “as noções de Pátria, de Estado, de autoridade, de direito, de família, de propriedade, de diferenciação social estão em causa, e é nesse terreno que vão dar-se as maiores batalhas do futuro. Perante a grandeza dos debates e a violência da luta, certas divergências políticas, hoje profundas, hão-de parecer-nos mais tarde simples artifícios de dialéctica, jogos florais de crianças. E no entanto factos recentes revelam-nos solidariedades e colaborações, cá dentro e lá fora, tão contrárias ao simples bom senso que só podem compreender-se pelo ódio e pela cega paixão política: essa não escolhe os caminhos da razão, mas pretende cevar-se em destruições e ruínas, ainda que nelas sejam arrastados princípios, interesses, afeições caras, mesmo o futuro da Pátria, mesmo o futuro da nossa civilização”. Perante estes factos, há que encarar a desorientação do momento com calma mas com firmeza, pondo na defesa da colectividade pelo menos a energia com que outros pretendem impor o interesse de um grupo. É este o dever; e com aquelas palavras pretendia somente “avivar no vosso espírito a alta consciência da vossa posição e a noção exacta das vossas responsabilidades”.

Com este discurso, abstracto e místico, Oliveira Salazar suscita nos militares um complexo de sentimentos múltiplos. Lisonjeia-os: são os cultores do heroísmo: e as forças armadas simbolizam o mais alto expoente dos grandes valores e dos grandes princípios. Nas forças armadas se consubstanciam a bravura, a coragem, o desinteresse, o espírito de sacrifício, a entrega total a uma causa que transcende cada um. Depois, causa-lhes uma inibição: esquecer aqueles valores, ou negá-los, ou agir em contrário, é atentar contra os deveres mais elementares, e por essa via perder o respeito da sociedade. Finalmente, coloca os militares em face das suas responsabilidades: cumpre-lhes defender a Pátria dos seus inimigos externos e internos, identificando-se estes com os inimigos da ditadura, porque esta, por sua vez e no momento histórico, se identifica com os interesses supremos da nação no seu todo. É hábil, e de boa técnica política, e concilia em seu favor uma força decisiva.

Este homem hábil, e frio, e hermético, e remoto, que acaba de defender o culto dos heróis, de exaltar as virtudes marciais, de proclamar a mística da morte pela pátria, nem por isso se exime às emoções de todos os homens. De momento envolve-o um enredo sentimental. Pela sua figura está atraída uma mulher, e Salazar não lhe recusa a sua intimidade. Tudo é discreto, ninguém o pressente. Essa mulher celebra com o ministro o fim do ano, passa com ele a meia-noite de 31 de Dezembro de 1930. E na folha da agenda em que Salazar anota durante o ano as altas figuras que recebe e os altos negócios do Estado, esse vulto feminino regista, na página relativa àquele dia, que gosta dele “hoje mais do que ontem e menos que amanhã”

Franco Nogueira («Salazar, II, Os tempos áureos (1928-1936), Estudo Biográfico).

 



«Formou-se o País quase de um jacto, desde que se fez a reconquista deste canto da Península, e as nossas fronteiras, inalteráveis desde séculos, não foram fixadas a expensas de qualquer outra nação europeia. Subtrai-nos este facto às competições históricas das conquistas e desforras, permitindo se afirme mais pura a força moral da nossa independência e também da nossa expansão, desde que, firmada a base peninsular, passámos os mares para o alargamento do nosso domínio e manifestação mundial do nosso génio civilizador. Está aí, ingénita, natural, a substância deste nacionalismo, que tem de ser a alma da conservação, renascimento e progresso de Portugal.»

Oliveira Salazar («Princípios Fundamentais da Revolução Política», in «Discursos, 1928-1934», 30 de Julho de 1930).





«I was presented to him once... a most amazing man... one of the greatest Historical enigmas...»

Christopher Lee







A CRISE POLÍTICA EUROPEIA E A SITUAÇÃO EXTERNA DE PORTUGAL


Na Assembleia Nacional, em 22 de Maio de 1939, em sessão da Câmara destinada a autorizar o Chefe do Estado a visitar a União Sul-Africana.

 

SENHOR PRESIDENTE: 

SENHORES DEPUTADOS:

 

Há um ano e dias, precisamente no fim da anterior legislatura, tive o ensejo de expor à Assembleia Nacional a orientação governativa quanto aos mais graves problemas da política interna e a alguns que então figuravam na primeira linha das preocupações internacionais. Ao vir hoje pedir em nome do Governo o assentimento da Câmara à visita do Chefe do Estado a país estrangeiro, não se julgará despropositado fazer sumário balanço da situação internacional e dizer como entre os perigos e contingências desta se tem movido a nossa política externa.

I

No período de alguns meses acabou a guerra de Espanha, e com a vitória nacionalista se desvaneceram algumas das causas do desassossego geral. Mas no resto da Europa e no mesmo espaço desmembraram-se Estados, proclamou-se a independência de outros, fizeram-se rectificações de fronteiras com transferência de vastos territórios, encorporaram-se nações sob formas diversas, e com tudo isto se alterou notavelmente o valor estratégico e o potencial militar de alguns países. Dados como resolvidos uns problemas, tomaram logo outros o seu lugar, criando novas inquietações, como se, perdida certa estabilidade embora precária, todo o mapa europeu estivesse por esse facto sujeito a revisão. Há manifestamente exagero em supô-lo, mas na intranquilidade que se apossou dos espíritos todas as conjecturas, as mais absurdas, se transformaram em fonte de receios, senão de perigos.

Temos assistido com calma – que não é inconsciência despreocupada – ao desenrolar dos acontecimentos. Longe do seu principal teatro, com fronteiras secularmente estáveis, um só vizinho na metrópole, sem problemas de raça ou de língua, mistura de populações ou dependências económicas destas que arrastam as dependências políticas, a um canto da Europa, quase desligado dela e projectado ousadamente sobre o mar, país atlântico por excelência, como só a Inglaterra pode pretender sê-lo, e como ela com os maiores interesses e a tarefa mais pesada noutros continentes e mares – Portugal tem o dever de não se deixar transviar pelo desassossego geral. Mas nalguma coisa estamos em causa como os outros.

Que pretendemos da Europa ou até que ponto nos devemos considerar solidários com a sua vida e cultura?

Nós estamos presos à Europa politicamente na medida em que possamos ser arrastados pelas imprevisíveis consequências de um conflito geral, e moralmente em tanto quanto ela possa continuar a ser o cérebro e o coração do mundo. E em tais termos hão-de entender-se legítimas as queixas que temos de formular.

Comecemos pelos processos de trabalho.

Pôs-se de lado o convencionalismo diplomático e estão por completo desacreditados os antigos processos. O tom de uma nota, o protesto de uma chancelaria, a retirada de um diplomata, o aparecimento intempestivo de um navio ou de uma esquadra, um incidente de fronteiras, a mobilização parcial de um exército perderam o antigo significado e pelo menos parece que ninguém se importa já com isso. Substituída a velha discrição, correcta e silenciosa, pela diplomacia em assembleia geral de que a S. D. N. [Sociedade das Nações] foi vivo exemplar e consumado descrédito, passou-se ao método que podemos chamar da acção directa, febril nas diligências, premente nos contactos, plebiscitário e clamoroso ante as multidões. Concentra-se a atenção mundial nas declarações dos grandes homens públicos, e estamos bastante doentes para passarmos dias ansiosos à espera de um discurso e crermos que dele dependerá a paz ou a guerra. Isso não seria possível, mas o simples facto desta ansiedade mostra quão precária é aos olhos do espírito a organização da paz.





Pavilhão da Fundação: Sala D. Afonso Henriques.


Pavilhão dos Portugueses no Mundo: Sala Camões.


Lago Central do Jardim da Praça do Império, contendo os brasões atribuídos aos navegadores dos Descobrimentos.

Uma publicidade desaforada, estúpida umas vezes, outras inteligentíssima e intencional, esquadrinha as atitudes, dá sentido às coisas indiferentes, perverte as intenções mais puras, desvirtua o pensamento mais lúcido, açula paixões, espalha o ódio, lança o terror, suscita problemas e lembra soluções que são outros tantos problemas, e com falsas notícias e com meias verdades cria a atmosfera de guerra com que alguns, é certo, podem resolver dificuldades de política interna e outros não se percebe que intuito tenham senão a mesma guerra.

Destes usos e destes excessos nasceu um grande mal na Europa, que a visível diminuição da sua sensibilidade moral mais tem agravado ainda – o mal da desconfiança. Declarações, garantias, promessas, acordos, salvo os raros casos de se basearem na evidência dos interesses ou em amizades experimentadas pelo tempo, neles não crêem já os estranhos, porque em verdade os interessados parece serem os primeiros a ter neles pouca fé. O conflito dos interesses imediatos e das obrigações assumidas terminou em várias conjunturas com a vitória dos primeiros e o sacrifício dos valores morais. E para cúmulo demos durante a tragédia espanhola, com olhos cegos ou a razão perturbada, bastas provas de não distinguirmos já bem a verdade e o erro, a virtude e o vício, a ideologia política e a mentalidade criminosa, o que é deplorável para quem se proponha dar exemplo ao mundo.

São certos e graves estes males e no entanto afigura-se-me que os podemos considerar antes como sintomas de uma crise passageira e curável do que doença sem esperança, excepto se os princípios em nome dos quais a Europa pretende resolver os seus problemas contiverem em si o vírus mortal da guerra ou, por outras palavras, se a própria solução dos problemas importar a guerra, em vez de colaboração na paz.

A Europa, tal como resultou de condições mesológicas e de longa evolução histórica, não pode resolver por si e dentro de si os problemas fundamentais da sua vida e cultura; necessita da cooperação de outras partes do mundo. Podem deslocar-se soberanias – e esta deslocação está praticamente limitada a territórios e povos oscilantes –, podem sangrar-se populações, mas não podem aniquilar-se povos, raças, desenvolvimentos demográficos, energias e ambições de independência onde a maturidade da vida social a tenha por necessária. Não basta também a África em que a Europa pode dizer-se quase inteiramente domina, e por isso se habituou a resolver aqui os problemas de lá; são-lhe precisas a Ásia em que só parcialmente manda, e a América em que deixou absolutamente de mandar.

Ora a guerra pode ou não lançar a Europa na subversão das suas instituições e no aniquilamento da sua civilização e cultura – e muitos o pensam –, mas é certo que economicamente a arruína, e a paz em que ela está a viver também. Dos loucos dispêndios da preparação bélica que uns aos outros se atraem ou provocam advêm em grande parte as suas restrições de vida, as suas crises financeiras, as suas falências, as desvalorizações e instabilidade das moedas, em suma, não pagar e não cumprir, e à medida que maior colaboração se lhe impõe se vê condenada ao isolamento.

A grande força de progresso social e político que os nacionalismos representam só parece ser benéfica enquanto se mantém nos domínios da competição pacífica, aliás tenderá a criar dificuldades à solução dos problemas próprios nos outros nacionalismos despertos.

Quando a Europa fala de espaços vitais como de um facto ou de uma aspiração representativos de estreitas relações económicas, da existência ou da formação de economias naturalmente complementares pela contiguidade ou aptidões naturais, ela pode tender para a progressiva racionalização da economia geral; mas, se dessa noção desliza para a reserva dos mercados e desta para o domínio político, incorpora naquela ideia um princípio de guerra e pode esperar se ergam fortes barreiras ao seu desenvolvimento.

Enquanto grupos de emigrantes trabalham em país estranho a cuja economia e hospitalidade se acolheram, ninguém estranhará que até eles se estenda a protecção do seu país de origem; mas, se a Europa proclamar o princípio de que esses núcleos representam projecção ou afirmação de soberania estrangeira em verdadeiros enclaves, logo haverá quem divise no fenómeno começo de invasão política e novos obstáculos surgirão à colocação no mundo de excedentes demográficos.

Quando a Europa deixa perceber que há regimes políticos essencialmente agressivos e outros dotados de evangélica mansidão e respeito pelos direitos alheios, não só comete um erro clamorosamente desmentido pelos factos mas tende para a artificiosa criação de blocos ideológicos e suscita problemas de ordem interna nos Estados que estão longe de facilitar o caminho para o entendimento. E quando exige ou concede direitos de cidade a organizações partidárias cuja direcção ou chefia reside em país estrangeiro e se manifesta contra a existência nacional independente, está a minar a solidez dos mesmos Estados ou soberanias em que pretende apoiar-se para construir a paz.

Disto e só disto me arreceio – que a Europa que nenhum problema pode resolver pela guerra dentro de si não saiba organizar em si mesma a paz e, de um modo ou de outro, procurando progredir e viver, lance ela própria, como semente sobre a terra, princípios de ruína e de morte. E seria trágico, pois, quando a Europa se diminui, é já menor o mundo.

Falamos como europeus.

Somos e orgulhamo-nos de ser pela nossa organização, pelo nosso trabalho, pelas nossas concepções políticas e sociais, pela nossa mesma estabilidade factor de paz. Nada pretendemos dos outros e não há contra nós reivindicações com qualquer fundamento a apresentar. Para honrar compromissos muitas vezes entrámos em guerra e batalhámos por esses campos da Europa, sem que nunca recebêssemos acrescentamentos territoriais, buscássemos paz interna, auferíssemos lucros ou benefícios de qualquer ordem, e de outro conflito não os queremos nem esperamos. Muitas vezes nos batemos por honra, dever ou ideal, não por interesses materiais, e tendo malbaratado fazenda e vidas, nunca a guerra nos foi negócio ou fonte de negócios. Quando muito, defendemos o nosso direito e mostrámos que a vida fácil nunca foi nosso quinhão: isso nos dá direito a falar de paz sem se poder dizer que o fazemos por covardia ou comodidade. É por convicção; é por dever.

Se efectivamente a guerra não pode ser uma solução para os problemas europeus mas um problema mais grave que os outros que pretenderia resolver, as dificuldades gerais reclamam no fim como no princípio da corrida de armamentos as soluções que só a inteligência pode ditar e não poderão nunca advir da força mas da discussão, do entendimento, da boa vontade em suma. Nestas circunstâncias pode afirmar-se que alguns em condições análogas às nossas só com mostrarem-se prudentes e calmos prestam já óptimo serviço à paz. 

II

Falemos agora como portugueses.

É porventura escusado definir nesta altura os princípios informadores e as grandes directrizes da nossa política externa, tão naturalmente decorrerem das circunstâncias da nossa vida e das realizações da nossa História. A nossa feição atlântica e actividade colonial estão na base da aliança inglesa; a vizinhança e solidariedade peninsular cimentam a fraternal amizade com a Espanha; o heróico esforço de Portugal criador de impérios, domina as relações com o Brasil – nem simpatia nem amizade de estranhos mas o próprio sangue e alma dos avós; a nossa compreensiva universalidade e a extensão dos nossos interesses permitem as melhores e mais amigáveis relações com todos os Estados. Mas agora só vou referir-me ao que tenha importância especial, e começarei pelo problema peninsular.

Portugal e Espanha são obrigados a viver paredes meias na Península; a boa ou má vizinhança favorece-os ou prejudica-os a ambos. Muitas vezes em oito séculos de vida Portugal lutou contra a Espanha ou contra Estados espanhóis, para manter ou consolidar a sua independência; muitas vezes também lutou a seu lado contra terceiros. Este traço é característico e resume em si a História das relações peninsulares: dois Estados irremovivelmente independentes; duas nações fraternalmente solidárias. Não sei porquê, mas a liberdade e independência da Espanha parecem ser postulado da política portuguesa, e na última crise mais uma vez se fez ouvir a voz da História e Portugal se manteve fiel à tradição.

Contra os compromissos tomados pelo Governo por bem compreensível necessidade política, e como se tais compromissos contradissessem a razão e profundo sentimento do povo, alguns milhares de portugueses, iludindo por mil formas a vigilância das autoridades, abandonaram a sua vida, interesses e cómodos, foram combater pela Espanha, morreram pela Espanha. Orgulha-me que tenham morrido bem  e todos – vivos e mortos – tenham escrito pela sua valentia mais uma página heróica da nossa e da alheia História.





Em todos os domínios onde era livre a nossa acção ajudámos no que pudemos o nacionalismo espanhol e a civilização cristã, directamente ameaçados por doutrinas e regimes que só os que andam à cata de desilusões esperam converter ou tornar inofensivos. Mantendo-nos a nós próprios firmes contra os assaltos organizados cá dentro; garantindo a segurança e tranquilidade da fronteira; enfrentando por toda a parte a incompreensão e cegueira da Europa (onde a Espanha nacional tão poucas amizades contava); arrostando com más vontades, ameaças e perigos; uma vez acompanhados, algumas vezes sós e guiados apenas por mais exacto conhecimento das situações e mais clara visão dos interesses da Europa ocidental, que através de tudo pretendíamos defender; sem cansaço, sem desânimo, sem cálculo, fomos desde a primeira hora o que deveríamos ter sido – amigos fiéis da Espanha, no fundo peninsulares. Despendemos esforços, perdemos vidas, corremos riscos, compartilhámos sofrimentos; e não temos nada a pedir nem contas a apresentar. Vencemos – eis tudo.

Vencemos quer apenas dizer que se realizaram as nossas previsões, pois da vitória só esperamos poder trabalhar à vontade, segundo a linha geral dos interesses comuns .A Espanha conseguiu matar no seu próprio sangue o vírus que ameaçava a paz e civilização da Península: martirizada, vergada pelo sofrimento, há-de ter mergulhado em meditação profunda até às mais recônditas raízes do seu ser; extrairá da sua consciência ancestral, do seu sangue e indómita bravura os princípios da nova ordem social e política, e em nome deles pode afirmar que, tendo-se revoltado contra a servidão comunista, não lutou bravamente para hipotecar por outro modo a sua própria independência e destino.

Um só limite há hoje à plena liberdade da sua acção externa – o Tratado de amizade com Portugal. E se é para nós algum tanto desvanecedor, traduz por outro lado a perfeita compreensão dos interesses superiores da Península, que a definição de qualquer política por parte da Espanha tenha sido precedida e condicionada, no pensamento dos seus mais altos dirigentes, pelas declarações do pacto luso-espanhol.

Quem quer que haja reflectido na política tradicional inglesa e no sentido essencialmente defensivo da sua actuação internacional terá podido compreender quanto a Inglaterra deve apreciar a criação desta verdadeira zona de paz na Península, dado que um dos Estados é seu velho aliado e o outro foi sempre seu amigo; mas eu não receio ir mais longe. Assim como a vitória vermelha em Espanha poria constantemente em risco de colisão os interesses franceses e ingleses em relação à Península, pelo conflito ideológico e político de um lado e pela aliança anglo-portuguesa do outro, assim é evidente que só através da Espanha nacionalista, irmãmente ligada a Portugal, a França e a Inglaterra podem trabalhar pela segurança dos seus interesses ou fronteiras e melhoria das suas relações. A esta luz o Tratado de amizade com a Espanha é bem o coroamento de uma obra e a pedra angular de uma política.

Assim foi e assim é, mas isso não quer dizer que os factos e atitudes destes últimos três anos tenham sido encarados e compreendidos pelos nossos melhores amigos tal qual os encarámos e compreendemos, que a guerra de Espanha não tenha sido mais uma dura prova a que foi sujeita a aliança inglesa. Felizmente, como doutras vezes no decorrer dos séculos, dela saiu vencedora.

Enquanto a guerra civil se arrastava, com a péssima ajuda da Europa e da América, e se mantinha em certos sectores da opinião inglesa manifesta incompreensão do significado da luta e da nossa posição nela, os Governos Português e Britânico aprofundavam os problemas da aliança e estudavam em amistosa colaboração as questões relacionadas com a defesa dos dois países por meio da missão vinda a Portugal. Não caíram no olvido os estudos, e apesar da influência que já possam ter tido na solução de alguns problemas militares, e de não se haverem perdido os contactos estabelecidos, estou por meu lado certo de que terão de prosseguir no futuro.

Este simples facto – aliás corroborado por muitas outras demonstrações de alta estima – é claramente revelador de como entendemos manter-nos dentro das constantes da nossa História, assegurando na fidelidade à aliança luso-britânica a defesa dos interesses comuns, e ressalvando no que lhe é estranho não só a liberdade de acção como a existência de muitas outras amizades. Foi sempre assim durante séculos, sem que possam estranhá-lo os que se habituaram a distinguir alianças com fundas raízes nas determinantes da geografia ou da evolução histórica, dos arranjos ocasionais, por interesse passageiro ou ternura de momento, e tão frágeis, tão artificiais, tão dissolúveis como muitos casamentos de hoje. Por mim – e sei que falo em nome do meu País – tomo tanto a peito cumprir fielmente os deveres da aliança como não deixar, por honra e interesse de ambas as partes, corrompê-la ou aviltá-la.

Oliveira Salazar no Palácio das Necessidades com Luís Teixeira Sampaio, secretário-geral do MNE, e Armindo Monteiro, embaixador em Londres.

Noto porém haver muitos jornalistas que tratam por essa Europa fora com grande desenvoltura altos problemas de Estado, e se ocupam de nós com insistência não equivalente ao conhecimento dos factos; e fantasiam, e inventam, e deturpam, mas sobretudo ignoram. Têm ainda grandes ciúmes – quem no diria em democratas e liberais – de qualquer propaganda que não seja a sua. Refiro-me à propaganda honesta e não ao «caldo de cultura» em que a dissolução de ideias e costumes está a converter muitos países, e aproveito a oportunidade para dizer o seguinte:

Somos, por tradição, formação moral, compreensão universalista do nosso espírito, propensos e abertos ao conhecimento das instituições, ideias, modo de ser dos outros povos civilizados. Somos bastante orgulhosos para nos considerarmos possuidores de algumas qualidades, e bastante modestos para julgarmos vantajoso adquirir outras. Só nos pode ser benéfico que uns dêem a lição da sua disciplina e trabalho, outros das suas criações de ciência ou de arte, estes da finura e claridade do seu espírito, aqueles da ponderação e equilíbrio das suas concepções da vida. Certamente será difícil que as instituições ou os regimes não tirem algum fruto de serem conhecidas as suas realizações ou benefícios; mas a propaganda puramente política não é em Portugal vedada a alguns portugueses para ser, sem distinção, consentida aos estrangeiros. A nossa ordem interna desenvolve-se em harmonia com o nosso modo de ser e os nossos princípios constitucionais e morais; a nossa política externa em harmonia com os nossos interesses e os deveres que nos impomos como membros da comunidade civilizada. Só haveria que recear se o intercâmbio cultural, as competições dos desportos ou manifestações simplesmente recreativas de estrangeiros pusessem em risco a nossa personalidade própria ou a plena independência com que nos momentos decisivos queremos definir o interesse português. Mas temos suficiente carácter para manter através de tudo a primeira, e bastante força para garantir a segunda.

E retomo o fio perdido do meu discurso para terminar.

Aquela feição, atlântica e imperial, a que acima me referi não caracteriza a nossa História por simples imposição de factores geográficos, mas pelo esforço construtivo que, apoiado neles, os portugueses realizaram no mundo. A afirmação que da mesma temos feito não é tão pouco imagem de retórica para nenhum português de hoje, mas directriz de pensamento e imperativo de acção. A viagem do Chefe do Estado às terras do Império em África – e oxalá a deste ano tenha a coroá-la as mesmas apoteoses e os mesmos frutos que a do ano findo a S. Tomé e Angola – está na mesma directriz das nossas preocupações e finalidade, é manifestação do mesmo espírito que pôs de pé o Acto Colonial.

Sentimos por outro lado que não só a África, baldio da Europa, não corresponde às realidades presentes (e se o foi no passado não parece poder sê-lo no futuro), mas o monopólio de a Europa falar em seu nome está também já fora do actual momento. Há interesses difíceis de discutir aqui e soberanias que se afirmam no continente africano com a força e evidência dos factos.

Formou-se na vizinhança das nossas colónias de África, e integrado na comunidade britânica, um vasto e próspero país, e entre umas e outro o entendimento, a boa vontade, o respeito mútuo transformam em colaboração já hoje preciosa o que pudera ser rivalidade, inveja ou atritos prejudiciais à paz e ao desenvolvimento comum. O convite de Sua Majestade o Rei Jorge VI como soberano da União Sul-Africana, para a visita do Sr. Presidente da República, se traduz homenagem ao representante de um povo que abriu aquelas regiões à civilização europeia, consagra ao mesmo tempo o espírito de estreitas relações e cooperação amigável que, à semelhança das duas metrópoles, felizmente existe entre os domínios portugueses e uma das mais florescentes nações do Império Britânico.

É neste espírito que o Governo, tendo dado o assentimento à viagem do Chefe do Estado, espera lho dê também a Assembleia Nacional.

(In Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas, III, 1938-1943, Coimbra Editora, pp. 137-155).








Um comentário:

  1. O que me espanta é não se vislumbrar uma alternativa política em Portugal, um partido ou movimento, Nacional, Patriótico, Soberanista, Regional, e Tradicionalista.

    Uma nova União Nacional (UN) capaz de enfrentar e derrubar o regime liberal/maçónico que à 48 anos destrói Portugal, volta a fazer sentido e a ser necessária.

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