sábado, 31 de dezembro de 2022

Sobre os perigos e a destrutividade das escolas, ou da incrível insuficiência das universidades e dos colégios por muito conhecimento científico, informação tecnológica e capacidades que possam aparentemente dar

Explorações com Jiddu Krishnamurti

 






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«O professor universitário, em geral, não discute nem consente discussão com os alunos; em alguns casos declara permitir a manifestação de opiniões, mas consegue sempre, por qualquer jeito de deslealdade, impor silêncio ao ingénuo que em tal afirmação acreditou; raramente exerce amigável assistência pedagógica junto dos seus alunos. É que entre o lente e o estudante abre-se uma abismal distância que só o urso pode atravessar.»

Álvaro Ribeiro («Inquérito sobre a Universidade», in A Voz da Justiça, ano 31.º, n.º 3118, Figueira da Foz, 25 de Março de 1933, pp. 1-2).


«Alegria da memória, doce alegria crepuscular, que, enternecidamente, apagas os contornos demasiadamente vivos, e vais mergulhando o mundo numa readquirida unidade toda de íntimo e recolhido silêncio!

Misterioso espelho, onde contemplo paisagens desaparecidas; que, diante dum astro morto, levanta o espectáculo da vida e do movimento!

Se abris um escrínio, há muito fechado, é um rumor de perfumes evocando...

E o que não é a memória, se discorrem as lembranças!...

Um bando de pombas abate sobre a minha eira: são as recordações que chegam...

Cada uma vem dum ponto do céu, dos caminhos em flor, das margens dos regatos. E trazem no bico as flores dos caminhos e trazem nas plumas o orvalho dos regatos. Que brando sono, no meu coração, dormiam as crianças, que eu fui!

Que alarido, que aurora, que instantâneo abrir de pétalas no meu oculto jardim!

Brancos babeiros enfunados de brisa, faces rosadas latejantes de sol, olhos profundos deliquescidos de assombros! Primavera íntima abrindo as asas; maré alta trazendo em espuma, na crista da vaga, os sorrisos de todas as nossas alegrias.

Se hoje passo num caminho da minha infância, de todos os lados se erguem vultos amigos. Ao dobrar duma volta tocam-me o rosto as brancas asas dum bando levantado de meus passos, e um rancho de crianças bate palmas e ri...

E colégio?

Um casarão enorme que ainda assim vive na minha imaginação e que, no entanto, verifiquei outro dia ser uma bem pequena casa.

Aí, a incerteza dos nossos sentidos, como tudo é sonho! Era em Penafiel. Que melhor sítio para cadeia? Um alto, em roda verdes planícies, regatos cristalinos, plátanos, freixos, acácias, austrálias e, ao longe, em frente de mim, na sala do estudo, uma linha de horizonte de pinheiros em filas.

Nunca me pude convencer que não ouvisse a voz das camponesas da minha aldeia, que sempre julgava ser ali. E eram cinco léguas de separação!

O meu colégio era dos velhos moldes; a disciplina era brutal e assustadora, muitas palmatoadas reais, muitas em ameaça, e longas horas de silencioso estudo na sala da minha janela.

Oh, secretos mistérios da pedagogia!

Se consultam a minha proficiência pedagógica, dir-lhes-ei que a do meu colégio era péssima; reconheço todavia que ela me fez sonhador.

Sim, foi no colégio que aprendi a cismar.

Horas seguidas na sala de estudo a ouvir a imaginária voz da minha aldeia, subindo do horizonte por entre os pinheiros; a compor um mundo sem colégios, sem estudos, só de brincar, de gozar a alegria dos campos, os dias de Sol, as noites de luar, as romarias e as epopeias da minha força.

Eu era um conquistador. Impetuosa figura de Mouzinho de Albuquerque, foste o despertar do meu quixotismo heróico! E já então, dos nove aos catorze, uma feminina graça me sorria o prémio das imortais façanhas.





Conjunto de espadas e o bastão de guerra de Mouzinho de Albuquerque.




Mas, que frio, se a lembrança da família me povoava as noites, as intermináveis noites da sala de estudo! Como desejava a hora do dormitório para quebrar as cadeias, que me limitavam o sonho, e viver toda a noite em minha casa e com os meus!

Mas que horror o despertar!

Eu pertencia à classe dos pequenos que tinha um rei. Um dia conspirámos e o rei foi destronado.

Ele agora é monárquico, eu sou republicano; aqui o abraço em boa amizade e recordação.

E a vinda das férias?

Ouvi dizer que a Primavera está a chegar. Sim. A Primavera vem por um duplo movimento de aproximação. Ela vem de nós, da profundeza do nosso ser, como em lembrança vegetal, na aceleração, no esto da vida. Ela vem para nós na morna aragem cariciosa, na verde pujança dos troncos, na luz perfumada e tépida.

As férias vinham para nós como uma Aurora da própria Primavera, qualquer coisa como um nascimento de árvores e aves, de flores e luz, de todo o movimento, de toda a agilidade; todas as prisões abertas, todas as vozes soltas, asas batendo: como a aproximação dum louco bondoso que, pelo mundo, andasse a abrir cadeias, a soltar as águas, cascatas de alegria, cantando...

A véspera das férias!

Encontrei, há dias, um meu companheiro de colégio. É um banal capitalista.

Trocámos palavras inúteis, destas palavras sem alma que um pensador e um capitalista podem trocar. Mas, quando falámos no colégio, a alma subiu aos lábios e fomos sinceros e iguais.

Aos trinta anos, com fortuna e encarando a vida sob o aspecto do prazer, ele me disse, contudo, que nunca sentiu nem sentirá uma alegria como a da véspera de férias.

No dia imigrávamos aos grupos, e era tanta a Alegria que resistia ao envenenamento do tabaco.

Ao entrar na Aldeia, que orgulhoso galope, o da parelha que nos trouxera, que animal e humana alegria correndo no mesmo exaltado ritmo!

Ah, mas a volta!

Chegávamos à noite, e, ao atravessar a cidade, uma mesma impressão nos possuía.

Todas as luzes das lojas e das casas brilhavam com uma fria impotência, como que fendia uma treva empedernida, que logo as estrangulava com mãos de regelada sombra.

Se as casas não eram lares!

Meu Pai!

Como sinto viva e presente aquela noite que juntos dormimos num quarto de hotel da pequena cidade provinciana!

Era uma dessas noites de abandono em que me sentia perdido no frio e na escuridão. Meu Pai apareceu inesperadamente e saímos juntos.

Que intimidade, que conforto, que protecção amiga!

Alguém caminha, perdido, horas sem conta, na Noite tempestuosa e negra, sem um astro.

De repente aparece ao longe o foco dum lar hospitaleiro, onde se acolhe. Ao lume generoso vai aquecendo o corpo entorpecido e a sua alma entra a pacificar-se, protegida e grata.

Deitado no braço paterno eu senti a amizade perfeita, a tranquilidade plena, o enternecimento da felicidade.

Como a Solidão Infinita enchendo-se lenta e suavemente do coração de Jesus!...

A memória é a mais alta realidade, que nos é dado atingir.

Bem se diz que Deus sabe tudo.

Se o Universo se não possuísse numa unidade interior, de integral presença, era impossível a harmonia, a ordem e a proporção.»

Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»). 


«A falência do ensino liceal, sempre em crise, resulta do excessivo número de disciplinas que o constituem e, consequentemente, do excessivo número de professores que o praticam. A habilitação especializada por professores licenciados por escolas universitárias, e invocada em nome de habilitação profissional, longe de concorrer para o aperfeiçoamento do ensino médio, tem por resultado a divergência de linguagens opostas, contrárias e contraditórias que excitam o espírito de dispersão e divergência, adverso à finalidade de educar adolescentes. Este ensino por não ser formativo, nem formal, não oferece resultados mnemónicos, como se prova pelo esquecimento a que os alunos votam tudo quanto não seja de utilizar na aprendizagem das disciplinas do ano seguinte.

Aos professores do ensino liceal tem faltado o estudo teórico ou racional da psicologia dos adolescentes, a qual só lhes é dada ao fim de muitos anos de experiência docente, quer dizer, de modo empírico. Colocados em frente de uma turma, e só durante uma hora, porque no seguinte tempo lectivo irão presidir a outra, desconhecem a caracterologia, e consequentemente, a ética, de cada um dos seus alunos, pelo que não asseguram a eclosão das virtudes, dos valores e dos sentimentos que constituem a base da educação moral que, depois da puberdade, precede e prevalece sobre a educação intelectual.

É dada temporalmente à adolescência, marcada pelo ritmo evolutivo do coração, do cérebro e do sexo, a experiência social e um modo por vezes doloroso de se desprender da mentalidade infantil. O eu afirma-se, então de preferência pelo instinto agressivo, que convém dominar, pacificar ou sublimar, o que é deveras difícil perante os adultos que falam sempre em termos de conquista, luta, combate, batalha e guerra, em termos desportivos de perder, ganhar e vencer, com imagens terríveis que a análise detecta subjacentes nos verbos e nos adjectivos da linguagem quotidiana. Se ao educador de adolescentes compete propor-lhes imagens de trabalho, construção e edificação, para acordar e despertar a inteligência produtiva e pacífica, dificilmente haverá educação, instrução e ensino perante livros, revistas e jornais onde se lê a exaltação de actividades contrárias ao culto e à civilização.

Os adultos transmitem, aos adolescentes máximas, conselhos e exemplos de argumentação egoísta, tornando consciente e voluntário o que no infante era natural mas inconsciente. Compete ao professor evitar os erros fundamentais do individualismo absoluto, demonstrando a subordinação da personalidade à sociedade, como sinal de aperfeiçoamento da razão humana. O adolescente, consciente da sua inteligência que apura no exercício reflexivo e especulativo da filosofia, tende a individualizar-se, a autonomizar-se, independentizar-se tanto quanto lhe seja possível, para lenta e dolorosamente aprender que a unidade da vida reside em uma entidade transcendente, nominada ou inominada, que lhe cumpre servir por destino religioso.

Compreende-se, assim, que ao adolescente não seja agradável seguir por uma outra carreira de estudos que não interessam para a resolução dos seus problemas individuais, evolutivos no decurso do aperfeiçoamento da inteligência, nem para a satisfação imediata dos seus anseios, dos seus sentimentos e das suas vontades. A escola oferece-lhe a imagem de uma prisão, internato ou externato com trabalhos forçados. A educação é então adulterada por uma espécie de constrangimento, a que o estudante se conforma, com a hipocrisia sórdida de quem colabora em algo que está à margem dos fins superiores da humanidade.»

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado», I).



COMO EDUCO OS MEUS FILHOS

Era outono e o sol entrava pelas janelas. Os ventos ainda não tinham começado e nestes dias agradáveis, quentes e soalheiros, as folhas adquiriam lentamente tons de vermelho, amarelo e, nalgumas delas, púrpura. Os céus encontravam-se extraordinariamente claros, de um azul-suave, e muito próximos da terra. As nuvens pousavam no horizonte e a terra mostrava-se feliz. As sombras eram compridas, pesadas, a erva naquela manhã estava coberta por um pesado orvalho. A beleza da terra e do céu parecia preencher o ar e havia uma sensação agradável advinda do verão que passara e da primavera que viria. E por estes dias ter-se-ia talvez de pagar a conta com um árduo inverno.

Não sei se alguma vez olhas para as árvores. Não com memórias, imaginação e conhecimento, mas apenas olhar de forma pacífica, quieta, sem reacções ou resistência do cérebro; só para observar, em que o observador chegou ao fim; ver a árvore, a verdura do relvado e as vacas no campo; apenas observá-los. Enquanto se observa, o espaço que provoca divisão parece desvanecer-se e há apenas observação e alegria de olhar.

O homem tinha olhos brilhantes e sorriso fácil. E perguntou: «Como devo educar os meus filhos? O que devo fazer com eles? Tenho cinco filhos. Três deles são muito inteligentes, lindos e cheios de sonhos. Os outros dois são muito emocionais, muito carinhosos, muito afectuosos; não parecem lutar, discutir; ainda têm aquela inocência que vem com a meninice, cheios de curiosidade. Os três são muito espertos, sempre a fazer perguntas, a lutar, a discutir entre eles, provocando-se uns aos outros. O que devo fazer com eles? Se enviar os três para uma escola, irão naturalmente aprender muitas coisas, vão passar nos exames, ser moldados por outras crianças, pelo professor, pelo conhecimento, pelo ambiente dessa escola em particular. E irão para a universidade e serão engolidos pela estrutura social. No que respeita aos outros dois, tenho medo de que se magoem, sofram, que se virem mais e mais para dentro, que recuem de vez e sejam tratados como excêntricos. Não sei quão longe irão nos estudos. Como poderei educá-los conhecendo os perigos, a destrutividade das escolas, a incrível insuficiência das universidades e dos colégios, por muito conhecimento científico, informação tecnológica e capacidades que possam dar-lhes? Não quero que sejam destruídos. Amo os meus filhos. Olho para eles todos os dias ao pequeno-almoço e volto para casa especialmente para os poder ver ao almoço e ao jantar. Passo muito tempo com eles, vendo-os, conversando e brincando, sinto-me próximo deles. Eles irão enfrentar este perigo da educação, o competitivo e impiedoso mundo da ambição, o sucesso e a brutalidade que encerram. Como posso ajudá-los a evitar tudo isto?»

Pode na realidade ajudá-los a evitar toda essa violência e insana brutalidade? Ou educá-los para se prepararem inteligentemente para tudo isso?

«Sim, mas como posso dar-lhes essa inteligência, ajudá-los a adquirir essa capacidade, da qual tanto fala, para se observarem a eles próprios e ao mundo; e não eles separados do mundo, sendo antes eles próprios o mundo? Como posso dar-lhes – não, não dar-lhes, ajudá-los – essa capacidade para ver?

Se os enviar para a escola, como inevitavelmente fará, serão influenciados por outras crianças que são condicionadas como as suas crianças o são. Vão influenciá-los deliberada ou inconscientemente. O professor vai influenciá-los e eles irão começar a perder a sensibilidade, a curiosidade, o espírito inquisitivo. Vão torná-los medíocres e o seu modo de vida irá cair no padrão que a sociedade estabeleceu.



«Temo que terei de os mandar para a escola; não posso ser eu a dar-lhe aulas particulares. Seria mau para eles; devem conhecer e brincar com outras crianças; e serão influenciados, moldados, quebrados. Não sei realmente o que fazer. Eu e a minha mulher conversámos bastante sobre isto e não parecemos capazes de encontrar uma solução. Há momentos em que me arrependo de ter tido filhos. Em casa, posso ajudá-los a compreender a influência da escola, das outras crianças, e também a ensiná-los a libertar-se da minha influência e da da minha mulher, para que sejam realmente livres, de forma inteligente? Eles são condicionados; têm as suas qualidades, inclinações, tendências, as suas personalidades e exigências particulares.»

Eles estão condicionados, e esse condicionamento é o resultado de muitos milhares de anos de influências. Quando fala de liberdade, esta só é possível quando há um fim desta influência. Seja consciente e livre deste condicionamento; só então podem a mente e o coração ser livres.

A educação não é apenas fornecer informação. É também, seguramente, para que eles compreendam os próprios preconceitos, inclinações e tendências, os seus condicionamentos: e dar-lhes oportunidades para testarem esses condicionamentos, para que vejam os perigos que encerram e sejam incondicionalmente livres. A total cultivação do homem é também parte da educação.

«Mas não há escolas dessas no mundo. Ninguém está interessado, no verdadeiro sentido, nas crianças; as pessoas não têm tempo, energia, paciência, ou talvez amor. Então, o que posso fazer? Onde fico eu no meio de tudo isto? O que devo fazer com os meus filhos? Em casa, posso ser razoável e discutir com eles, a fim de os ajudar a ver como as outras crianças os influenciam? Parece-me que é tudo o que posso fazer. Ou encontrar uma escola que não condicione completamente as crianças. Haverá escolas assim? É um grande problema, e tenho pensado muito nisso. Não sei para onde me virar.»

«Parece-me», continuou, «que deve haver escolas dessas um pouco por todo o mundo. Mas requerem muito dinheiro, espaço, um edifício, e por aí fora, e não somos pessoas ricas. Nesse sentido, estou de volta ao ponto de partida. Na verdade, não sei o que fazer, como educá-los. Compreendo como é importante alterar toda a estrutura da sociedade em que vivemos, e parece-me que devemos começar pelos mais novos, educá-los de uma forma completamente diferente, ajudá-los a transformar-se e, assim, talvez a sociedade. Tudo isto implica muito trabalho, exige muita energia. Gostava que houvesse escolas destas pelo mundo inteiro e não apenas num ou dois sítios.»

O sol começava a ficar mais brilhante e o céu mais azul. Os pássaros tinham voado para longe; à medida que o inverno se aproximava havia cada vez menos pássaros no relvado. Restavam o pavão, o coelho e os pombos. E, tal como manda o costume, vão ser caçados, mortos.

 A essência da inteligência é a sensibilidade.

(In J. Krishnamurti, Como Pode a Mente Estar Quieta?, Eigal – Indústria Gráfica S.A., 1.ª edição, Junho de 2021, pp. 35-38). Ver aqui e aqui



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